Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

A partir de $11.99/mês após o período de teste gratuito. Cancele quando quiser.

A gente se vê na Parada
A gente se vê na Parada
A gente se vê na Parada
E-book310 páginas4 horas

A gente se vê na Parada

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Seis autores, seis histórias, um dia que transformará suas vidas para sempre. Garanta já A gente se vê na Parada, antologia de contos LGBTQIAP+ protagonizada por personagens queer.

O que Azad, Milena, Nicolas, Íris, Odara e Romário têm em comum? Todos estão em São Paulo na data mais colorida do ano. Por força do destino, os seis passarão pela Avenida Paulista no dia 11 de junho, quando viverão os momentos mais transformadores de suas vidas.

Em seis contos emocionantes, os autores Abdi Nazemian, Ariel F. Hitz, Arquelana, Mariana Chazanas, Pedro Rhuas e Ryane Leão apresentam histórias que celebram as inúmeras formas de amor e os múltiplos encontros da comunidade queer durante a maior Parada do Orgulho LGBTQIAP+ do mundo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de jun. de 2023
ISBN9786560050037
A gente se vê na Parada

Relacionado a A gente se vê na Parada

Ebooks relacionados

LGBTQIA+ para adolescentes para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de A gente se vê na Parada

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A gente se vê na Parada - Pedro Rhuas

    FOFO. Adbi Nazemian. Traduzido por Vitor Martins

    Dia da Parada do Orgulho de São Paulo, 9h

    OK, vocês venceram, eu sou gay. Parabéns por terem tirado um garoto de 18 anos do armário à força, seus babacas. Espero que estejam felizes. Já eu?

    Bom… Gay também significa feliz, né?

    Parece que tem anos em que nada acontece e dias que contém acontecimentos de um ano inteiro. Essa é a história de um dia como esse. Tudo começou com aquele pronunciamento amargurado, que eu teria postado bem cedinho naquela padaria lotada na Haddock Lobo, em São Paulo, se não fosse a minha própria vaidade. Eu não era um cara vaidoso, mas trabalhar na TV me mudou. Comecei a pausar as cenas em que aparecia de perto e analisar os fios desgrenhados na minha cabeça, as espinhas que nem mesmo a equipe de maquiagem da emissora conseguia esconder, a curva do nariz, as olheiras profundas que não existiam antes das noites em claro decorando as falas do dia seguinte e tudo o que as pessoas jogavam sobre mim, comentavam sobre mim, fofocavam sobre mim na internet e… Bom, deu para entender.

    Encarei o texto até as palavras se tornarem um borrão. Estava pronto para ver minha vida inteira explodir assim que eu tocasse no botão para publicar o texto. Já tinha escrito e reescrito a mensagem inúmeras vezes. Tinha refletido bastante se era melhor dizer que sou gay ou queer. Se dissesse gay, será que me acusariam por não ser inclusivo? Mas se dissesse queer, será que me acusariam de não estar sendo específico? Melhor escrever okay por extenso ou deixar só OK mesmo? E se eu deletasse a palavra babacas? Mas, no fim das contas, eu gostava da mensagem. Ela dizia o que precisava ser dito: eu era gay e estava furioso.

    Agora, só precisava de uma foto minha para acompanhar o pronunciamento. Tirei uma selfie na padaria, mas não curti a iluminação. Fez minhas olheiras parecerem profundas como crateras. Minha barba por fazer parecia uma sombra sinistra. Quando meu pai ainda era vivo e me ensinou a me barbear, aconselhou a nunca me tornar um daqueles hispters barbudos espalhados por toda Los Angeles.

    — Eles podem até achar que as barbas deles são legais, mas para nós é diferente. Barba nos deixa com cara de terrorista.

    Desde então, faço a barba todo dia, exceto hoje, porque saí com tanta pressa que esqueci de colocar a lâmina de barbear na mala. E a escova de dente. E a minha sanidade. Tudo o que trouxe comigo foi uma mochila arrumada às pressas e uma montanha de ansiedade.

    Já conhecia o truque valioso de todo mundo que tira selfies com frequência: a melhor iluminação em locais públicos fica sempre no banheiro. Peguei a mochila, o celular e caminhei até o banheiro masculino. Eu me posicionei sob a melhor luz possível, com a câmera próxima do rosto, quando escutei o barulho da descarga. Um homem de setenta e poucos anos saiu da cabine e me encarou enquanto eu fazia biquinho para a foto. Ele balançou a cabeça, me julgando, enquanto se dirigia à pia.

    Senti meu rosto ficar vermelho. Sabia muito bem como as pessoas faziam caras e bocas quando estavam posando para selfies em público. Eu e meu melhor amigo Nader sempre ficávamos zoando quem tirava a mesma fotografia de novo e de novo na esperança de que uma variação mínima pudesse deixar a foto do jeitinho que queriam.

    — Desculpa — murmurei para o homem em espanhol.

    Quando ele saiu, voltei para a selfie. Porém, quando estava prestes a apertar o botão, o celular tocou. Uma foto da minha mãe posando comigo apareceu na tela. É a minha foto favorita de nós dois. Ela está me segurando, ainda bebê, no braço esquerdo, e levantando uma faca com a mão direita para cortar meu bolo de aniversário. Sempre achei que aquela foto capturava perfeitamente a essência da minha mãe. Metade cuidadora, metade guerreira. Eu amava aquela mulher. Faria qualquer coisa por ela. Qualquer coisa menos atender aquela ligação. Deixei tocar, tocar e tocar. Encarei o homem forte que entrou no banheiro já com o zíper aberto enquanto se apressava até o mictório. Levei o celular ao ouvido para escutar a mensagem de voz que ela havia deixado. A voz dela, que em um dia normal já parecia estar em pânico constante, saiu do alto falante como lava explodindo de um vulcão.

    — Azad joon, por que o seu celular está tocando como se você estivesse fora do país? Você está fora do país? Você saiu do país sem me avisar? Peraí… — Ouvi o barulho das unhas dela destrancando o nosso cofre. — Cadê seu passaporte? Por que não está no cofre? Onde você se meteu? Espere um minuto, vou te rastrear. — Depois de uma pausa, ela começa a gritar. — Você desativou o rastreio do seu celular?! Por que fez isso?! Se não me ligar agora, vou te procurar, e se eu descobrir que você não foi sequestrado nem torturado, eu mesma vou fazer isso. De uma forma lenta e brutal. Está me entendendo? — Depois de uma pausa, ela completou: — Te amo.

    Deletei a mensagem rapidamente. Não aguentava a preocupação, a fúria e o amor da minha mãe. O problema dos celulares é que, assim que você começa a ler as notificações, é difícil parar. São projetados para isso. Conferi os e-mails que vinha ignorando enquanto o homem musculoso lavava as mãos e as secava no jeans escuro. Havia um do meu agente. Ele geralmente escrevia os e-mails com letras minúsculas, como se estivesse ocupado demais para se importar com maiúsculas, minúsculas e pontuações. Porém, aquele fora escrito inteiro em caps lock e cheio de pontuação. Ele estava irritado.

    CADÊ você, Azad? Desapareceu do set? Quem você pensa que é? Marilyn Monroe? Judy Garland? Fumou alguma coisa? Tá chapado? Você sabe que eles podem matar seu personagem se quiserem, né? Aposto que os roteiristas estão inventando um monte de maneiras de matar a porra do seu personagem neste. exato. momento.

    Marquei o e-mail como spam.

    Um garoto entrou no banheiro cantarolando uma música chiclete, entoando as palavras em voz alta como se fosse participante de um reality de competição musical.

    — Foguete do tipo NASA saindo da atmosfera

    Era baixinho, com o cabelo raspado nas laterais formando um mullet moderno que, para ele, de alguma forma, funcionava. Vestia jeans e uma regata preta com uma pequena bandeira trans. Ele cantava enquanto entrava em uma das cabines. O som do xixi dele criou a trilha sonora para a mensagem de voz que Nader me mandou.

    — Que porra é essa, Azad? Cadê você? Sua mãe fechou a loja pelo resto do dia. Ela está exasperada. Tô até usando palavra difícil, olha só. Eu também estou exasperado. Estou preocupado com você, tá bom? Me liga. Por favor.

    Fechei os olhos para resistir à tentação de ligar, mandar áudio ou qualquer tipo de mensagem para ele. Havia mais e-mails. Mais mensagens. Mais DMs. Eu não aguentava mais. Joguei o celular dentro da mochila. O cantor mijão lavou as mãos enquanto eu respirava fundo.

    Usando português em um tom gentil, ele perguntou:

    — Tá tudo bem?

    Respondi em espanhol:

    — Sim, obrigado.

    Fechei os olhos e inspirei, contido e ansioso, uma vez e depois outra. Algumas pessoas entraram e saíram rapidamente. Por fim, tirei a selfie que acompanharia a minha saída amargurada do armário. Eu estava pronto. Fui pegar o celular na mochila e…

    Ele havia sumido.

    Procurei no bolso da frente, nos bolsos laterais… e nada. Tudo o que eu tinha trazido — as mudas de meias e cuecas, meu diário, meu livro favorito de poemas do Rumi — estava ali. Mas nada do celular. Entrei em pânico. O celular, a coisa que me conectava a todas as coisas das quais eu precisava me desconectar, havia sumido. E, em vez de me sentir livre, me senti violado e sozinho. Agora, nem se eu quisesse ou precisasse poderia ligar para minha mãe, meu melhor amigo ou meu agente. Não poderia mais ver o que todo mundo falava sobre mim na internet.

    Saí esbaforido do banheiro e voltei para a padaria, parando o garoto de mullet antes que chegasse à saída. Ele estava parado com um amigo que vestia um harness por cima de uma camiseta cor-de-rosa.

    — Ei! — gritei.

    Eles se viraram para mim.

    — Oi, que foi? — perguntou o garoto de mullet.

    — Você roubou meu celular? — perguntei em inglês.

    Os dois se entreolharam e começaram a rir. O de mullet revirou os olhos e disse para o amigo:

    — Viu só? Esses gringos são todos iguais. Metade acha que todo mundo é ladrão e quer algo deles. A outra metade é turista sexual querendo alguma coisa nossa. Para eles, a vida é uma transação. Que triste.

    — Eu entendi o que você disse — respondi em inglês. — Eu só queria…

    — Queria o quê? — ele perguntou com raiva. — Me revistar? Manda ver. — Ele começou a virar os bolsos da calça do avesso.

    Rapidamente, me senti envergonhado da acusação, meu rosto ficou vermelho ao perceber que os olhares de todos os clientes estavam sobre mim.

    — Desculpa — eu disse. — Eu acredito em você. Só… Me desculpa.

    Enquanto saíam do café, o garoto de mullet voltou às músicas.

    — Crazy, crazy, crazy… — ele cantou, como se a música fosse sobre mim.

    Caminhei até o balcão.

    — Alguém roubou meu celular — eu disse em espanhol. — Fechei os olhos por alguns segundos no banheiro, e…

    — Eu não falo espanhol, mas falo inglês — disse a atendente com um sorriso. Ela vestia uma camiseta rasgada com a estampa de uma drag queen. Embaixo do rosto da drag estava o nome dela estampado com letras cobertas de glitter: Minah Mora.

    — E vi que você acusou um dos nossos clientes mais fiéis. — Atrás de mim, uma fila de pessoas impacientes e desesperadas para fazerem pedidos começava a se formar. A atendente me entregou um pedaço de papel. — Escreve seu nome aqui e o endereço de onde está hospedado. Caso a gente encontre…

    — Eu não… Não estou hospedado em lugar nenhum… Ainda. Eu vim pra cá de última hora. Ia até pegar um quarto de hotel, mas… — Foi aí que me dei conta de que todos os meus cartões de crédito estavam na carteira magnética grudada no celular. Meu coração acelerou. — Você pode ligar para a polícia ou algo do tipo?

    Atrás de mim, a fila resmungou. A atendente deu de ombros e disse:

    — Tem uma unidade móvel da polícia montada aqui perto. É só subir a rua até chegar na Avenida Paulista. Mas, sendo bem sincera, acho que eles têm coisas mais importantes para se preocupar do que um celular roubado. Sinto muito. — Então, com um sorriso gentil e um gesto, ela chamou alguém atrás do balcão. O outro atendente se aproximou e me entregou um copo de viagem que segurava na mão — Um cafezinho. Especialidade brasileira. Meu presente para você por conta de toda essa confusão.

    — Obrigado — foi o que consegui dizer. Quando dei meia-volta, o lugar inteiro me encarava de cara feia, não por ter me reconhecido da TV nem porque eu era um homem hétero interpretando um personagem gay, mas porque eu era um turista americano idiota que acabara de dar um showzinho.

    A situação não melhorou muito quando cheguei à estação de polícia — que não parecia uma estação de verdade. Era meio que uma barraca temporária com letras garrafais e ameaçadoras dizendo polícia militar. Eu me aproximei de um policial que estava parado do lado de fora fumando um cigarro.

    — Hum… a delegacia é aqui? — perguntei.

    Ele olhou para a palavra POLÍCIA com um sorrisinho debochado.

    — Esta é uma unidade móvel. Em que posso ajudar? —perguntou. Expliquei minha situação da melhor forma que pude. — É só rastrear o celular pelo seu computador — o policial disse.

    — Eu não trouxe computador — respondi.

    — Pelo tablet, então.

    — Não trouxe nenhum outro aparelho, só meu celular. E todos os meus cartões de crédito estavam na capinha do celular. E eu não tenho dinheiro nenhum.

    Ele tirou o cigarro da boca.

    — Acho melhor você procurar uma delegacia para abrir um b.o., então. E, de lá, eles podem ajudar a rastrear seu celular.

    — O problema é que… Eu desativei o rastreio do celular antes de vir para São Paulo.

    — Por que você fez uma coisa dessas?

    — Porque não queria ser encontrado.

    O policial arqueou uma sobrancelha grossa.

    — Bom, parece que você conseguiu o que queria.

    — Você não pode fazer nada para me ajudar? — perguntei, desesperado.

    — Faremos o possível, mas não posso prometer nada. Onde você está hospedado? Caso a gente encontre…

    — Eu… Ainda não reservei um hotel.

    O policial arqueou as duas sobrancelhas.

    — Você veio para São Paulo no fim de semana da Parada sem reservar um quarto de hotel?

    — No fim de semana do quê? — perguntei, notando de repente algumas bandeiras do Orgulho hasteadas ao redor da barraca.

    — Da Parada do Orgulho — disse o policial. — Não está vendo? É a Parada do Orgulho LGBT. Por que você acha que estamos com essa unidade móvel montada aqui? — Olhei ao redor e percebi a decoração da avenida. — É a maior Parada LGBT do mundo. Você deveria ter sido mais esperto e reservado a hospedagem com antecedência. — Devo ter ficado sem reação porque, por fim, o policial disse:

    — Passa aqui mais tarde. Se tivermos qualquer informação, daremos para você. E se eu não estiver aqui, é só procurar pela Sheila.

    — Quem é Sheila? — perguntei.

    Uma policial com um sorrisão acenou para mim dos fundos da tenda.

    — Eu! — disse ela. — Estarei aqui o dia todo, até de noite.

    — Tudo bem, obrigado.

    Coloquei a mochila no ombro e caminhei com o cafezinho na mão. Nunca me senti tão desesperado, perdido ou furioso na vida. Eu só conseguia sentir um ódio irracional de mim mesmo. Ódio por ter fugido dos meus colegas de trabalho, da minha mãe, do meu melhor amigo, da minha própria vida. Ódio por pensar que viajar para outro país poderia me dar uma nova perspectiva quando, na verdade, acabei trazendo todos os problemas comigo. E foi naquele instante que vi a câmera. Uma câmera fotográfica grande e antiga, com uma daquelas lentes enormes acoplada.

    Escolhi o Brasil justamente porque a série de TV não é exibida aqui, porque talvez aqui eu pudesse ser anônimo. Eu atuava numa série de um canal fechado. Os direitos de exibição eram vendidos para países estrangeiros individualmente, e ainda não haviam sido vendidos para o Brasil. Não estava disponível em nenhuma plataforma de streaming ou canal daqui. Ou seja: a controvérsia sobre eu ser hétero e interpretar um personagem gay não havia saído dos Estados Unidos… ainda. Pensei que poderia passar desapercebido, mas talvez eu estivesse errado.

    — Ei! — gritei para o homem que ajustava o foco da lente. — Não quero ser fotografado — eu disse em espanhol.

    O homem me ignorou.

    Cobri o rosto com as mãos. Certa vez, eu vi uma foto da Lana Del Rey fazendo a mesma coisa para desviar dos paparazzi. Ela fez aquilo parecer chique, mas agora eu sabia que não havia nada de glamuroso em querer desaparecer.

    O fotógrafo continuava mexendo na câmera que cobria o rosto dele. Decidi tentar em inglês.

    — Eu imploro. Pare. Por favor. Não quero ser fotografado. Não quero que me encontrem aqui. Pessoas como você estão destruindo a minha vida. São abutres. Sugadores de alma. me deixa em paz! — gritei enquanto corria em direção a ele.

    Quando coloquei a mão em cima da lente da câmera, ele sussurrou num sotaque americano:

    — Você está estragando a minha foto.

    — Você é americano? — perguntei. — Peraí, você me seguiu até aqui?

    Ele riu, dando um passo para o lado e disparando o botão mais uma vez.

    — Consegui! — disse ele com um sorriso.

    A câmera até parecia antiga, mas era digital. Ele me mostrou a foto que acabara de tirar. No fundo, notei um tipo de cartaz colado. Em letras coloridas, dizia: Seu beijo tem gosto de futuro bonito. No primeiro plano da foto, uma família: mãe, pai e filho segurando bandeiras do orgulho.

    — Inacreditável, né? — disse ele. — Aquele prédio ali já foi sede do primeiro grupo de ativismo queer no Brasil. Quando foi fundado, eu era bem novo. Um bebê. Eles lutavam por aceitação e visibilidade. Hoje, as famílias seguram bandeiras do Orgulho no meio da rua. Incrível, né?

    Assenti e sussurrei:

    — Sim, claro.

    O homem pendurou a câmera no pescoço, e eu consegui olhar para o rosto dele. Devia estar na casa dos quarenta ou cinquenta anos, tinha um bigode grosso e o cabelo raspado rente à cabeça. Vestia uma bermuda cargo e uma jaqueta jeans cheia de broches e bordados. Reconheci algumas das pessoas e dos símbolos nos broches. Madonna, Grace Jones, Debbie Harry. Um triângulo rosa. Uma bandeira trans. Um bottom que dizia PrEP para todos.

    — Sabe a minha parte favorita de ser fotógrafo? — perguntou ele.

    Dei de ombros.

    Ele abriu um sorriso.

    — Quando olho através das lentes da câmera, consigo ver o mundo inteiro como se fosse novinho em folha. Como se estivesse vendo tudo pelos olhos de uma criança, pela primeira vez na vida. Ser fotógrafo é um lembrete constante de que sempre há coisas novas para serem descobertas neste mundo. Mais beleza, mais magia, mais novidades.

    — Tá bom — eu disse. — Por que você está me falando tudo isso?

    — Sei lá — ele respondeu. — Achei que talvez você precisasse ouvir isso. — Ele respirou fundo antes de completar: — Todo mundo quer ser encontrado, sabia?

    — Quê? — perguntei.

    — Você disse que não queria ser encontrado, mas todo mundo…

    — Você de fato me seguiu, né? A emissora te enviou? Ai meu Deus, você não trabalha pro TMZ, né?

    Ele riu.

    — Não entendi uma vírgula do que você disse, mas não, eu não trabalho pro TMZ. Não fui enviado por nenhuma emissora. Não trabalho em nenhum site de fofoca e não tenho a menor ideia de quem você seja. Literalmente, pelo menos. Mas emocionalmente… Acho que sei uma coisinha ou duas sobre você.

    — Tipo? — perguntei.

    — Tipo… Você acha que está totalmente sozinho no mundo, mas não está. Tipo… Você vive se perguntando se um dia poderá ser quem é de verdade, e a resposta é sim. Você é iraniano, certo?

    — Como adivinhou? As pessoas nunca sabem de onde eu sou.

    — Talvez eu não seja as pessoas — disse ele. — Talvez eu seja só eu mesmo.

    — Não sei se entendi a diferença — respondi.

    Ele olhou para a multidão ao nosso redor, passando o olhar por uma mulher que esperava o semáforo ficar verde para continuar com sua corrida matutina, por um grupo de adolescentes amontoados ao redor de um celular enquanto assistiam a algo muito interessante na tela.

    — Quanto mais cedo você entender que o mundo é feito de indivíduos, e não de uma massa de pessoas, mais cedo vai se permitir ser livre.

    — Livre.

    Soltei uma risada ao repetir aquela palavra.

    — Qual é a graça? — ele perguntou.

    — Nada. É só que meu nome significa livre. Em persa.

    — Você se chama Azad? — ele perguntou.

    — Peraí, como é que…

    — Meu primeiro namorado era iraniano. Somos melhores amigos até hoje. Conheço a família dele há décadas. Aprendi as palavras essenciais ao longo dos anos.

    — Quais são as palavras essenciais? — perguntei.

    — Liberdade, é claro. Amor. Orgulho. Comida. Filho da puta. A irmã dele, Tara, me ensinou essa última no dia em que nos conhecemos. — Ele continuou, pronunciando cada uma das cinco palavras em persa com um sotaque americano carregado.

    Soltei uma risada sincera, o que foi ótimo.

    — Só o essencial — eu disse.

    Ficamos parados meio sem jeito por um tempo, até ele finalmente dizer:

    — Bom, prazer em conhecer você, Azad. Aproveite sua estadia nesta cidade linda.

    Enquanto ele se afastava, eu gritei:

    — Espera aí! — Ele se virou para me olhar. — É… É uma história longa, mas eu vim para cá do nada, tentando fugir… Bom, fugir da minha vida. E alguém roubou meu celular com todos os meus cartões de crédito, e eu não tenho onde ficar, também não tenho dinheiro, e entendo português bem mais ou menos, mas toda vez que tento falar, acaba soando como espanhol porque minha mãe me mandou para um colégio interno bilíngue antes de eu abandonar tudo para atuar num programa

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1