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O Papel da Jurisdição dos Crimes Militares: uma análise à luz do Direito Comparado
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O Papel da Jurisdição dos Crimes Militares: uma análise à luz do Direito Comparado
E-book343 páginas4 horas

O Papel da Jurisdição dos Crimes Militares: uma análise à luz do Direito Comparado

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Sobre este e-book

Dissertar sobre a jurisdição dos crimes militares com o escopo de verificar a pertinência da autonomia do Direito Penal Militar como ramo ou subsistema do ordenamento jurídico dos países ao redor do mundo, assim como de uma jurisdição própria para seu processo e julgamento, tendo por base o modelo de cada Estado e as complexidades nacionais particulares, notadamente a brasileira, não é tarefa fácil de enfrentar.

O presente trabalho visa averiguar, com efeito, a legitimidade ou não de um sistema específico para processo e julgamento dos delitos militares em face dos princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito, tão propugnados hodiernamente no cenário de um Direito Penal com viés finalista-funcional.

Assim, pretender analisar a legitimidade normativa-existencial do amplo sistema de Justiça Militar demanda, obrigatoriamente, perpassar o contexto histórico, ainda que de modo sucinto, em que surgiram as instituições militares, verificar seus particulares princípios, deveres e restrições de direitos, para, alcançando as novas formas de conflitos armados e o atual cenário de emprego das Forças Armadas em diferentes frentes visando à garantia da segurança humana e democrática, compreender o papel da jurisdição dos crimes militares e o movimento mundial de reforma da sua conformação e da legislação pertinente.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de mai. de 2023
ISBN9786525286778
O Papel da Jurisdição dos Crimes Militares: uma análise à luz do Direito Comparado

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    O Papel da Jurisdição dos Crimes Militares - Hugo Magalhães Gaioso

    1 JUSTIFICATIVA HISTÓRICA PARA A CRIAÇÃO DE UMA JUSTIÇA MILITAR

    Pretender abordar a razão de ser dos sistemas de justiça militar e as codificações na temática dos crimes militares demanda obrigatoriamente uma análise, ainda que sucinta, do contexto histórico em que surgiu e se desenvolveu a jurisdição militar.

    Ao tempo em que apareceram os primeiros exércitos como instituições permanentes para resguardo do território e conquista de novas posses, surgiu, paralelamente, a necessidade de criar normas visando regulamentar essa atividade bélica-militar, desde o início caracterizada por uma rígida disciplina e cominando severas punições⁹.

    Nesse sentido, segundo von Liszt, é possível afirmar que a origem do Direito Militar e, por consequência, da Justiça Militar, acaba ocorrendo simultaneamente com a própria existência dos exércitos permanentes¹⁰, com eles se confundindo¹¹.

    Desde o Código de Ur-namu, na Mesopotâmia¹², e o Código de Hamurabi, na Babilônia¹³, já se notava a presença de normas de cariz militar, nomeadamente de situações que, nos dias atuais, inclusive, já configuravam crimes militares, embora ainda não sujeitos à uma jurisdição militar específica¹⁴.

    Variadas civilizações antigas, ao aplicarem regras na punição de crimes militares, verificaram a necessidade de que seus julgamentos fossem realizados por aqueles que conheciam e dominavam as técnicas militares de então, admitindo, outrossim, especialmente em tempo de guerra, que os delitos perpetrados pelos militares fossem julgados pelos próprios pares¹⁵.

    Vê-se que, inicialmente, o julgamento das causas militares era realizado intramuros nas corporações militares (extrajudicialmente), adotando a máxima de que quem manda é quem deve julgar¹⁶, bem mais tarde assente, por exemplo, nas Ordenações de Flandres de 1701, cuja inspiração é de origem francesa¹⁷.

    Nessa mesma linha de raciocínio impende afirmar que o desenvolvimento do Direito Disciplinar Militar está intrinsicamente marcado por suas relações com o Direito Penal Militar¹⁸, como teremos a oportunidade de melhor analisar as distinções entre as infrações disciplinares militares e os crimes militares em capítulo próprio do presente trabalho.

    Estabelecendo os primeiros contornos de um estado organizado militarmente, no qual recaía em qualquer cidadão o dever do serviço militar¹⁹, os gregos apresentavam, ainda que não houvesse uma perfeita separação entre a jurisdição militar e a ordinária, uma distinção entre os crimes praticados em tempos de paz daqueles cometidos em tempos de guerra, quando o julgamento era realizado pelos comandantes militares²⁰.

    Contudo, é em Roma, marcadamente caracterizada por manter seus corpos militares coesos e altamente disciplinados²¹, notadamente em virtude de um rígido sistema normativo militar²² aplicado pela jurisdição castrense²³, que o Direito Penal Militar surge como uma ciência jurídica desenvolvida de forma autônoma²⁴.

    Durante a era de Justiniano²⁵ se constata a clássica definição de crime militar como sendo aquele que somente o soldado, nesta condição, podia praticar, uma vez que o militar podia cometer crimes enquanto cidadão (uti civis) e como soldado (uti miles), todavia só por este seria julgado no juízo militar²⁶, daí advindo as classificações de crime impropriamente ou acidentalmente militar, no primeiro caso, e de crime propriamente, essencialmente ou puramente militar, na segunda hipótese, caracterizado como infração penal típica e inerente às funções e atividades da profissão de militar²⁷.

    Nessa senda, releva citar que o Digesto já consignava essa previsão normativa de delitos próprios ou comuns cometidos pelos soldados e a competência para julgá-los, se na jurisdição castrense ou ordinária, tudo sob o título De re militare (Das coisas militares)²⁸.

    De se ver, pois, a grande contribuição dos romanos²⁹ para o sistema jurídico do civil law³⁰ no que concerne aos delitos militares, nessa temática se notabilizando leis que àquela época seguiam critérios lógico-sistemáticos com classificação de crimes comuns e militares – além das respectivas sanções -, de modo que muitos deles seguem tipificados nas legislações penais militares atuais de variadas nações³¹.

    Avançando no tempo³², os elementos iniciais de uma Justiça Militar, na forma como atualmente é conhecida e estabelecida, decorrem da conformação hierarquizada de alguns corpos militares permanentes durante o século XV, notadamente na Itália, Espanha e França³³ ³⁴. Assim, é possível verificar no século XVI a estruturação orgânica de uma Justiça Militar à semelhança de uma instituição militar, que se realizava através dos Conselhos de Guerra³⁵ e Auditores de Campo, figuras que se consolidaram na Península Ibérica e, por intermédio de Portugal, foram igualmente adotadas no Brasil³⁶.

    Nesse contexto histórico, em resumo, de evolução das civilizações antigas, em que se verificou a necessidade de manter pronta e permanentemente treinados seus corpos militares, bem preparados e obedientes para serem empregados em nome da soberania e da defesa nacionais, é que surgiu, concomitantemente, a presença de um órgão judicante especializado nas atividades bélicas-militares, dando azo, destarte, à Justiça Militar³⁷.

    Cumpre analisar, na sequência, se essa função originária das organizações castrenses – de defesa nacional numa perspectiva da segurança contra ameaças externas – evoluiu para abranger novas missões institucionais, quais são elas e como isso reflete na formatação da jurisdição dos crimes militares.


    9 Embora não se possa delimitar com precisão o momento em que iniciaram as atividades bélicas pelos povos antigos, há registro do primeiro exército organizado na Suméria, no longínquo ano 4.000 a.C. CHAVES JÚNIOR, Edgard de Brito. Escorço Histórico da Justiça Militar. Belo Horizonte: Revista de Estudos e Informações, n.8, nov. 2001, p. 12.

    10 Não é demais recordar que, no início da civilização, os exércitos eram temporários, sem qualquer profissionalização ou treinamento específico, pois se constituíam apenas por ocasião de alguma necessidade de conflito com outros povos, geralmente na hipótese de agressão externa. Um primeiro símbolo de uma profissionalização da carreira militar ocorreu em Roma, com o pagamento de soldo aos legionários destacados por todo o império. Contudo, é com a criação do exército nacional de Maurício de Orange, no séc. XVII, que os estudiosos do tema consideram como o primeiro esboço da Instituição Militar profissionalizada. VAZ, Nuno Mira. A Profissão Militar: um modelo à procura de sustentação. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, 2001, p. 51. Disponível em: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/1451/1/NeD098_NunoMiraVaz.pdf. Acesso em: 03/02/2022.

    11 LISZT, Franz von. Tratado de Derecho Penal. 2ª ed. Tomo I. Madri: Editorial Reus, 1999, p. 39.

    12 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 52, afirma: A Mesopotâmia foi o país que conheceu as primeiras formulações do Direito. Os Sumérios, os Acadianos, os Hititas, os Assírios, redigiram textos jurídicos que se podem chamar ‘códigos’, os quais chegaram a formular regras de direito mais ou menos abstractas.

    13 RAÚL ZAFFARONI, Eugenio; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 170, referem que procede da Babilônia o mais antigo direito penal conhecido, consagrado no Código do rei Hammurabi, do séc. XXIII a.C. (entre 2285 e 2242 a.C.). GILISSEN, ob. cit., p. 61, por outro lado, registra que o Código de Hammurabi provavelmente foi redigido por volta de 1.694 a.C., está gravado numa estela descoberta em Susa em 1901 e actualmente conservada em Paris no Museu do Louvre, compreendendo 282 artigos.

    14 CORRÊA, Univaldo. A Evolução da Justiça Militar no Brasil – alguns dados históricos. Florianópolis: AMAJME, 2002, p. 2. Disponível em: http://www.amajme-sc.com.br/livro/1-Univaldo-Correa.pdf. Acesso em 27/03/2021.

    15 ASTROSA HERRERA, Renato. Derecho Penal Militar. Santiago: Jurídica de Chile, 1971, p. 15, cita os casos da Índia, Atenas, Pérsia, Macedônia e Cartago. No mesmo sentido: BERMÚDEZ FLORES, Renato de Jesus. Historia del Derecho Militar. México: Instituto Nacional de Ciências Penales, 2015, p. 24.

    16 ANDREU-GUZMÁN, Frederico. Fuero militar y derecho internacional. Los tribunales militares y las graves violaciones a los derechos humanos. Bogota: Comisión Colombiana de Juristas, Comisión International de Juristas, 2003, p. 137. Disponível em: https://www.refworld.org.es/pdfid/5b6b3c934.pdf. Acesso em: 13/03/2021.

    17 MILLÁN GARRIDO, Antonio. Pasado, presente y futuro de la legislación penal militar española. Madrid: Revista Española de Derecho Militar, nº 102, julio-diciembre, 2014, p. 299-300. Refere o autor que os primeiros antecedentes da legislação penal militar espanhola se encontram na Idade Média dispersos no fuero juzgo (código visigótico), no foro real, nos foros municipais e nas partidas. É no final do século XV, após a criação dos primeiros corpos militares profissionais com organização e especialização permanente dos seus membros, que começam a ser promulgadas as Ordenações, primeiro particulares e depois gerais, que continham regimes penais rigorosos destinados especialmente em manter a disciplina das unidades criadas. Dentre as ordenações espanholas destacam-se a chamada Primeira de Flandres, emitida por Alessandro Farnese em 1587, e a Segunda de Flandres, publicada em 1701 por ordem de Filipe V, que posteriormente deu lugar às Ordens de Sua Majestade para o regime, disciplina, subordinação e serviço de seus exércitos, as famosas Ordens de Carlos III, promulgadas pelo Conde de Aranda em 1768. Disponível em: https://publicaciones.defensa.gob.es/media/downloadable/files/links/r/e/redem_102.pdf. Acesso em: 10/03/2021.

    18 MOZO SEOANE, Antonio. La jurisdicción militar. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 1992, p. 291.

    19 CHAVES JÚNIOR, ob. cit., p. 12, assevera que a permanência e estabilidade das forças militares decorria do fato na Grécia Antiga de que todo cidadão era tido como soldado da pátria.

    20 GUSMÃO, Crhysólito de. Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1915, p. 223. De acordo com o autor, inicialmente a jurisdição militar era exercida pelo archonte, uma espécie de juiz sacerdote, que conhecia dos delitos militares, julgando-os e lhes prescrevendo as necessárias e correspondentes penas, competência que foi transferida posteriormente para os estrategas e, na sequência, para os taxiarcos.

    21 LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 4, afirma que tal ocorria em face da cultural tradição de expansão do império, cuja política consistia na dominação pela força das armas e, posteriormente, na consolidação das conquistas com a justiça, leis e instituições.

    22 Para maiores detalhes sobre o Direito Militar Romano, ver: PALMA, Rodrigo Freitas. Direito Militar Romano. Curitiba: Juruá, 2010.

    23 O termo castrense é oriundo do latim castra ou castrorum, que significava fortificação militar, acampamento, quartéis de verão (castra aestiva), quartéis de inverno (castra hiberna), e, por conseguinte, caserna. CORRÊA, ob. cit., p. 19.

    24 GILISSEN, ob. cit., p. 52, consigna que Roma, na época da República e sobretudo no tempo do Império, fez a síntese de tudo o que os outros direitos da antiguidade nos tinham trazido. Ademais, os Romanos criaram a ciência do direito.

    25 De 527 a 565 d.C.

    26 CORRÊA, ob. cit., p. 4.

    27 CÁRPENTER, Luiz Frederico Sáuerbronn. O direito penal militar brasileiro e o direito penal militar de outros povos cultos. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1914, p. 11. Para maiores detalhes ver GUSMÃO, ob. cit., p. 225, que divide em quatro épocas a evolução histórica da jurisdição militar romana: 1) fase dos reis, detentores absolutos e soberanos do poder, inclusive concentrando a função de julgar; 2) fase dos cônsules e dos tribunos militares; 3) fase dos pretores; 4) fase dos magistri militum (dupla espécie de magistrados) e do consilium, este com função meramente consultiva, encarregado de assessorar os juízes militares.

    28 LINS, Edmundo Pereira. Conceituação do Crime Militar. v. 16, nº. 63. São Paulo: Revista dos Tribunais, out. 1927, p. 481.

    29 A doutrina refere que a figura do Auditor, nomenclatura conferida ao magistrado civil (ainda existente em alguns países) que, num primeiro momento assessorava os juízes militares e, depois, passou a ombrear com estes a função judicante nos colegiados julgadores, é originária de Roma, no período do primeiro imperador César Augusto (de 27 a.C. a 14 d.C.). PEIXOTO, Antonio Geraldo. A justiça militar. Brasília: Revista do Superior Tribunal Militar, 1988, p. 180. Vale citar que o jurista Balthazar Ayala foi nomeado Auditor-Geral do Exército de Flandres em 1580. Logo após, publicou a famosa obra De jure et officilis bellicis et disciplina militari, em 1582, que revolucionou a doutrina militar para manter os exércitos em boa disciplina e justiça.

    30 De outra banda, verificamos na Inglaterra medieval, por exemplo, que a manutenção da disciplina dos corpos militares era confiada aos chamados chefes de polícia e marechais, que aplicavam as ordenanças emitidas pelo rei ou pelo comandante da força, como ocorreu em 1189 por Ricardo Coração de Leão, com o objetivo de regular suas forças na Terceira Cruzada. RIAL, ob. cit., p. 16. No sistema common law há referência à uma jurisdição castrense delimitada a partir da edição, pelo parlamento inglês, do primeiro Mutiny Act, em 1689, que restabeleceu o julgamento pelos próprios pares (judgement by his peers), cuja origem remonta à Magna Carta de 1215. Referido Ato de Motim foi a primeira lei aprovada em resposta ao motim de parcela significativa do exército britânico que permaneceu fiel a James II contra William III. Partindo do modelo medieval dos tribunais criminais, foi criada a figura da Corte Marcial (Martial Court), composta por treze membros, e exigido quórum qualificado de nove votos para impor a condenação à morte. ROSA FILHO, Cherubim. A Justiça Militar da União através dos tempos: ontem, hoje e amanhã. 5ª ed. rev. e atual. Brasília: Superior Tribunal Militar, 2017, p. 14. Para maiores detalhes sobre o Army Discipline and Regulation Act, de 1879, sua formação histórica como base das disposições normativas em matéria militar para as Forças Armadas britânicas, ver: CÁRPENTER, ob. cit., p. 18-23.

    31 MELLO, Amaury de Souza. Direito Penal Militar: sua autonomia. Rio de Janeiro: Imprenta, 1958, p. 10-12, ensina que o Digesto também ficou marcado por inovar na fixação de critérios para a cominação abstrata das penas, na medida em que ponderava uma série de fatores, tais como, se o delito era praticado em tempo de paz ou de guerra, se existia conexão com outro crime (comum ou militar), se havia concurso de agentes civis ou militares, a vida pregressa do infrator, sua graduação ou posto militar, se a ação delituosa foi cessada voluntariamente ou não, além do tempo de duração do crime e suas consequências.

    32 Com a invasão dos povos bárbaros, a consequente queda do Império Romano do Ocidente e o início da Idade Média, bem como, posteriormente, com a conquista da Europa pelos árabes, não se pode falar em contribuição significativa para o Direito Militar, pois o feudalismo, marcado pela arbitrariedade dos senhores feudais e por indisciplina jurídica, foi apagando gradativamente o legado positivo deixado pela cultura romana. Em Portugal, por exemplo, esse cenário só começa a se modificar no período da reconquista no séc. XII d.C., com os monarcas da época editando as primeiras normas sobre disciplina e justiça militar, inclusive organizando as ‘hostes’. GILISSEN, ob. cit., p. 171-179; RAÚL ZAFFARONI e PIERANGELI, ob. cit., p. 179-193; MELLO, ob. cit., p. 25; ALBUQUERQUE, Ruy; ALBUQUERQUE, Martim. História do Direito Português. 10ª ed. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1999, p. 664; CHAVES JÚNIOR, ob. cit., p. 16, assevera que na profusão de leis de povos bárbaros não se encontra nenhuma disposição particular referente aos militares.

    33 GILISSEN, ob. cit., p. 202 e ss. Esclarece o ilustre professor belga que os Conselhos de Guerra eram órgãos colegiados, integrados por cinco ou mais membros, cuja atribuição era de emitir pareceres sobre ações militares ao comandante-em-chefe das tropas em operação (função administrativa), bem como de julgar os militares pela prática de crimes graves (função jurisdicional). Aos Auditores de Campo, por outro lado, que eram militares com conhecimento jurídico, ou pelo menos com certa prática em Direito, incumbia examinar e proferir relatórios e pareceres junto ao Conselho de Guerra.

    34 Os artigos sobre a arte da guerra de Maurício de Nassau e Gustavus Adolphus da Suécia, nos séculos XVI e XVII, criando formas táticas de uso combinado de infantaria, cavalaria e artilharia, foram os que lançaram as bases dos sistemas de justiça militar nos países no norte da Europa. RIAL, ob. cit., p. 17.

    35 Em 1640, visando garantir a defesa nacional e a preparação para a guerra depois de sessenta anos de dominação espanhola, D. João IV promove a criação do Conselho de Guerra, à semelhança da instituição implantada por Filipe II na Espanha em 1598, fato que parcela significativa da doutrina refere como sendo o órgão embrionário da jurisdição militar como a conhecemos em Portugal e, consecutivamente, no Brasil, na medida em que o Direito Penal Militar e a Justiça Militar, a partir deste momento, ganham autonomia, visto que ocorre um afastamento dos militares dos julgamentos realizados por tribunais civis. OLIVEIRA, Francisco Carlos Pereira da Costa. O Direito Penal Militar: questões de legitimidade. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1996, p. 28; ARAÚJO, António. A Jurisdição Militar (do Conselho de Guerra à revisão constitucional de 1977). In MORAIS, Carlos Blanco de; MIRANDA, Jorge (coord.). O Direito da Defesa Nacional e das Forças Armadas. Lisboa: Cosmos, Instituto da Defesa Nacional, 2000, p. 531; CANAS, Vitalino; PINTO, Ana Luísa; LEITÃO, Alexandra. Código de Justiça Militar Anotado. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 7.

    36 Atualmente, no Brasil, com a alteração da Lei nº 8.452/92 (Lei de Organização Judiciária Militar) pela Lei nº 13.774, publicada em 19/12/2018, a nomenclatura do cargo então definida como de Juiz-Auditor é modificada para Juiz Federal da Justiça Militar, com o intuito de conferir maior reconhecimento e identificação pela sociedade dos magistrados togados da Justiça Militar da União com a função judicante e o sentimento de pertencimento ao Poder Judiciário.

    37 NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 48.

    2 A SEGURANÇA E A DEFESA NACIONAIS COMO ELEMENTOS DO CONCEITO MACRO DA SEGURANÇA HUMANA

    No atual contexto internacional (pós-Guerra Fria), em que os riscos militares em grande espectro reduziram consideravelmente com a superação da rivalidade leste-oeste, marcado por uma série de fatos imprevisíveis e de larga escala, em que os particularismos étnicos, nacionais ou religiosos conduzem a um aumento da violência contra a população civil, de que são exemplos o enorme fluxo migratório e de refugiados, bem assim os atentados terroristas que atingem praticamente todos os continentes do globo terrestre, a dimensão interna da segurança assume notável consideração para a credibilidade dos países perante a ordem internacional. É dizer que, além do consagrado conceito da segurança externa de proteção das fronteiras nacionais, associa-se a preocupação da segurança interna como componente do todo maior que é a segurança nacional ³⁸.

    As ameaças e conflitos tradicionais de cunho interestatal são cada mais vez mais raros, dando espaço para as novas espécies de conflitos infra e intraestatais, por vezes caracterizados por disputas étnica-raciais ou provocados por fundamentalismos religiosos, para os riscos ambientais, epidemias (de que é exemplo notório o coronavírus – covid19) e catástrofes humanitárias, que assolam um sem número de vidas humanas, além dos riscos e ameaças transnacionais protagonizadas pela criminalidade organizada e pelo terrorismo.

    Disso também decorreu a necessidade de se basear a segurança num viés colaborativo entre as nações, ou seja, de evidente cooperação internacional, o que motivou a criação de alianças e celebração de tratados internacionais.

    Daí ser importante estabelecermos as noções dos atuais conceitos de segurança e defesa nacionais - missões precípuas de quaisquer Forças Armadas -, que, em verdade, decorrem de uma visão macro da segurança humana.

    Como ponto de partida gize-se que, ainda no ano de 1994, o Relatório do Desenvolvimento Humano elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)³⁹, considerou uma evolução na definição daquilo que vem a ser segurança, a qual extrapola a conceituação tradicional de defesa das fronteiras de cada nação para considerar o indivíduo e a redução de fatores de insegurança que o inflige ao longo da vida, como a criminalidade, a fome, as violações de direitos humanos, o desemprego e demais riscos sociais e os problemas ambientais, daí surgindo a perspectiva conceitual de segurança humana⁴⁰.

    Desde a formação da Organização das Nações Unidas foram identificados os componentes da libertação do medo e da liberdade de escolha como fundantes da segurança humana, de modo que seu conceito omnicompreensivo abarca as características fundamentais da universalidade, interdependência, prevenção e humanidade⁴¹.

    Esse conceito de segurança humana "parece sugerir que instituições globais, regionais e bilaterais estejam equipadas para defender e aplicar coercivamente (enforce) os padrões humanitários universais"⁴².

    Nessa linha de raciocínio, compondo um conceito global de segurança humana, que associa noções de direitos humanos, desenvolvimento e segurança⁴³, o PNUD classificou as ameaças em sete grupos: as seguranças alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, comunitária, política e econômica⁴⁴.

    Parece ser ponto comum entre os especialistas conceituar a segurança nacional como sendo:

    a condição da nação que se traduz pela permanente garantia da sua sobrevivência em paz e liberdade, assegurando a soberania, independência e unidade, a integridade do território, a salvaguarda coletiva de pessoas e bens e dos valores espirituais, o desenvolvimento normal das tarefas do Estado, a liberdade de ação política dos órgãos de soberania e o pleno funcionamento das instituições democráticas⁴⁵.

    Por outro lado, apresenta-nos a defesa nacional⁴⁶ como:

    o conjunto de medidas, tanto de carácter militar como político, econômico, social e cultural, que, adequadamente coordenadas e integradas, e desenvolvidas global e sectorialmente, permitem reforçar a potencialidade da Nação e minimizar as suas vulnerabilidades, com vista a torná-la apta a enfrentar todos os tipos de ameaça, que direta ou indiretamente, possam pôr em causa a Segurança Nacional⁴⁷.

    Em termos sintéticos, enquanto a segurança é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças, sendo um estado desejado ou o objetivo a ser alcançado pela nação, a defesa é a atividade efetiva para se obter ou manter o grau de segurança desejado, ou seja, é o conjunto de medidas para a consecução daquele fim⁴⁸. E, para que esse estado de segurança seja efetivado na prática, a defesa e a segurança interna devem estar conjuntamente presentes.

    Na concepção tradicional, vale dizer, a defesa nacional compete exclusivamente às Forças Armadas e a segurança interna compete exclusivamente às polícias.

    Atualmente, com efeito, não se mostra pertinente cuidar/analisar/estudar de modo estanque as dimensões interna e externa da segurança nacional, haja vista a interdependência entre essas feições, notadamente em virtude de a credibilidade internacional dos Estados demandar o controle e a efetividade da segurança interna, de modo que sem a garantia desta também não se deve falar em segurança externa⁴⁹.

    Estabelecidos ditos contornos conceituais dos institutos que interessam ao presente trabalho, mostra-se pertinente aferir, para podermos na sequência identificar as atuais missões das Forças Armadas, como os ordenamentos jurídicos de países como Portugal e Espanha, ilustrativamente, dispõem sobre o tema. Quanto à normatividade brasileira nesse assunto, verificaremos com mais detalhes, juntamente com outras considerações, no item 3 do capítulo III deste trabalho.

    Em Portugal, o texto constitucional refere como objetivos da defesa nacional garantir a integridade do território, a liberdade e a segurança da população contra qualquer agressão ou ameaça externas, assim sendo em respeito à Constituição Republicana, às instituições democráticas e às convenções internacionais⁵⁰.

    A Lei de Defesa Nacional (LDN) portuguesa, por seu turno, no mesmo sentido da previsão do texto magno, expõe que a defesa nacional visa a garantir a soberania

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