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O fluxo e a cesura: Um ensaio em linguística, poética e psicanálise
O fluxo e a cesura: Um ensaio em linguística, poética e psicanálise
O fluxo e a cesura: Um ensaio em linguística, poética e psicanálise
E-book165 páginas2 horas

O fluxo e a cesura: Um ensaio em linguística, poética e psicanálise

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Sobre este e-book

Ainda que Souza Jr. confesse ser J.-C. Milner quem o inspira a fazer do amor da língua um motivo para pôr a integridade desta à prova da poesia, quem rege as muitas vozes que no livro se cruzam para dizer da ruptura que a poesia opera na língua ou para testemunhar sobre a poesia são três figuras singulares no que diz respeito ao modo como responderam ao poético enquanto provocação. São eles dois linguistas insignes (F. de Saussure e R. Jakobson) e um psicanalista não menos insigne (J. Lacan): é a partir de cada um deles que o autor encara as entranhas do poético. E ele não deixa Jakobson falar sozinho, nem Lacan: coloca-os para conversar [...] com M. Foucault, J.-P. Brisset, com filósofos, poetas e loucos, sobre língua, linguagem e poesia. O autor se aproxima daqueles que se voltaram para o que há aí de perturbador não para colher deles um saber sobre o poético, mas como testemunhas do que na língua convoca a escutar outra palavra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mai. de 2023
ISBN9786555063370
O fluxo e a cesura: Um ensaio em linguística, poética e psicanálise

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    O fluxo e a cesura - Paulo Sérgio de Souza Jr.

    Prefácio

    Seria este um prefácio ou uma advertência ao leitor? A pergunta não é retórica. O livro que a suscita subtrai-se a tentativas de enquadrá-lo quer em um determinado gênero ou estilo, quer em uma área do conhecimento. E, surpreendendo pela originalidade do olhar com que seu autor varre língua e linguagem para chegar à poesia, apresenta não só o que a poesia revela dos riscos a que submete língua e linguagem, mas também, em sua vizinhança com a loucura, a que submete o próprio humano que as habita.

    Riscos vão certamente na direção contrária à dita beleza do verso e apontam para a outra face da linguagem, aquela de que somos servos, ainda que nos empenhemos a brandi-la como senhores. É mesmo a essa outra face da linguagem que aludem as figuras mitológicas que Paulo Sérgio de Souza Jr. inscreve no título de cada um dos três capítulos deste livro (A Medusa e o espelho, Tântalo e a iminência, Cassandra e o porvir) para apontar o castigo que incide sobre quem, por seus dons, atiça a inveja ou a ira dos deuses; enfim, os ameaça. Constituiria a poesia uma ameaça à língua?

    Apesar de este livro ter sido originalmente uma tese de doutorado apresentada e defendida no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, em 2012, seu autor, logo nas primeiras páginas, apressa-se em dissuadir o leitor. Na sua tese, diz ele, uma tese estará em falta, já que os argumentos que nela se tecem deixam sempre à mostra o fio que os desata. Por isso mesmo, se o subtítulo da tese em 2012 era um ensaio sobre linguagem, poesia e psicanálise, o subtítulo deste livro é um ensaio em linguística, poética e psicanálise. E o que se alterou com a mudança da preposição sobre para a preposição em não foi o texto que ora se apresenta, mas a posição que Souza Jr. veio a reconhecer que era a sua: não a de quem tece argumentos a partir de uma posição externa, mas a de quem, ao tecer, está tão emaranhado no que tece quanto os fios que emaranha.

    Isso vale de igual modo para os campos – linguística, poética, psicanálise – que, ao aproximar, ele separa, fazendo com que um interrogue o outro, barrando continuidades para, em seguida, suspender fronteiras. É que, longe de ver a poesia em continuidade com a língua ou como seu excedente estético, o que, na verdade, conduz sua investigação é uma pergunta sobre a língua formulada a partir da poesia: como a língua se faz (de) poesia? Ou, parafraseando Jean-Claude Milner ao perguntar o que é a língua se a psicanálise existe: o que é a língua se a poesia existe/ex-iste?

    Ainda que Souza Jr. confesse ser esse autor quem o inspira a fazer do amor da língua um motivo para pôr a integridade desta à prova da poesia, quem rege as muitas vozes que no livro se cruzam para dizer da ruptura que a poesia opera na língua ou para testemunhar sobre a poesia são três figuras singulares no que diz respeito ao modo como responderam ao poético enquanto provocação. São eles dois linguistas insignes (Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson) e um psicanalista não menos insigne (Jacques Lacan): é a partir de cada um deles que o autor encara as entranhas do poético. E ele não deixa Jakobson falar sozinho, nem Lacan: coloca-os para conversar, responder, contestar, acrescentar e argumentar com Foucault, Brisset, com filósofos, poetas e loucos, sobre língua, linguagem e poesia. O autor se aproxima daqueles que se voltaram para o que há aí de perturbador não para colher deles um saber sobre o poético, mas como testemunhas do que na língua convoca a escutar outra palavra.

    No seu ofício de tradutor e, mais ainda, de tradutor de psicanálise e poesia, Paulo tem escutado as línguas do mundo, isto é, tem exposto seu ouvido – seu corpo? – a suas ressonâncias. Seria desse seu trânsito pela poesia, por sonoridades destinadas a pousar em sua língua materna – uma língua nesses momentos ainda e quase materna, designada como Português do Brasil –, que nele nasceu esse duplo movimento de tornar-se linguista e, ao mesmo tempo, autorizar-se como psicanalista? De submeter a língua às suas leis e de reconhecê-las subvertidas pelas singularidades das formações do inconsciente? De colocar-se diante da poesia como algo que brota da língua, faz parte dela, mas a faz não toda, desfazendo seu tecido, privando-o de sua referencialidade; algo que põe o sentido à mercê do som, e não o som à mercê do sentido?

    É isso que me parece estar em questão em um momento do penúltimo seminário de Lacan, O momento de concluir (1977-1978), em que ele afirma algo que, como este Prefácio, é também uma advertência de perigo e urgência: Se eu disse que não há metalinguagem, foi para dizer que a linguagem não existe. Não há senão suportes múltiplos de linguagem que se chamam lalíngua, e que o que seria preciso mesmo é que a análise chegue a desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra.

    Claudia Thereza Guimarães de Lemos

    Campinas, 28 de fevereiro de 2022

    Recorte de Les Sirènes (As sirenas), gravura de Cornelis Bloemaert (1603-1692)

    Fonte: Marolles, M. de (1655). Livre IV: Les Iumeaux & les Dieux-Marins. In Tableaux du temple des muses. Paris: Antoine de Sommaville.

    Apresentação

    Nel mezzo del cammin di nostra vita

    mi ritrovai per una selva oscura,

    ché la diritta via era smarrita…¹

    É a um pedaço de folha rasgada que Ferdinand de Saussure irá confessar, no rascunho interrompido de uma carta não datada e posteriormente compilada entre seus originais, a resistência que se instalava junto ao percurso de abordagem do seu objeto de estudo. Podemos começar a vislumbrar aí o alto preço que lhe era cobrado quando, no intuito de produzir um conhecimento sistemático e mais rigoroso no âmbito da disciplina em que se inscrevia (a gramática histórico-comparativa), insistia em supor no campo da linguagem um objeto merecedor de uma disciplina autônoma:

    tenho um horror doentio pela pena, e . . . esta redação me causa um suplício inimaginável, completamente desproporcional à importância do trabalho. Para mim, quando se trata de linguística, isto é acrescido pelo fato de que toda teoria clara, quanto mais clara for, mais inexprimível em linguística ela se torna, porque acredito que não exista um só termo nesta ciência que seja fundado sobre uma ideia clara e que assim, entre o começo e o fim de uma frase, somos cinco ou seis vezes tentados a refazê-la (F. de Saussure, apud Starobinski, 1971/1974, p. 11).

    As dificuldades em jogo no trato com a linguagem podem, no entanto, ser encaradas de maneiras diversas por aqueles que sobre ela se debruçam como observadores de seus mecanismos, com vistas ao estabelecimento de um saber. Nesse sentido, é bem possível desembocar numa certa indignação com a indeterminação à qual as línguas muitas vezes condenam o estudioso, suscitando que se diga, por exemplo, que a linguagem é uma mercadoria tão vulgar e tão vil que há mais dificuldade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas, e mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto: em resumo, que nós não fazemos senão nos entreglosar (Montaigne, 1595/2000, vol. 3, p. 428, trad. modificada).

    Todavia, há quem declare enxergar nisso algum fascínio. Nesse caso, acontece de o arrebatado pela língua subverter determinados pressupostos teóricos ou se ver coibido de aceitar certos pontos que, no mais das vezes, não teria suposto necessário – ou até conveniente – levar em conta na análise. É o que se pode apontar notadamente, por exemplo, a partir das reformulações incessantes dos trabalhos de John Langshaw Austin, movimento que pouco antes de sua morte culminaria, a respeito do limite entre linguística e filosofia, em observações que denunciam um extraordinário alargamento do panorama: onde está a fronteira? Há uma em alguma parte? Você pode colocar esta mesma questão nos quatro cantos do horizonte. Não há fronteira. O campo está livre para quem quiser se instalar. O lugar é do primeiro que chegar (Austin, 1958/1998, p. 134).

    Noutras palavras, a resistência severa e atuante na construção de saber sobre o material linguístico pode ora constituir uma barreira, ora suscitar a incorporação de novos elementos a serem estudados pela disciplina, ainda que a concretude dos contornos nesses impedimentos e transições não seja muito exatamente afiançável, e tampouco sejam sempre manifestos os elementos que aí interatuam. Em todo caso, se esses elementos outrora limítrofes são capazes de encontrar espaço e sob que condições eles o fazem trata-se, porém, de outras questões. Afinal, sobretudo no que tange ao âmbito das ciências, vale ressaltar a afirmação lacaniana segundo a qual, nele, todo discurso a respeito da língua apresenta-se por meio de uma redução do material – redução que acaba fatalmente por rasurar o objeto teorizado (Lacan, 1968-1969/2008b, p. 34).

    Não é por menos que Émile Benveniste afirmava que a mudança fundamental instaurada na linguística estaria justamente no reconhecimento de que a descrição necessária da linguagem como uma estrutura formal exigia o estabelecimento de procedimentos e critérios que fossem adequados, mas que a própria realidade do objeto não podia muito justamente ser separada do método de que se valeria para defini-lo – como, aliás, o próprio Saussure já havia asseverado (Benveniste, 1962/1976, p. 127; Saussure, 1916/1972, p. 15).

    No entanto, passamos longe de estar diante de uma mera relação de amoldamento, em que o objeto tão simplesmente se adornaria conforme os ditames investigativos da voga teórica. E isso não apenas porque teríamos aí algo da ordem de um palimpsesto – dado que a rasura deixa vestígios –, mas também porque, no caso da língua, o método vai afetar um objeto pelo qual invariavelmente terá sido desde sempre afetado. Basta lembrarmos que a própria língua, afinal, antes mesmo de ser objetificada, habita todo e qualquer artifício humano de que se disponha para analisá-la, configurando uma espécie de recursão que descreve um ponto cego estrutural: só se fala da linguagem na e pela linguagem, sem que qualquer exterioridade seja possível.

    Assim, há diversos momentos em que o objeto se faz ver teimando em tomar as rédeas, ditar as regras e desmantelar o aparato descritivo que procura segmentá-lo e descrevê-lo; algo nele, por assim dizer, resiste ao suposto exterior sugerido muitas vezes sob o título de metalinguagem. E é um caso como esse, por sinal, que suscita o presente texto: tendo em vista um abatimento que acreditamos ser constitutivo – na medida em que, como alertado acima, em termos de língua, a ciência pode faltar (Milner, 1978/2012, p. 9) –, nos veremos aqui diante de uma questão que diz respeito ao âmbito de um desconto bastante específico nos estudos linguísticos, a saber: o poético.

    Convém articular em que medida a instância poética encarna um granus salis, um grão de sal para a ciência da linguagem: ou é por ela considerada uma excrescência, ou resta forçosamente diluída nos humores do uso cotidiano da língua, como um dado capaz de ser encerrado num conjunto que se pretende uma totalidade, homogeneizado entre outros em favor de uma estrutura esperançosamente sólida – ao passo que, com Jacques Lacan, o poético chega decisivamente a constituir, enquanto ruptura, uma esfera

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