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Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino: Sociedade, Feminino, Metaficção
Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino: Sociedade, Feminino, Metaficção
Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino: Sociedade, Feminino, Metaficção
E-book359 páginas4 horas

Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino: Sociedade, Feminino, Metaficção

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Sobre este e-book

É frequente percebermos o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, como um clássico da literatura brasileira e das literaturas de língua portuguesa. Mas o que, afinal de contas, garante a dimensão de clássico a uma obra literária? Parte da resposta está no excelente estudo Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino: sociedade, feminino, metaficção, de Ariane da Mota Cavalcanti: ao estudar os ecos da obra-prima machadiana em romances escritos por dois dos mais importantes ficcionistas brasileiros do século XX – Graciliano Ramos e Fernando Sabino –, Ariane nos demonstra que um clássico se mantém vivo por meio da admiração e das infatigáveis releituras das sucessivas gerações de autores e autoras. Dom Casmurro, portanto, é relido pela crítica literária e pela pesquisadora não somente em suas próprias páginas, mas também nos romances São Bernardo, de Graciliano Ramos, e Amor de Capitu, de Fernando Sabino.
Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino é obra de crítica densa, que não renuncia ao rigor teórico e metodológico, mas empreende suas análises literárias conciliando profundidade e fluidez de leitura. Partindo de uma revisão crítica de alguns momentos fundamentais da fortuna crítica sobre Machado de Assis, Cavalcanti debate com riqueza conceitos teóricos como tradução, reescritura, discurso bacharelesco e a ideia do feminino, a fim de construir novas articulações críticas sobre os três autores estudados. Sua leitura guia-se por dois vetores: as semelhanças entre Dom Casmurro e os romances posteriores; e as diferenças entre as três obras. A atenção às diferenças, aliás, revela-se especialmente fecunda, porque é nas suas entrelinhas que entenderemos não só a recepção modernista e contemporânea de Dom Casmurro, como também os sempre complexos elos entre representação literária, tempo histórico e mudanças culturais.
Dessa maneira, este livro posiciona-se como obra de referência tanto para pesquisadores e pesquisadoras especializados em Machado de Assis, Graciliano Ramos e Fernando Sabino, quanto para todos aqueles que possuam o objetivo de aprofundar suas reflexões sobre três importantes romances brasileiros, livros cuja riqueza de interpretações está longe de se esgotar.
Cristhiano Aguiar
Escritor (prêmio Clarice Lispector, 2022/Biblioteca Nacional) e Professor Doutor de Literatura da Universidade Presbiteriana Mackenzie
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de abr. de 2023
ISBN9786525037943
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    Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino - Ariane da Mota Cavalcanti

    capa.jpg

    Sumário

    CAPA

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    DOM CASMURRO EM MOVIMENTO

    1.1 Como o livro de areia

    1.2 Próximo ao status de mito literário

    1.3 Um texto escrevível

    1.4 Dom Casmurro em três versões

    1.4.1 O foco na imagem feminina

    1.4.1.1 José Veríssimo e João dos Santos

    1.4.1.2 Lúcia Miguel Pereira

    1.4.1.3 Augusto Meyer e Eugênio Gomes

    1.4.1.4 A imponência de um feminino pérfido

    1.4.2 O foco em Dom Casmurro: o discurso bacharelesco

    1.4.2.1 Helen Caldwell

    1.4.2.2 Silviano Santiago

    1.4.2.3 Roberto Schwarz

    1.4.2.4 John Gledson

    1.4.2.5 A abertura e a (de)limitação em um recorte analítico específico

    1.4.3 O foco no ceticismo e na problematização da escritura do livro

    1.4.3.1 José Raimundo Maia Neto e o ceticismo pirrônico

    1.4.3.2 Abel Barros Baptista e a autobibliografia

    1.4.3.3 Mais abertura

    1.5 Dom Casmurro aqui e agora

    CAPÍTULO 2

    A TRADUÇÃO COMO REESCRITURA

    2.1 Eneida Maria de Souza: tradução e intertextualidade

    2.2 Else Vieira: por uma teoria pós-moderna da tradução

    2.3 João Alexandre Barbosa: Envoi, a tradução como resgate

    2.4 Traduzindo: o que se leva adiante

    CAPÍTULO 3

    A TRADUÇÃO DE DOM CASMURRO EM SÃO BERNARDO

    3.1 A leitura escreve a tradução

    3.2 A tradução e o contexto ficcional do Romance de 30

    3.3 Graciliano e Machado/São Bernardo e Dom Casmurro

    3.4 São Bernardo ressignifica Dom Casmurro

    3.4.1 O discurso bacharelesco minado

    3.4.2 A imagem feminina: um suplemento intelectual e socialista

    3.4.3 O perfil cético e autobibliográfico em São Bernardo

    3.4.3.1 O ceticismo na escrita de Paulo Honório

    3.4.3.2 A autobibliografia em São Bernardo

    CAPÍTULO 4

    A TRADUÇÃO DE DOM CASMURRO EM AMOR DE CAPITU

    4.1 A autoria declara a tradução

    4.2 A tradução e o ritmo paródico do contexto ficcional de 1990

    4.3 Amor de Capitu ressignifica Dom Casmurro

    4.3.1 A retórica da verossimilhança transvertida para a terceira pessoa

    4.3.2 A imagem feminina sob a marca de Dom Casmurro

    4.3.3 O ceticismo traduzido em tripla realização e a autobibliografia minada

    CONCLUSÃO

    5.1 A diferença na dissolução da retórica da verossimilhança

    5.2 As imagens do feminino

    5.3 As ressignificações do ceticismo e da autobibliografia

    REFERÊNCIAS

    SOBRE A AUTORA

    SOBRE A OBRA

    CONTRACAPA

    Traduções de Dom Casmurro em

    Graciliano Ramos e Fernando Sabino

    sociedade, feminino, metaficção

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Ariane da Mota Cavalcanti

    Traduções de Dom Casmurro em

    Graciliano Ramos e Fernando Sabino

    sociedade, feminino, metaficção

    Para a memória de Sônia Lúcia Ramalho de Farias, a intelectual mais completa com quem já convivi, orientadora desta pesquisa, professora que fomentou a base de minha formação em Teoria literária, que me ensinou a estudar com método a Literatura. Sônia é uma força inspiradora, uma referência de sabedoria, excelência, seriedade na profissão e, sobretudo, de imensa generosidade.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço primeiro à Sônia Ramalho, minha querida orientadora, não apenas pela total assistência durante o mestrado, mas também por acompanhar a minha trajetória desde a graduação. Sônia deixa as suas marcas na minha história acadêmica por ter me oferecido a descoberta do que é estudar literatura com sistematicidade e compromisso teórico; por ter me mostrado o que é ensinar e, simultaneamente, conferir ao aluno a possibilidade da autonomia intelectual. Esse percurso científico, desde o início até a última página, só se explica porque ela passou por mim. Inúmeras aulas, encontros, e-mails, livros emprestados... Minha gratidão é insuficiente para responder à sua generosidade e ao seu profissionalismo.

    Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL/UFPE), coordenado durante a execução da pesquisa titularmente pela professora Ângela Dionísio, por quem guardo grande admiração pela competência de seu trabalho. Com o auxílio do programa, que cresceu significativamente com a iniciativa da equipe coordenada por Ângela Dionísio, tive acesso ao apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), o qual foi fundamental para que eu pudesse dedicar-me integralmente à realização da pesquisa.

    Ao professor e vice-coordenador do PPGL/UFPE, Anco Márcio Tenório Vieira, devo muitos agradecimentos. Não somente pelas aulas durante o curso, bem-vindas como felizes surpresas que, reconhecidamente, alargaram meus posicionamentos críticos e teóricos, como também pela sua sempre acessibilidade e interesse em colaborar com meu trabalho, sugerindo referências bibliográficas decisivas para o desenvolvimento da pesquisa e, inacreditavelmente, disponibilizando sua biblioteca pessoal.

    Ao professor Aldo de Lima do Departamento de Letras da UFPE, agradeço por ter, ainda nos anos iniciais da graduação, instigado significativamente minha curiosidade pela noção de sistema literário brasileiro, presente na obra Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido. Foi desse embrião cativado por ele que me veio mais tarde a iniciativa de estudar como os escritores brasileiros passam a tocha entre si, dinâmica altamente presente entre os romances recortados neste trabalho.

    Agradeço de maneira muito especial à professora Else Ribeiro Pires Vieira, da Queen Mary University of London. Estive com Else Ribeiro em julho de 2008, em um simpósio sob sua coordenação, dentro do XI Encontro Internacional da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) realizado na Universidade de São Paulo, ocasião em que tive a oportunidade de solicitar a sua tese de doutorado, à qual, meses antes, já vinha tentado ter acesso pela internet sem nenhum êxito, pois não estava publicada no meio. A professora foi imensamente generosa por se dar o trabalho de fazer uma cópia da tese e enviá-la por Sedex ao meu endereço em Recife. Sua enriquecedora pesquisa, por uma teoria pós-moderna da tradução (1992), é uma das bases teóricas centrais desta obra que, certamente, perderia em muito se não fossem a simpatia e a disponibilidade que ela demonstrou diante da minha solicitação.

    Agradeço aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em Letras dos quais fui aluna: Lourival Holanda, Lucila Nogueira, Roland Walter, Yaracilda Coimet e a saudosa Piedade Sá, pelo significativo desenvolvimento que me proporcionaram em suas respectivas disciplinas, as quais frutificaram comunicações e publicações que, então, pesam positivamente no meu currículo acadêmico.

    Agradeço aos amigos que me fizeram companhia nesta travessia. São muitos e nobres os jagunços que desbravaram comigo este Grande sertão. As veredas repartem-se em muitos nomes: Raul Azevedo, Rebeca Santos, Clederson Diego, Joelma Santos, Frederico Machado, João Batista, Kleiton Pereira, Cristhiano Aguiar, Eduardo França, Denise Faria, Conrado Falbo, Bárbara Roberta, Luciana Escoperrante, Marta Virgínia, Maria das Graças Dias, Tereza Katarina, Zilda Oliveira. Lindos e vibrantes, meus amigos.

    Agradeço ao meu companheiro Aloizio Lima Barbosa pelo incentivo a esta publicação, pela perene dedicação amorosa.

    E a mais precípua gratidão: a vovó Nina e a meus pais Ernani e Mariluza. Ao amor que vejo entre os dois e deles recebo: meu apoio e impulso.

    Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.

    (Grande sertão: veredas)

    PREFÁCIO

    Dom Casmurro à luz de sua recepção

    Machado de Assis talvez seja um dos escritores mais abordados e menos compreendidos de nossa literatura. A controvérsia que sempre cercou sua complexa produção, sobretudo a romanesca, aponta as dificuldades de leitura da obra do autor fluminense ao longo da fortuna crítica que assinala sua recepção. Por outro lado, o fascínio que sua narrativa desperta em outros ficcionistas e estetas tem motivado retomadas diversas por parte da produção literária nacional, que busca recriá-la sob diferentes gêneros e inusitados ângulos. Esse duplo aspecto de interpretação crítica e ficcional motiva a abordagem inovadora de um dos romances mais discutidos do autor, Dom Casmurro (1899), cuja cadeia polissêmica vem agora ressignificada pela leitura crítica de Ariane da Mota Cavalcanti, Traduções de Dom Casmurro em Graciliano Ramos e Fernando Sabino: sociedade, feminino, metaficção, originalmente apresentada como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco, em 2009, sob título diverso.

    O desafio da empreitada da ensaísta é de cortar o fôlego. Consiste em atualizar a narrativa machadiana, considerando simultaneamente o texto do bruxo de Cosme Velho em diálogo com a fortuna crítica do autor e suas traduções-reescrituras em dois significativos exemplares da literatura brasileira, inseridos em contextos diferentes do século XX: São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, e Amor de Capitu (1998), de Fernando Sabino. O estudo recorta quatro balizas de leitura (a imagem feminina, o discurso bacharelesco, o ceticismo pirrônico e a autobibliografia), rastreando ao longo do tempo importantes abordagens de Machado, em confronto com o romance em destaque e as obras que o reescrevem/traduzem nas respectivas décadas de 30 e 90 do século XX. Como se não bastasse, o diálogo ficcional e crítico é ancorado nos correspondentes momentos histórico-culturais que imprimem suas marcas na variedade discursiva que retoma a ficção machadiana e, consequentemente, no panorama contextual oitocentista do texto-matriz. A empreitada não se esgota aí. Caracteriza ainda o ensaio de Ariane da Mota Cavalcanti uma gama de subsídios teórico-metodológicos a fundamentar a análise, o que imprime rigor, sistematicidade e reflexão crítica à abordagem dos textos correlacionados.

    As recorrentes vertentes críticas selecionadas na análise da autora e sua retomada literária em novas e constantes versões ficcionais indicam, simultaneamente, de acordo com Ariane, a expansão ininterrupta de Dom Casmurro na história de sua recepção, assim como a mutação do significado da obra no decorrer do tempo. Considera-se aí o caráter reescrevível (BARTHES, 1992) do romance: sua ressignificação pela crítica, pela literatura e pelas demais produções estéticas (cinema, teatro, dança, documentário, traduções, entre outras).

    Não cabe, obviamente, neste prefácio reduplicar a árdua tarefa da ensaísta, reconstituindo em detalhes e parafrasticamente seu longo caminho percorrido. Imprescindível, no entanto, nomear e resumir aqui alguns momentos capitais do ensaio, a fim de contextualizar as etapas do percurso trilhado. Justifica-se, portanto, a recuperação de aspectos centrais do estudo, a seguir delineados.

    Como se deduz do ensaio motivador deste prefácio, a leitura da pioneira fortuna crítica de Machado centra-se, majoritariamente, na figura feminina de Capitu, identificada como adúltera ou, no máximo, como mulher enigmática e misteriosa, sem problematizar a fundo o caráter ambíguo das acusações do narrador-protagonista, Bento Santiago, cujo objetivo na escrita da obra seria levantar suspeitas e acusações acerca da infidelidade da esposa. Esse procedimento torna-se responsável pela denominação de seus iniciais intérpretes como a tradição da traição. Epíteto motivado, como é óbvio, pela representação linear da mulher via estigma do adultério e imagem da femme fatale. No rastreamento do contexto sócio-histórico que informa tal produção crítica, Cavalcanti levanta e discute as razões da identificação dessa figuração pérfida do feminino. Considera, assim, a ideologia patriarcal subjacente ao contexto europeu da época e, em consequência, ao ponto de vista machista e autoritário do narrador machadiano, endossado por seus intérpretes iniciais. Não obstante alguns, a exemplo de Lúcia Miguel Pereira, José Veríssimo, Eugênio Gomes e Carvalho Pires, apresentarem, por vezes, não sem contradição e impasses, uma perspectiva incidente no tom enigmático e dubitativo do romance, contrariando, até certo ponto, a imagem unívoca e redutora acerca da protagonista, predominante nessa primeira geração crítica de Machado.

    A segunda baliza de leitura crítica em torno do escritor fluminense desloca o foco da figura feminina para enfatizar o discurso bacharelesco do narrador-protagonista, tido agora como um dos elementos capitais da obra. Identificada a partir da chamada virada Caldwell, cujo marco é o livro da escritora americana Helen Caldwell, The Brazilian Othelo de Machado de Assis (1960), essa vertente dá forma sistemática a algumas investidas analíticas da geração precedente, que apenas de maneira superficial tangencia a não confiabilidade do discurso suspeito do narrador Casmurro, sua dicção passional e ardilosa, e o consequente suposto caráter infiel de sua esposa, Capitu. Na linhagem da autora norte-americana, destacam-se na fortuna crítica nacional e estrangeira seguidores, como Silviano Santiago (2000), Roberto Schwarz (1997) e John Gledson (2005). A despeito da diferença dos subsídios teórico-metodológicos de suas escritas, todos eles enfatizam o ciúme do narrador, não mais o problemático adultério da protagonista, como temática motivadora da escritura de Machado. Passam, assim, a investigar os argumentos comprometedores da retórica escorregadia do narrador-protagonista machadiano. Problematizam sua pretensa verossimilhança. Essa segunda geração crítica acata e suplementa − ver a noção de suplemento em Derrida (2002) − os argumentos pioneiros de Caldwell, ancorando suas respectivas leituras no solo histórico-cultural e ideológico da sociedade burguesa e patriarcal brasileira que informa o texto de Machado de Assis, na reta final do século XIX. Contexto esse que passa a ser problematizado pela ótica subjacente do autor, a qual mantém um distanciamento crítico e irônico em face dos estratagemas retóricos de seu narrador-protagonista.

    A terceira vertente crítica de Dom Casmurro, representada por nomes como José Raimundo Maia Neto (2007) e o português Abel Barros Baptista (1994), circunscreve a abordagem do romance a dois aspectos: o ceticismo pirrônico e a autobibliografia, os quais contemplam a problematização da escritura do livro do autor suposto, Casmurro, via metalinguagem romanesca. O primeiro aspecto é abordado especificamente por Maia Neto. O ensaísta busca uma identidade cética para o narrador-protagonista, por meio do conceito de ceticismo pirrônico. Essa noção consistiria na suspensão de qualquer juízo, ou seja, na dificuldade ou impossibilidade de fazer asserções: a equipolência do discurso de Bento Santiago. Daí sua indecidibilidade (DERRIDA, 2002) acerca da subjetividade opaca e incerta, nebulosa, de Capitu, causa principal de sua condição casmurra.

    A leitura de Abel Barros Baptista aborda a questão da autobibliografia tematizada no interior da obra. Esta extrapolaria a simples biografia de Bento Santiago, na medida em que o narrador-protagonista não se limita a contar sua história, unindo as duas pontas da vida. É ele próprio autor de um livro dentro do livro de Machado. E, nessa condição, passa a discorrer sobre seu estatuto de escritor e sobre a escritura de seu romance, em um processo metaficcional paradigmático à ficção machadiana, que problematiza o ato de escrever e o produto da escrita. No rastreamento desse processo, visto como tema central do livro encaixado no romance encaixante, Baptista questiona a leitura do grupo da virada Caldwell. Esta, segundo ele, buscaria destacar, prioritariamente, na escrita do livro do protagonista-escritor, uma intenção acusatória una e inteiriça, improvável de se determinar sem dúvidas.

    Ao justapor as três vertentes interpretativas do livro, Ariane esclarece que cada versão não deve sobrepor-se às demais. O objetivo do trabalho não é hierarquizar uma interpretação sobre a outra, em um critério de leitura falsa/verdadeira. Seu propósito é delinear a contribuição de cada uma delas, seus avanços, impasses, possíveis contradições e limites. Em suma, os suplementos que oferecem na história da recepção da narrativa machadiana, e seus diferentes recortes teóricos e metodológicos.

    A par desse intento, a ensaísta pernambucana procura ler os romances de Graciliano Ramos e Fernando Sabino, considerando a contribuição fornecida pela crítica, e os novos aspectos estéticos e ideológicos acrescidos a Dom Casmurro pela reescritura literária do romance. Melhor dizendo, ela busca detectar em cada obra suas respectivas ressignificações do imaginário ficcional de Machado. Assim, a atualização da ficção machadiana no presente da enunciação do texto de Cavalcanti torna imprescindível a consideração do movimento da obra, sua flexibilidade e variedade de sentidos no sistema crítico e literário brasileiro.

    A análise comparativa de São Bernardo e Amor de Capitu revisita os problemáticos conceitos teóricos de tradução, intertextualidade, leitura suplementar, pastiche, paródia, ícone, dialogismo, entre outros, tomados de empréstimo de diversificada bibliografia nacional e estrangeira, para estabelecer a relação dialógica dos dois romances com a escrita de Dom Casmurro, no cotejo de suas semelhanças e diferenças. No caso do romance de Graciliano Ramos, a tradução do livro original difere daquela do texto de Fernando Sabino, a começar mesmo da ideia de intencionalidade inexistente na autoria da obra de 1934. Ao contrário de Amor de Capitu, cuja alusão ao romance de Machado ocorre a partir do título e da vontade literal do texto de se autorreconhecer como uma recriação paródica de Dom Casmurro, o livro do romancista alagoano em momento algum alude ao de Machado. Tampouco o autor a ele se refere. A peculiaridade de sua tradução seria determinada, segundo Ariane, não pela autoria, mas pela leitura da obra, conforme a ensaísta se propõe a demonstrar, por meio do destaque dos aspectos em comum e divergentes de ambos os romances, em cotejo com o texto de origem.

    A leitura comparativa retoma, assim, as três balizas das sucessivas gerações da fortuna crítica de Machado, em busca de suas peculiaridades nas obras que as reescrevem. Constata, pois, a diferença da dissolução da retórica da verossimilhança em cada romance, a tematização diferenciada da figura feminina, do ceticismo pirrônico e da autobiografia nas correspondentes obras em cotejo. Diferenças não apenas presentes nas composições de São Bernardo e Amor de Capitu, mas também motivadas, em parte, pelo contexto histórico, social e literário dos anos 1930 e 1990, que respectivamente as subsidiam. O diálogo com Dom Casmurro e com os intérpretes que problematicamente o revisitam detém-se, sobretudo, no tratamento diferenciado conferido ao tema do ciúme na trama dos respectivos romances; na manutenção ou deslocamento da perspectiva narrativa de cada um deles em face do ponto de vista subjetivo, em primeira pessoa, de Bento Santiago; e nas implicações estéticas e ideológicas que isso acarreta na retomada do enfoque do adultério e da pretensa traição feminina.

    Na esteira de Machado, cuja obra, situada na periferia da metrópole europeia e ancorada na problematização da cor local, fornece resposta inusitada à ficção eurocêntrica de sua época, assumindo, via suplementaridade, o entre lugar do discurso latino-americano, como querem as reflexões pioneiras de Silviano Santiago (2000), os romances de Graciliano e Sabino, igualmente contestadores, questionam, cada um a seu modo, em diferentes momentos da historiografia literária brasileira e em lócus contextual diverso, os paradigmas ficcionais e críticos da literatura nacional, ao inovar na ressignificação de Dom Casmurro. O primeiro mantém a perspectiva narrativa em primeira pessoa do narrador-protagonista Bento Santiago, o análogo olhar machista e autoritário do representante da elite senhorial brasileira e a recuperação retrospectiva de sua vida por meio da autobibliografia, que intenta escrever no âmbito do romance de Graciliano Ramos. Assumindo, no entanto, um diálogo com o discurso das Ciências Sociais de sua época, o romance de Graciliano incide seu olhar no perfil reificado e reificador do fazendeiro Paulo Honório, responsável agora pela reconfiguração da imagem feminina, em novos moldes. A ênfase não recai mais no corpo e nas atitudes supostamente traiçoeiras da esposa infiel, mas no comportamento socialista e intelectual da professora Madalena, por meio do olhar burguês que a reconfigura. Assim, a obsessão ciumenta de Paulo Honório é representada não mais como decorrente de uma perspectiva naturalista pela qual Bento Santiago, informado em parte pela conjuntura intelectual e científica da época oitocentista, enxerga o perfil feminino. Em São Bernardo, o ciúme decorre, como bem o demonstra Traduções de Dom Casmurro, da noção de propriedade, que julga improcedente a tendência socialista da mulher, no conceito do fazendeiro arrivista, cuja encenação ficcional crítica tem seu esteio no cientificismo do contexto em pauta.

    Quanto a Sabino, ressignifica o romance do fundador da Academia Brasileira de Letras pela recorrência ao recurso da paródia, que problematiza o discurso subjetivo do narrador machadiano, deslocando a perspectiva narrativa para a onisciência da terceira pessoa, sem se isentar, no entanto, de tomar partido acerca da figura feminina, em uma atitude ambígua em face do texto-matriz. Basta conferir, conforme registra Ariane da Mota Cavalcanti, sua intenção declarada no subtítulo da obra: ler fidedignamente o romance de Machado sem o narrador Dom Casmurro. Com tal propósito, mina em parte o discurso bacharelesco do ex-seminarista e advogado Bento Santiago, elidindo trechos da sintaxe casmurra, entre outros procedimentos linguísticos. Reatualiza, assim, em termos ficcionais, o conceito de paródia de dois gumes, de Linda Hutcheon (1991), para quem a práxis paródica na poética do pós-modernismo caracteriza-se como uma reescritura paradoxal e ambígua, simultaneamente reverente e transgressora em face do texto parodiado: paródia de dois gumes. A reatualização ficcional desse recurso no romance de Sabino possibilita ao narrador manter uma postura ao mesmo tempo próxima e distante, diante do modelo original de Dom Casmurro. Em consequência, traduz o tema do adultério e o perfil feminino, ao mesmo tempo endossando e contestando a perspectiva retórica da narrativa matriz. Nesse sentido, o narrador de Sabino representa a figura feminina, adotando, simultaneamente, uma distância crítica da perspectiva do narrador machadiano e um endosso a seus argumentos. Conserva, portanto, um viés análogo ao de Bento Santiago acerca da ambiguidade da mulher, vendo-a, concomitantemente, como fiel e traiçoeira, embora em ambos os romancistas essa visão seja hierarquizada em prol do julgamento negativo sobre o positivo. Tal concordância não impede Sabino de introduzir, na narrativa como um todo, uma dicção irônica da diferença no próprio âmago da semelhança. Vale relembrar o subtítulo da obra, em que se propõe a reescrever fidedignamente o romance machadiano sem o narrador de Machado. Isto é, deseja ser fiel ao texto anterior, postulando sua não credibilidade. O romance aponta, pois, via ironia, para o caráter duvidoso do narrador machadiano. Caráter não confiável ou pouco digno de confiança (BOOTH, 1961), embora o imite pelo pastiche paródico, segundo Silviano Santiago (2020). Paradoxo típico da prática ficcional pós-moderna, ou pós-modernista, nos termos de Hutcheon, que a ela recorre como estratégia de diálogo com as obras antecessoras, conforme demonstra o ensaio da autora.

    Se, em 1899, o romance Dom Casmurro contesta, via tematização do ciúme, o modelo europeu de adultério, tomado de empréstimo de Flaubert e Eça de Queiroz (Madame Bovary, 1857, e O primo Basílio, 1878, respectivamente), a narrativa do autor de Vidas secas, ao revisitar o mesmo tema, sob a perspectiva do fazendeiro arrivista no interior do sertão nordestino, fratura, na década de 1930, a concepção neonaturalista (SÜSSEKIND, 1984) vigente na produção literária circundante, rompendo a analogia especular entre o Brasil e o gênero romanesco que o representa. Já Sabino, quando encampa, subjacentemente, nos anos de 1990, o conceito de paródia de dois gumes, oferece um contraponto ao predominante uso unívoco do termo como contracanto, na práxis literária do Modernismo brasileiro. Práxis atualizada entre nós, sobretudo, na produção poética daquele movimento, cujo exemplo típico mais significativo nesse sentido é a radical revisitação do Romantismo nacionalista e ufanista na obra de Oswald de Andrade,

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