Olhar Raro: IV Congresso Ibero-americano de Doenças Raras
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Sobre este e-book
As páginas desta publicação, Olhar Raro: IV Congresso Ibero-americano de Doenças Raras, são resultado da quarta edição do Congresso Ibero-americano de Doenças Raras, realizado, em 2021, de maneira remota, pela Associação MariaVitoria de Doenças Raras e Crônicas (Amaviraras) com o apoio institucional da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (FEBRARARAS).
A elaboração da obra partiu da transcrição dos conteúdos das principais palestras realizadas pelos profissionais de saúde do Brasil, da Argentina, de Portugal, dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, pacientes, familiares, parlamentares, estudantes e pesquisadores, no sentido de fomentar discussões acerca das necessidades e dos obstáculos enfrentados por pessoas com condições raras de saúde.
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Olhar Raro - Lauda Santos
PREFÁCIO
Caro leitor,
Este livro é fruto de um congresso internacional preparado e realizado, com muito empenho, considerando que o mundo das doenças raras necessita de você.
A vida de uma pessoa com necessidades especiais pode ser facilitada quando ela encontra pessoas empáticas dentro e fora de casa. A empatia é o ato de se colocar no lugar do outro e de se solidarizar sendo também simpático. Nesse caso, a informação a respeito da doença e o guiar dos passos da pessoa doente é primordial. Dentro desse contexto, temos as associações. A Amaviraras (Associação MariaVitória) é um exemplo das associações que somam os próprios conhecimentos com os dos profissionais da área de saúde, especializados e capacitados em suas áreas de atuação, para informar a população em geral. Saiba que isto já é o início de um tratamento. Essa associação surgiu a partir de um estado de extrema dor de uma mãe que transformou o sofrimento em oportunidade de facilitação para pessoas que têm doenças raras e(ou) seus familiares.
Como profissional da área de saúde, em minha jornada como médica especializada em neurocirurgia e subespecializada em funcional, formada em duas grandes universidades internacionais de referência mundial, sempre me dediquei a realizar com excelência o meu trabalho. Hoje compreendo a importância dessa dedicação para o meu desempenho em ajudar o próximo, assim como dar oportunidade de aprendizado aos outros profissionais a fim de que haja um avanço no diagnóstico e no tratamento das pessoas com doenças raras no Brasil.
Sabemos que esse processo não envolve somente a população civil organizada, mas também os municípios, os estados e o Governo Federal. Se cada um fizer a sua parte no sentido de ajudar o próximo, avançaremos mais rapidamente, possibilitando que os pacientes sejam encaminhados a uma rede multidisciplinar para receberem um tratamento qualificado.
Nós, da Amaviraras, compreendemos que para um paciente, o fato de ele receber o apoio de uma instituição voltada para a sua condição é de suma importância, porque mediante esse apoio, pode ser que ele seja direcionado a uma rede multidisciplinar e tenha um tratamento qualificado, pois essa instituição tem como principal objetivo fazer ouvir uma voz unificada na busca de uma melhor qualidade de vida para aqueles por quem trabalha. Assim, nossa missão presa pelo bem de seus envolvidos e se sustenta em ações contínuas, as quais se diferenciam de uma simples assistência pela busca do melhor tratamento, pautadas em valores éticos, respeitando os pacientes, para que tenham, por meio desse trabalho, seus direitos representados e a garantia dos benefícios já conquistados.
Quando a atual presidente da Amaviraras e vice-presidente da Febrararas me confiou a Diretoria Científica do IV Congresso Ibero-americano, como também este prefácio, fiquei muito feliz. Somos amigas há alguns anos. Não me recordo de alguma vez ter encontrado minha amiga Lauda Santos e que nossa conversa não tenha sido mais de 50% no sentido de ajudar pacientes com doenças raras. Lauda é uma pessoa incrível e se destaca ainda mais pelo seu trabalho de conseguir alinhar as pessoas de maneira tão alegre. Parabéns!
Esperamos (eu e todos os envolvidos nesta obra) que este livro chegue às mãos das pessoas que o usarão como ajuda no percurso da própria jornada ou para facilitar a vida de outros.
Dra. Ana Maria Ribeiro de Moura
Graduada em Medicina pela Escola Estadual
Baiana de Medicina e Saúde Pública.
CAPÍTULO 1
Doenças raras no Distrito Federal
Dra. M. Teresinha Cardoso
O início
Ocaminho que percorri até o momento pode ser comparado a uma epopeia, uma trajetória heroica!
A Genética passou a fazer parte desta trajetória quando fui convidada pelo catedrático do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo (USP), o professor Warwick Estevam Kerr, no final do primeiro semestre do curso de graduação em Medicina, para fazer parte de sua equipe de pesquisa, com bolsa de iniciação científica, onde permaneci até o final do curso.
No decorrer do quarto ano da graduação, a professora Iris Ferrari do Departamento de Clínica Médica (USP) passou a fazer parte do Departamento de Genética, e iniciou um projeto junto à APAE de Ribeirão Preto, do qual participei como integrante, com bolsa de iniciação científica do Departamento de Genética.
Minha mudança para Brasília ao final do curso de Medicina coincidiu com a ida da professora Iris para a Holanda com o intuito de realizar seu pós-doc. Ao retornar, em 1989, ela assumiu a chefia do Departamento de Genética e iniciou a organização da primeira residência em Genética Médica do Brasil em Ribeirão Preto.
Em 1988, a professora Iris, convidada pela Universidade de Brasília, deu início ao mestrado em Imunologia e Genética aplicada e subsequente ao doutorado em Patologia Molecular.
Em 1989, passei a fazer parte de sua equipe de pós-graduandos, com bolsa de aperfeiçoamento, de mestrado e de doutorado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Neste período de 10 anos em que estive na UnB, organizei concomitantemente um serviço de Genética Médica na Rede Hospitalar da Secretaria de Saúde do Distrito Federal-DF, constituindo o primeiro Serviço de Genética Médica no Sistema Único de Saúde.
Em 2001, após a elaboração do projeto básico para inclusão da Genética Médica no quadro de especialidades médicas da Secretaria de Saúde do DF, conseguimos a aprovação deste projeto pela Câmara Distrital e, como consequência, a criação do quadro de geneticista na Rede Hospitalar, com a ocorrência do primeiro concurso público para esta especialidade, em 2002, com o quadro sendo constituído, a princípio, por três geneticistas. Em razão de sucessivos concursos, podemos contar atualmente com 13 profissionais na Rede Hospitalar com título de especialista em Genética Médica.
Em 2007, após a aprovação, pelo MEC, do nosso projeto de Residência em Genética Médica, na Rede Hospital do DF, iniciamos a primeira Residência em Genética Médica do Centro-Oeste.
Atualmente, 50% de nossa equipe médica que compõe as duas Unidades de Genética, organizadas no Hospital de Apoio de Brasília e no Hospital Materno Infantil de Brasília são de profissionais provenientes dessa Residência Médica.
Conquistas
Apesar de haver muito a se conquistar, grandes passos já foram dados nas políticas públicas do Distrito Federal e devem ser celebrados.
Em 2008, foi aprovada a Lei Distrital nº 4.190, que ampliou a triagem neonatal no DF.
Em 2013, foi aprovada a Lei Distrital nº 5.225, que institui a Política para Tratamento de Doenças Raras no Distrito Federal.
Em 2014, a Portaria nº 199 instituiu a Política Nacional para assistência global aos pacientes com doenças raras.
Em dezembro de 2016, obtivemos o credenciamento do Hospital de Apoio como Centro de Referência em Doenças Raras e Serviço de Referência em Triagem Neonatal Ampliada, único em sistema público na América Latina.
Em 2017, conseguimos também que o Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) fosse credenciado como Centro de Referência, para que esse hospital pudesse ser a porta de entrada de crianças com doenças raras em decorrência da logística de atendimento de recém-nascidos e crianças, considerando sua estrutura hospitalar que conta com UTI Neonatal e Pediátrica, enfermarias para internações e um serviço de emergência pediátrica.
Para que isso fosse possível, foi desenhada uma logística dentro da Rede Hospitalar, direcionando o fluxo de recém-nascidos e de crianças com até 9 anos de idade para o HMIB, e aqueles, a partir dos de dez anos de idade, encaminhados para o Hospital de Apoio. Sendo que, a triagem neonatal ampliada ficou concentrada no Centro de Referência da Unidade de Genética do Hospital de Apoio de Brasília (HAB).
Em 2019, foi aprovada a Lei Distrital nº 6.382, que amplia a Lei Distrital nº 4.190/2008 para triagem de doenças lisossomais e imunodeficiência severa combinada (SCID).
Por fim, em 2021, foi aprovada a Lei Distrital nº 6.895, que incorpora a atrofia muscular espinhal à triagem neonatal do Distrito Federal.
O cenário atual
É importante ressaltar a necessidade de aprimorar e de formar mais médicos geneticistas. Atualmente são 30 ambulatórios semanais, com grande demanda reprimida.
A parametrização calculada, em 2022, somente para a Unidade de Genética do HAB são necessários 20 geneticistas, no entanto contamos com apenas 13 profissionais para os dois centros de referência.
Hoje a especialidade Genética Médica da Rede Hospitalar do DF é regulada de tal forma que a logística montada não atrapalhe o fluxo e ainda possibilite a documentação estatística obtida por meio do sistema de regulação.
A grande jornada será finalizada somente com a construção do Centro de Referência em Doenças Raras do Distrito Federal, pois esta possibilitará a ampliação dos laboratórios de alta tecnologia para diagnóstico avançado em genética de doenças raras, assim como o atendimento ambulatorial, possibilitando melhora em qualidade e quantidade do atendimento nessa unidade da federação.
O serviço de genética
As doenças raras classificam-se em genéticas e não genéticas, afetam múltiplos órgãos e sistemas do corpo, comprometem habilidades físicas e mentais e são severamente incapacitantes, reduzindo a expectativa de vida.
As doenças raras não genéticas, de acordo com a Portaria nº 199/2014, subdividem-se em inflamatórias, infecciosas e autoimunes.
Doenças raras de etiologia genética subdividem-se em malformações congênitas e de início tardio, deficiência intelectual e erros inatos do metabolismo.
Um dos grandes desafios para os pacientes com doenças raras é a obtenção de um diagnóstico precoce para um tratamento efetivo.
Esses pacientes enfrentam barreiras nos acessos aos seus cuidados e, em geral, pouco mais de 10% recebem tratamento específico decorrente de três barreiras, a saber, atraso no diagnóstico, início tardio do tratamento ou a inexistência de tratamento efetivo até o momento.
Existem ainda, outros fatores que contribuem para o atraso do diagnóstico precoce, impossibilitando um tratamento adequado para que os pacientes alcancem qualidade de vida dentro de suas condições. São eles: deficiência de políticas públicas, falta de conhecimento dos profissionais da saúde, deficiência do ensino universitário, carência de centros de referência em doenças raras em todo o País.
As melhorias
A logística do funcionamento é fundamental para organização do fluxo de pacientes. Por essa razão, em 2014, foi criada a Coordenação de Doenças Raras na Rede Hospitalar do DF, com carta de serviço e nota técnica, norteando o funcionamento dos Centros de Referência e construindo a respeitabilidade adquirida pela prestação de serviço. Hoje esses centros constituem a porta de entrada para um diagnóstico precoce, com um tratamento pré-sintomático, possibilitado em decorrência da triagem neonatal ampliada do Distrito Federal, único no País em rede pública. No entanto, inúmeras doenças não são avaliadas pela triagem neonatal ou podem se manifestar tardiamente.
Em 2022, foi inaugurado o Centro de Infusão para as doenças lisossomais, no Hospital Regional da Asa Norte, em parceria com a Associação Maria Vitória de Doenças Raras e Crônicas (Amaviraras). Ficou ainda definido que os pacientes infantis serão destinados às infusões das crianças diagnosticadas pela triagem neonatal ampliada e encaminhados ao Centro de Referência em Doenças Raras Infantis do HMIB.
Acerca dos atendimentos, todos seguem um modelo multiprofissional para que o paciente tenha um atendimento global com a participação dos médicos residentes reforçando a capacidade de trabalho em equipe.
Embora tenham ocorrido grandes avanços, as demandas continuam exigindo que toda equipe de profissionais esteja sempre no fronte de batalha para obter novas conquistas e novas parcerias, em especial, com áreas de atendimentos emergenciais e cirurgias pediátricas. Haja vista o nosso principal desafio e nossa meta que é a construção de um novo centro de referência, no sentido de ampliação dos atendimentos e a expansão da área laboratorial de diagnósticos.
Estudos colaborativos têm sido realizados em parcerias com a Sociedade Brasileira de Genética, o Centro de Estudos e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein e a Universidade Católica de Brasília (UCB), em projetos de pesquisas apoiados pelo CNPq e a Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF).
Em síntese, ao recordar esta jornada de mais de 20 anos de construção diária de um serviço voltado para o atendimento de excelência, visando o diagnóstico e o tratamento de pacientes com doenças raras, nas diversas faixas etárias, dentro de um sistema público de saúde, permite-nos afirmar que o SUS pode dar certo se for gerido com seriedade, honestidade, determinação e dedicação, com foco no que é melhor para o paciente.
Para finalizar, quero registrar meu sentimento de sincera gratidão à professora Dra. Iris Ferrari, a mentora de todos os geneticistas deste país, a grande pesquisadora que dedicou integralmente sua vida em prol do ensino e da pesquisa na área de Genética e Doenças Raras no Brasil.
CAPÍTULO 2
Doença de Huntington
Dra. Iscia Teresinha Lopes Cendes
Gostaria de começar homenageando o Dr. George Huntington. Ele que foi um médico americano de família, na região de Nova Iorque e que descreveu, no século 19, a Doença de Huntington, a partir de uma família que a própria família dele acompanhou.
Essa história é muito interessante, porque o pai dele começou a acompanhar os membros dessa família que apresentavam essa doença degenerativa e posteriormente, como médico de família, ele continuou acompanhando esses pacientes.
Na descrição inicial, mesmo sem ter grandes noções de genética, ele descreveu todo o padrão de herança, toda a clínica que está associada com o que sabemos hoje: a Doença de Huntington.
A importância de conhecer a herança
A herança da DH é chamada de autossômica dominante. Isso significa que tanto homem como mulher podem ter a doença e, em geral, tê-la herdado de um dos pais.
Quanto a essa transmissão, ela pode ser vertical, passada de geração para geração, pelos indivíduos que têm a doença, sendo que, em uma irmandade em que um dos pais tem a doença, a probabilidade de um indivíduo tê-la herdado é de 50%.
Outra característica importante da DH é que existe o que chamamos de penetrância dependente da idade. Significa que os indivíduos no início da vida não apresentam a doença, pois é considerada uma doença de início tardio. É por isso que há indivíduos que ainda não apresentaram a doença porque são muito jovens, mas à medida que forem envelhecendo, ela certamente se manifestará.
Mecanismos genéticos
Do ponto de vista dos mecanismos genéticos, sabemos hoje que o gene afetado pela mutação que leva à DH se chama gene HD. Ele fica localizado no braço curto do cromossomo quatro, bem na pontinha desse cromossomo. É nesse local que se localiza esse gene que dizemos ser grande porque ele tem 67 regiões codificantes, em média, os genes humanos têm 10, então é um gene bem grande.
Logo no início do gene, há essa região que é formada por uma sequência de bases que chamamos de CAG e dizemos que é polimórfica, ou seja, ela apresenta tamanhos diferentes em indivíduos diferentes e isso é normal. No entanto, o que acontece na Huntington é que essa sequência é maior do que o normal.
Nos indivíduos que não apresentam essa doença, geralmente essa sequência é menor ou igual a 26 repetições de CAG. Já nos indivíduos que têm a doença as repetições são maiores que 40 e existe uma zona intermediária de 35 a 40 que também pode estar associada com a doença, o que chamamos de zona cinza.
São esses os parâmetros que usamos para realizar o teste em laboratório. O que fazemos é amplificar a região do CAG, utilizando uma técnica que se chama PCR e por meio dela temos a visualização dos alelos expandidos, que é a mutação característica da doença de Huntington. Já na PCR dos indivíduos que não têm a doença, encontramos os alelos em estado normal.
O indivíduo com Huntington tem um alelo expandido/alterado, que ele herdou de um dos pais, e um alelo normal, que ele herdou do outro, que não apresentava a doença. Então, dizemos que os indivíduos com Huntington, em geral, são heterozigotos, porque eles apresentam um alelo expandido/mutante e um normal.
Assim, fica fácil de entender aquela probabilidade da herança de um indivíduo com a doença, tendo uma probabilidade de 50% de passar esse alelo para os filhos porque ele pode passar o mutante ou o normal. É como cara ou coroa
.
Aconselhamento Genético (AG) na Doença de Huntington
Bernardo Beiguelman propôs a definição de AG