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Bala perdida: A violência policial no Brasil e os desafios para sua superação
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Bala perdida: A violência policial no Brasil e os desafios para sua superação
E-book197 páginas2 horas

Bala perdida: A violência policial no Brasil e os desafios para sua superação

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Sobre este e-book

A Boitempo Editorial, que completa 20 anos de atividade em 2015, publica em parceria com o portal Carta Maior a coletânea Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação, quarto volume da coleção Tinta Vermelha. Ao longo de 16 artigos, a obra incita o debate público sobre o tema e traz propostas para reverter o quadro.



A coleção aborda perspectivas variadas sobre um tema atual e já conta com o sucesso de três publicações: Occupy (2012), Cidades rebeldes (2013) e Brasil em jogo (2014). Como acontece em todas as edições de Tinta Vermelha, autores cederam gratuitamente seus textos, o tradutor não cobrou pela versão do original para o português, e os fotógrafos e o ilustrador abriram mão de pagamento por suas imagens, o que possibilitou deixar o volume a preço de custo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2015
ISBN9788575594520
Bala perdida: A violência policial no Brasil e os desafios para sua superação

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    Bala perdida - Bernardo Kucinski

    Um modelo violento e ineficaz de polícia

    [a]

    Fernanda Mena

    Os meninos se puseram a chorar mal foram trancados na caçamba do carro de polícia. A gente nem começou a bater em vocês, e já tão chorando?, gritou um policial para os adolescentes negros capturados como suspeitos de praticar furtos na região central do Rio. O camburão subia as curvas da floresta da Tijuca, na capital fluminense. Para os garotos, aquele desvio de percurso, da delegacia para a mata, seria um passeio fúnebre, registrado por câmeras instaladas no veículo – determinação de lei estadual de 2009, criada para vigiar os vigilantes. Em uma parada no morro do Sumaré, contudo, a gravação é interrompida. Dez minutos depois, câmeras religadas, as imagens mostram os oficiais sozinhos no carro, descendo as mesmas curvas. Menos dois, diz um deles ao parceiro. Se a gente fizer isso toda semana, dá pra ir diminuindo. A gente bate meta, né?, completa. Dias depois, o corpo de Matheus Alves dos Santos, de 14 anos, foi encontrado no local graças a informações de M., de 15 anos, que levou dois tiros, mas sobreviveu porque conseguiu se fingir de morto mesmo ao ser chutado por um dos policiais.

    Só em 2013, 2.212 pessoas foram mortas pelas polícias brasileiras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Isso quer dizer que ao menos seis foram mortas por dia, ou um a cada 100 mil brasileiros ao longo do ano. No mesmo período, a polícia norte-americana matou 461 pessoas. Já as corporações do Reino Unido e do Japão não mataram ninguém.

    No Brasil, como se sabe, não há pena de morte. O marco jurídico, porém, parece não coibir ações como a dos cabos do morro do Sumaré: a naturalidade com que desaparecem com os dois adolescentes na mata deixa claro que o procedimento não era excepcional. A falta de pudor com que comentam a ação diante da câmera levanta outra hipótese perversa: a de que contavam com a impunidade.

    Para Renato Sérgio de Lima – professor da FGV-SP e um dos fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que produz o anuário estatístico –, esses não são casos de desvio individual de conduta policial. Trata-se de um padrão institucional. É uma escolha encarar o crime como forma de enfrentamento.

    Para o coronel José Vicente da Silva, da reserva da Polícia Militar de São Paulo, o número de mortos por policiais não pode ser visto isoladamente. Aqui temos seis vezes mais homicídios do que nos EUA. E nossos policiais morrem mais que os de qualquer outro lugar do mundo, protesta. Nessa dinâmica, em 2013, 490 policiais civis e militares foram mortos em serviço ou durante folgas.

    Os números de ambos os lados se inscrevem num contexto aterrador: o Brasil é um campeão mundial de homicídios. Em 2013, 54.269 pessoas foram assassinadas no país. O número corresponde a um estádio do Itaquerão lotado, como no jogo de abertura da Copa do Mundo, só que de cadáveres. Trata-se de uma taxa de 26,9 mortes por 100 mil habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera epidêmica, ou fora de controle, a violência que faz mais de dez vítimas por 100 mil habitantes.

    Somam-se aos números estatísticas que ilustram a relação negativa dos brasileiros com suas polícias: 70% da população do país não confia na instituição, e 63% se declaram insatisfeitos com sua atuação. O medo diante da polícia também é registrado em cifras: um terço da população teme sofrer violência policial, e índice semelhante receia ser vítima de extorsão pela polícia.

    A polícia tem vícios e defeitos inegáveis, afirma José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro desde 2007. Existe um reducionismo no conceito de segurança pública, que hoje é sinônimo de polícia, quando deveria englobar controle de fronteiras, Ministério Público, Tribunal de Justiça e sistema carcerário, afirma.

    As polícias, de fato, não se encontram sós nesse quadro de violência, em cujo verso estão os baixos salários, o treinamento deficiente, a falta de equipamentos e o duro enfrentamento de criminosos cada vez mais organizados e armados, que não vacilam em atirar, na certeza de que, ao escaparem vivos de um cerco, dificilmente serão pegos por uma investigação. O embrutecimento dessa polícia é também o da sociedade brasileira, um país em que se banalizaram o assassinato, o racismo, o desrespeito às leis e a corrupção. O episódio do morro do Sumaré é emblemático porque, ainda que a ação tenha chocado parte dos telespectadores do Fantástico, que revelou o caso numa noite de domingo de julho de 2014, na segunda-feira seguinte a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro já havia sido inundada por e-mails de apoio à ação criminosa dos policiais.

    Em 2014, segurança pública era a segunda maior preocupação dos brasileiros, e seus custos sociais eram estimados em 5,4% do PIB (Produto Interno Bruto) ou 258 bilhões de reais. Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública (2003) do primeiro governo Lula, o Brasil está estático nessa área. Os partidos que pretendem representar as classes populares são incapazes de reconhecer a prioridade desse tema que, por outro lado, é absolutamente central no cotidiano das massas, para as quais essa é questão de vida ou morte, de chegar ou não vivo em casa, avalia.

    O artigo 144 da Constituição de 1988 dispõe, genericamente, sobre as atribuições das instituições responsáveis por prover a segurança pública no país. A Carta herdou um sistema bipartido, com duas polícias, uma militar e outra judiciária ou civil, cada uma executando uma parte do trabalho. Um quarto de século depois, o artigo ainda aguarda regulamentação.

    Os constituintes, por temor ou convicção, não mudaram uma vírgula da estrutura da segurança pública herdada do regime militar, explica o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, cofundador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), que, durante o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), contou 434 mortos e desaparecidos nas mãos de agentes da ditadura.

    Nos Estados Unidos, a coisa começou a mudar quando os governos passaram a perder processos e a pagar boas indenizações para vítimas de violência policial. Pegou no bolso, conta Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.

    Com esse arranjo institucional, a União tem pouca responsabilidade nos rumos da segurança pública, municípios se limitam a criar guardas civis, enquanto cabe aos Estados o desenho das políticas e o controle das polícias. Foi nesse contexto que emergiram duas correntes conflitantes entre os que pensam perspectivas para a segurança pública e para as polícias.

    A primeira corrente prega reformas que envolvam mudanças de arquitetura do sistema legal e das instituições. Nesse vetor, inscrevem-se as propostas de desmilitarização e de unificação das polícias militar e civil em uma nova corporação, sem sobrenome. A proposta mais completa nessa linha está na PEC 51, desenhada pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares. Ela inclui o fim do vínculo e do espelhamento organizacional entre PM e Exército e cria o ciclo completo, quando uma só polícia faz o trabalho preventivo, ostensivo e investigativo.

    Há variações no entendimento sobre o que é desmilitarizar as polícias, mas todas compreendem a mudança do regime disciplinar, que permite prisão administrativa para questões ligadas à hierarquia, à vestimenta e à administração, além da extinção das instâncias estaduais da Justiça Militar, que julga policiais em crimes graves, como o homicídio de um PM por outro.

    Segundo a pesquisa Opinião dos policiais brasileiros sobre reformas e modernização das polícias, da Fundação Getulio Vargas (FGV), quase 64% dos policiais defendem o fim da Justiça Militar, 74% apoiam a desvinculação do Exército e quase 94% querem a modernização dos regimentos e dos códigos disciplinares. Essas vozes interessadas, porém, estão sub-representadas no debate.

    A desmilitarização é importante, mas não é uma panaceia e ainda depende de pressão popular, porque o Congresso funciona por inércia e tem muita representação de setores que são contrários a isso, diz o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    O surgimento da bancada da bala, formada por parlamentares que pregam medidas como redução da maioridade penal, recrudescimento das penas e até pena de morte, promete barrar o andamento de mudanças

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