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Serra da Capivara: A surpresa do século: A história de um parque
Serra da Capivara: A surpresa do século: A história de um parque
Serra da Capivara: A surpresa do século: A história de um parque
E-book425 páginas4 horas

Serra da Capivara: A surpresa do século: A história de um parque

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Sobre este e-book

O livro Serra da Capivara: a surpresa do século fala sobre as descobertas do maior acervo de pinturas rupestres a céu aberto no mundo, desde a primeira fotografia mostrada a Niéde Guidon em 1963, passando pela criação de um parque nacional, até os anos 20 deste século, abrangendo mais de 60 anos de história. Apresenta a saga de Niéde Guidon, arqueóloga paulista que dedicou toda a sua vida à pesquisa sobre as pinturas rupestres e à luta pela preservação delas enquanto patrimônio cultural da Humanidade. Aborda também a polêmica internacional sobre a datação dos vestígios encontrados na Serra da Capivara resultarem em ser os mais antigos das Américas e propondo novas teorias sobre a chegada dos primeiros homens ao continente. E por fim, mostra no contexto atual como a população da Caatinga convive com as mudanças que tais descobertas trouxeram. O livro consegue reunir e ordenar as informações científicas, administrativas, políticas e sociais que compõem a narrativa histórica de nosso maior patrimônio arqueológico e cultural.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de mar. de 2023
ISBN9788555781155
Serra da Capivara: A surpresa do século: A história de um parque

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    Serra da Capivara - EDNA BUGNI

    Agradecimento

    Sem a cooperação, os depoimentos e os documentos encaminhados, teria sido impossível construir esta história.

    FUMDHAM, ICMBio – Parna Serra da Capivara, Colégio Santa Cruz, André Pessoa, Andréa Macedo, Bianca Zorzi Tizianel, Conceição Lage, Eric Boëda, Fabio Parenti, Fernando Tizianel, Girleide Oliveira, Gisele Felice, Joana França, Josiene de Jesus Souza, Maira de Souza Silva, Marian Helen G. Rodrigues, Nivaldo Coelho, Raimundo Dias Filho, Rosa Trakalo, Silvia Maranca, Soichi Yamada, Walmir Victor da Silveira.

    Agradecimento carinhoso à Maria Aparecida Pereira, primeira guia e enciclopédia capivariana viva, que esteve disponível para consultas durante todo o projeto.

    Agradecimento especial à Betânia Lins pela primeira leitura.

    Agradecimento à Primavera Editorial, nas pessoas de Lourdes Magalhães e Larissa Caldin, por terem acreditado neste projeto.

    Prefácio

    Introdução

    Capítulo 1

    Onde tudo começou

    Capítulo 2

    As pinturas rupestres

    Capítulo 3

    O Parque Nacional da Serra da Capivara

    Capítulo 4

    Fundação Museu do Homem Americano

    (FUMDHAM)

    Capítulo 5

    A missão franco-brasileira no Piauí

    Capítulo 6

    A região do Parque Nacional: geografia e habitantes

    Referências

    Cadernos especiais

    Caderno 1

    As missões franco-brasileiras do século 20

    Referências

    Caderno 2

    Diário de uma jornada

    Bibliografia

    Siglas e abreviaturas

    Glossário

    Prefácio

    Senti uma grande alegria quando notei que este livro é fruto dos trabalhos de uma mulher que, sem ser do campo das humanidades, se dispôs a enfrentar o imenso desafio de contar a história de um dos maiores patrimônios naturais, arqueológicos e históricos do Brasil e do mundo. A autora, Edna Bugni, é uma médica paulista que, ao visitar a Serra da Capivara no interior do Piauí em 2012, resolveu narrar a história do parque mais emblemático do país. Em seu relato, o leitor se sente atravessando a Caatinga, percorrendo suas estradas, entrando nos laboratórios do Museu do Homem Americano, mergulhando em cada uma das missões arqueológicas realizadas na região, participando das conversas com os maiores especialistas no campo da arqueologia e conhecendo alguns dos moradores que fazem parte da incrível e sofrida história de formação do Parque Nacional.

    A Serra da Capivara é um lugar único no mundo. Único por preservar um bioma exclusivo do Brasil, a Caatinga. Único por sua beleza natural. Único por guardar a maior concentração de pinturas rupestres do planeta. Único por ser uma peça fundamental no quebra-cabeça do processo de chegada do homem à América. Único por colocar a arqueologia brasileira no debate acadêmico e na literatura especializada internacional. No entanto, esse monumento ecológico, humano, cultural e histórico ainda não tinha recebido um estudo reconstituindo a história de sua construção. Uma falta que o livro de Edna Bugni começa a reparar, na expectativa de que muito outros também sejam escritos nos próximos anos.

    Chama a atenção na elaboração da obra o acesso fantástico às fontes. A autora teve um fôlego invejável de percorrer todos os cadernos de campo das 22 missões arqueológicas (escritos em português, francês e espanhol) realizadas ao longo de décadas, de acessar os documentos contábeis do Parque Nacional, suas atas de reuniões, seus estatutos e seus planos de manejo, e de mergulhar nos textos acadêmicos resultantes das pesquisas nos sítios arqueológicos da Capivara. Além disso, realizou diversas entrevistas com seus fundadores, funcionários e principais pesquisadores por e-mail, reuniões on-line ou encontros presenciais em diferentes cidades no Brasil e no exterior. Bugni conversou com Niéde Guidon, figura central e grande idealizadora desse projeto; Silvia Maranca, pesquisadora que enfrentou o sertão, com Niéde, na primeira missão arqueológica à Serra da Capivara em 1973; Eric Boëda, professor da Universidade Paris X, parceiro de pesquisa de Niéde e coordenador das missões arqueológicas no Parque Nacional; e Fábio Parenti, pesquisador brasileiro especialista em líticos e professor da Universidade Federal do Paraná.

    Tendo por base esse amplo corpus documental, resultado de uma pesquisa de sete anos, a autora constrói sua narrativa com preciosos relatos inéditos, informações consistentes e fatos históricos permeados por seus deslumbramentos e descobertas na Serra da Capivara e por suas angústias originadas do contato com aquela nova realidade com a qual se deparava. De forma elegante, Edna Bugni expõe seus incômodos com as faltas que acometem aquela população sertaneja, com a amargura de Niéde Guidón e com a ausência de reconhecimento, pela maior parte dos brasileiros, do valor desse nosso inestimável patrimônio ambiental e cultural – reconhecido pela UNESCO, desde 1991, como Patrimônio Cultural da Humanidade.

    Mesmo sem se propor escrever um livro acadêmico, a autora apresenta uma síntese impressionante das missões arqueológicas – inclusive antes da institucionalização do Parque –; dos dilemas enfrentados nos anos iniciais de sua construção, na década de 1980, com a desapropriação da comunidade Zabelê, que habitava as terras que hoje estão no coração da unidade de conservação; das tradições das pinturas rupestres da Capivara; das formas de datação dos sítios e das pinturas; dos circuitos atuais de visitação; e das formas de financiamento para a formação e manutenção do Parque Nacional. O leitor do livro ainda vai se deparar com uma síntese cuidadosa dos principais trabalhos acadêmicos publicados no seio da discussão sobre a presença humana na América, das linhas de pesquisa atuais da Fundação do Homem Americano (FUNDHAM), dos eventos científicos e culturais promovidos pela Fundação, dos convênios e parcerias de cooperação científica, dos projetos de desenvolvimento social realizados com as comunidades do entorno do Parque e dos convênios assinados com órgãos públicos e instituições privadas.

    Para quem já visitou a Serra da Capivara, a obra é um presente para recordar o convívio com a Caatinga e com seus moradores. Para quem ainda não conhece aquele lugar surpreendente, é um convite para visitá-lo. E para todos é uma fonte de conhecimento sobre a história do Parque Nacional e os desafios para mantê-lo. Cabe ao Brasil e a cada um de nós saber guardar, valorizar e difundir dentro e fora do país esse patrimônio que, abrigando os vestígios mais antigos das Américas, pode ser considerado a surpresa do século.

    Fernanda Trindade Luciani

    Introdução

    Contar a história do parque brasileiro mais emblemático do país – o Parque Nacional da Serra da Capivara – parece extravagante e desafiador. Quando, como uma turista qualquer, cheguei à cidade de São Raimundo Nonato, no Piauí, vinda de Petrolina, Pernambuco, em setembro de 2012, sequer imaginava que tal projeto caberia na minha vida. No entanto, depois de andar por quatro dias por grotões, veredas e trilhas e de conhecer algumas das milhares de pinturas rupestres que se espalham pelo Parque, uma curiosidade infinita se apossou de mim. Olhei alguns dos fósseis dispostos em uma das salas de recepção do Centro de Visitantes, à entrada do Parque, e não consegui encaixar as informações. Como juntar a minha primeira vivência na Caatinga – sob um calor de 40 °C – às pinturas rupestres tão diferentes e tão iguais? Como unir a emoção da descoberta dessas pinturas aos ossos dos mastodontes – tigre-dentes-de-sabre? Tigre no Piauí? O Pleistoceno e o Holoceno?

    Arqueologia, Etnologia e Paleontologia nunca foram minhas áreas de interesse. Sou uma profissional da saúde – da saúde pública, mais especificamente. Sabia da incansável tarefa de construir um sistema de saúde acessível para todos e arriscava transitar pela arte e literatura. Esse era o meu limite. Ali, porém, eu queria saber mais… Dei uma passada de olhos pelo material exposto na loja do Centro de Visitantes e só encontrei um livro sobre o assunto. Nada mais. Um livro apenas?!, pensei. Então, entendi a profundidade do desconhecimento de cada brasileiro sobre um de nossos patrimônios históricos mais especiais. E, em um surto de prepotência, arrisquei: Vou contar essa história também!

    Voltei a São Paulo completamente tomada pelo projeto. Fiz alguns contatos com à minha editora da época e, após assegurar uma teórica viabilidade ao livro, coloquei a primeira pedra. No entanto, eu me sentia insegura em fazer um projeto documental, no qual somente poderia falar de fatos reais, sem ficção. Sem inventar nadinha. Mesmo assim, segui em frente. Comprei alguns livros de Arqueologia geral e fui adentrando um novo conhecimento. Fascinante!

    Três meses depois, voltei a São Raimundo Nonato pela mesma estrada de Remanso, contornando a represa de Sobradinho no Rio São Francisco – que alagou grandes áreas, desalojou 72 mil pessoas e submergiu quatro cidades e dezenas de povoados para o sertão virar mar. Fui cantarolando a música de Sá, Zé Rodrix e Guarabyra, dos nossos tempos tão antigos – dos primeiros tempos de vida profissional, da autonomia, do movimento da construção de um país melhor.

    O homem chega, já desfaz a natureza

    Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar

    O São Francisco lá pra cima da Bahia

    Diz que dia menos dia vai subir bem devagar

    E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia

    que o Sertão ia alagar

    O sertão vai virar mar, dá no coração

    O medo de que algum dia o mar também vire sertão

    Adeus, Remanso, Casa Nova, Sento-Sé

    Adeus, Pilão Arcado, vem o rio te engolir

    Debaixo d’água...

    Adeus...

    O sertão vai virar mar...

    São Raimundo Nonato é um município em meio à Caatinga de horizontes amplos e céu limpo, sem nuvens; tem pouco mais de 34 mil habitantes, dos quais cerca de 12 mil estão espalhados pela zona rural. Não chovia fazia dois anos e tudo estava seco, muito seco; as árvores tinham perdido as folhas havia muito – só galhos retorcidos e espinhos em meio a esparsos pés de mandacaru. Na noite de chegada houve um blecaute de energia, e tudo ficou às escuras por horas. Fui apresentada a um céu magnífico: estrelas em puro brilho sem a interferência de luzes, nuvens ou partículas poluentes. Emocionante e belo! No terreno ao lado da pousada, um jegue pastava, semioculto pelas sombras, quase invisível, apenas o ruído das mandíbulas cortando a palha da grama a quebrar o silêncio daquela noite de céu estrelado. Estava excitada e ansiosa; começar um projeto dessa envergadura aos 60 anos me desafiava e me preenchia de vida nova.

    A primeira pessoa a ser procurada na manhã seguinte foi Niéde Guidon – pelo inegável protagonismo histórico no parque. Fui a seu encontro em sua casa em São Raimundo Nonato, dentro do Centro Cultural Sérgio Motta, ao lado do Museu do Homem Americano e de um dos mais bem montados laboratórios de Arqueologia do país.

    O caminho até a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) é inóspito: uma lâmina de asfalto foi colocada sobre o solo quando o presidente Fernando Henrique Cardoso esteve no local, em 2000, em uma das celebrações dos 500 anos do Brasil. Doze anos depois, restavam somente algumas placas em meio aos buracos e sacos plásticos. Céus, como há sacos plásticos espetados nos espinhos da Caatinga! Ar de abandono e descuido. Vontade de catar um a um…

    Continuei mais algumas centenas de metros pela estrada esburacada, suja e poeirenta até chegar a um conjunto de prédios em cor de terracota, quase no tom da terra do chão. Propositalmente, não se faz nada para esconder a aridez do ambiente: terra vermelha, árvores secas e retorcidas e sol inclemente. Eram suor e poeira nos pés quando cheguei à casa de Niéde Guidon. Com 81 anos, cabelos brancos e fartos, óculos grandes meio caídos, pele branca machucada pelo sol de tantas escavações, ela me recebeu formalmente, dando um quase sorriso, e me indicou uma mesa retangular – a mesma mesa na qual recebe todos que a procuram: jornalistas, fotógrafos, pesquisadores, embaixadores, ministros, políticos; enfim, toda pessoa que demonstre interesse pelo seu trabalho no Parque Nacional da Serra da Capivara. Ela está sempre disponível a quem amplia a divulgação do parque ou apoie financeiramente os projetos.

    Niéde estava doente naquele dia. Uma infecção respiratória a deixou febril e um pouco ofegante, complicando a diabetes. Falou da doença como um lamento: a perda da energia, das forças para enfrentar os desafios do parque; falou do nódulo pulmonar ainda não diagnosticado, adquirido talvez ao respirar o ar de tantas cavernas e tocas. E, pacientemente, foi contando as histórias, suas histórias. Algo que só fui perceber muito depois é que ela, com mais de oito décadas de vida, permite-se relatar os fatos à sua maneira, como lhe convém. Sobre as peças que não se encaixam na história, ela diz:

    Faz tanto tempo! Nem me lembro mais...

    Não sou boa com datas históricas,

    sou boa com datas pré-históricas.¹

    Claro que o gravador não funcionou e eu me esqueci de fazer fotos. Anotei pouca coisa confiando na minha memória.

    Foi tão estranho percorrer os mais bens montados laboratórios de Arqueologia do país! Meus olhos não treinados olhavam para as centenas de pedras no Laboratório de Líticos e todas pareciam iguais. Só admirava a refinada organização, cada uma em gavetas específicas, com números de identificação. Ah, demorou para eu compreender o que significavam e – devo confessar – ainda não consigo identificar uma pedra lascada pelo homem de outra, quebrada espontaneamente. Esse sentimento persistiu nos laboratórios de Cerâmicas e de Paleontologia.

    A sala do Banco de Dados foi mais acolhedora: não apenas pelo ar-condicionado como pela imensidão de dados à disposição. Papéis e arquivos digitais me eram muito mais familiares que pedras e ossos gigantes! Até hoje – quando relembro esse momento –, meu respeito por Niéde Guidon reverbera. Sem me conhecer, ela disponibilizou todos os documentos da fundação: Cadernos de Campo, contabilidade, atas, estatutos, pesquisas… Confiança e transparência foram os valores ali contratados.

    Niéde colocou Bianca Tizianel, coordenadora de campo do parque, para nos mostrar a área no dia seguinte. E havia tanta gente para conhecer e conversar, meu entusiasmo só crescia. Entre as idas à FUMDHAM e ao Parque da Serra da Capivara naquela semana, eu me abasteci de documentos, conversas com novas pessoas, paisagens, tocas, árvores secas da Caatinga e muita, muita pintura rupestre.

    Voltei a São Paulo e iniciei uma intensa correspondência por e-mail com Niéde Guidon. Preciosos depoimentos de rico valor histórico. E, por todo o ano, fui me abastecendo de informações, leituras, entrevistas. Escrevia algumas páginas, achava que já tinha uma estrutura de texto.

    Paulatinamente, fui abrindo os arquivos e decidi dissecar os relatórios dos cadernos de campo de 22 missões: ora escritas em português, ora em francês, ora em espanhol com pinceladas de italiano! E a emoção ao ler a descrição do encontro do primeiro esqueleto na Toca do Paraguaio? Retirar com um pincel as sucessivas camadas de sedimentos que encobrem um esqueleto – e ver os ossos surgindo pouco a pouco – é como criar um quadro pelo avesso; a imagem vai surgindo pela retirada do material! Arte.

    E por onde começar?

    Qual foi o começo dessa história?

    Com a atenção aguçada, vou catando aqui e ali as peças: uma conversa, um desenho, uma entrevista, uma foto, um telefonema, mais uma pintura, uma lasca de cerâmica, uma pedra. Um documento on-line, outro vídeo. Outra pedra. Sabemos que uma peça tem muitas faces, muitas verdades, e precisamos encontrar aquela de melhor encaixe. Desafio.

    Voltei à Serra da Capivara no ano seguinte (2013) pela terceira vez. Estava mais empoderada, já compreendia melhor o universo capivariano, mas poucas peças se encaixavam num texto. Era necessário um novo mergulho. Passei uma tarde inteira com Gisele Daltrini Felice, uma das figuras mais importantes da FUMDHAM, essa gaúcha que abraçou São Raimundo e lá ficou. Geógrafa de formação, com mestrado e doutorado em História, na área de Pré-História, nos falou de como era a São Raimundo de vinte anos atrás (à época): do pão caseiro que os padres espanhóis ensinaram os fiéis a fazer; do José Bastos; do Joãozinho da Borda; das picadas de abelhas em Niéde, no Serrote do Sansão; das pinturas tão diferentes da Toca do Enoque na Serra das Confusões. E, enquanto ela descrevia os trabalhos de Fátima Luz, a curiosidade pelo local só ia aumentando.

    Se o Parque da Serra da Capivara é superestruturado, com trilhas bem demarcadas e sinalizadas, o Parque da Serra das Confusões é terra perdida. Imenso, precário e belíssimo. Rochas arredondadas pelo vento formam a Serra das Confusões; grutas silenciosas por onde a luz se infiltra através do encontro sinuoso das rochas 30 metros acima; a vegetação crescendo nas paredes úmidas. Há a Toca do Enoque, a Toca do Moquém, exibindo de pinturas e grafismos muito diferentes daquelas da Serra da Capivara.

    No inicio de novembro de 2014, retornei à São Raimundo e, quando voltei para casa, sabia que tinha todas as informações para a realização do livro. Ainda faltavam algumas entrevistas, muita leitura sobre a formulação teórica a respeito das pinturas rupestres, do entendimento das pedras lascadas pelo homem, mas estava otimista. Fiquei mais um ano trabalhando de maneira intermitente.

    No entanto, o destino nos prepara roteiros não planejados. Ao final de 2014, o trabalho travou; outras prioridades entraram na minha vida e a Capivara foi relegada ao futuro. Por mais de um ano, os papéis, os documentos e a disponibilidade ficaram guardados na estante.

    Retomei o projeto em 2016. Anteriormente dimensionado para três anos, escorregou para seis! Por vezes mais disciplinada, um pouquinho por dia; noutras, com a fúria de quem possui um tesouro nas mãos e precisa mostrá-lo. Muitas vezes, esquecendo-me dele, perdida nas rotinas do cotidiano. No entanto, sempre por perto, quase atormentando. Era um momento ruim do parque, com recursos muito próximos a zero, a sobrevivência por um triz. Quase todos os funcionários foram demitidos; a cada dia uma nova notícia ruim…

    Com a inauguração do Museu da Natureza, em dezembro de 2018, acredito que acordei da letargia. Agora é hora de acabar, decidi!

    Sabia que precisava de uma imersão em São Raimundo, distante do meu cotidiano e completamente próxima do parque. Ali estavam as respostas às perguntas ainda não respondidas, aos espaços vazios do texto.

    Aluguei uma casa em São Raimundo Nonato, bem no centrinho, onde do terraço via a Catedral e apreciava as vozes cantando em oração às sete da noite. Aqui estou por quatro semanas. Imersa. Desafiada. Entusiasmada. Era o inverno, o tempo das chuvas. No intervalo das pesquisas, para romper o movimento mental, cozinhava. Cabrito, cordeiro, porco, vegetais orgânicos, ovos caipiras, farinha branca, amarela, feijão-de-corda, castanha-de-caju, tapioca. Com os ingredientes que o sudeste do Piauí apresentava, recriava as minhas receitas. Não há pesticidas nem adubos químicos. Não há dinheiro para isso. Apenas o que a natureza consegue produzir.

    Quando caminho pelo Parque Nacional da Serra da Capivara nesse tempo chuvoso, com a Caatinga toda verde e carregada de flores – vendo toda essa lindeza, ele tão arrumadinho, tudo no lugar –, eu me lembro de todas as notícias pessimistas na mídia, das entrevistas de Niéde Guidon anunciando o fim dele, e sinto certa desarmonia. A realidade não bate com o imaginário que eu havia construído por meio do que foi veiculado pela imprensa no tempo em que estive ausente do Parque. Havia imaginado encontrá-lo decadente, esvaziado, ameaçado por caçadores, mas está tudo verde, tudo muito arrumado, como se a natureza não se importasse com a complexidade dos problemas que envolvem a manutenção dele.

    Voltei mais uma vez em novembro de 2019 atrás de melhor compreensão de alguns detalhes. E se voltasse mais dez vezes, mais informações eu teria. Mas há um momento de parar, de sair do texto ideal para o livro real.

    O dia 1º de novembro de 2012 foi um dia inesquecível: choveu no Parque, pondo fim à maior seca dos últimos quarenta anos no sertão do Piauí!

    Os olhos de Bianca Zorzi, bióloga e, naquele tempo, coordenadora de campo responsável pelo Parque Nacional da Serra da Capivara, brilhavam enquanto contava sua emoção:

    A gente parou o carro para tomar chuva. Essa primeira chuva foi meio inesperada, o céu não estava nublado nem tinha previsão de chuva. O dia estava muito, muito quente. Eu, paulista, passando por minha primeira seca no sertão, nunca imaginei que seria tão emocionante ver uma simples chuva. Era vida caindo do céu! A Caatinga e seus animais não aguentariam mais um mês de seca.

    Nunca tinha dado valor a esse evento da natureza. E aí comecei a entender um pouco sobre a relação do sertanejo com água, o cuidado com os reservatórios, o racionamento na hora da utilização… Me deu até vontade de chorar, emocionada.²

    Bianca Zorzi

    A chuva não é algo corriqueiro no semiárido do sudeste do Piauí; parcimoniosa e rara, faz da sua chegada um acontecimento. Ela é esperada a cada ano a partir de novembro, quando começa o inverno na Caatinga. As nuvens vão, pouco a pouco, cobrindo o céu e parando o vento; nenhuma brisa sopra nos dias que antecedem a primeira chuva. Os dias quentes e ensolarados são substituídos por dias cinzentos e extremamente abafados, quando até para o sertanejo o calor se torna desconfortável.

    Então ela começa a cair fininha, mais parecendo uma névoa, ou então em pancadas fortes e bem localizadas, formando grandes enxurradas que levam tudo que está à sua frente. E a essa primeira chuva se prestam rituais seja pelas pessoas, seja pelos animais, mas é muito mais que isso.

    No entanto, essa escassez de chuva, que torna tão dramática a existência do homem na região, é a responsável pela preservação dos mais antigos vestígios de vida nas Américas: as pinturas rupestres na Serra da Capivara e seu entorno (Serra das Confusões e Corredor Ecológico)! Elas estão presentes em 1.357 sítios arqueológicos catalogados até 2018, sendo 204 abertos à visitação e mais outros tantos ainda desconhecidos, a fazer dessa região um ambiente único tanto do ponto de vista cultural quanto arqueológico ou ambiental. Motivos estes mais que suficientes para a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, em 1979, por meio de um decreto do governo federal (Decreto n. 83.548 de 05/06/1979).

    Isso, porém, já é o meio da história: o ato administrativo e concreto.

    A faísca que desencadearia todas as ações que culminaram nesse decreto aconteceu muitos anos antes, precisamente em junho de 1963 – em São Paulo, no Museu Paulista (Museu do Ipiranga) –, quando Niéde Guidon foi ao encontro de Luiz Augusto Fernandes, então prefeito de Petrolina. A visita dele ao Museu tinha o objetivo de mostrar algumas fotos que portava consigo.

    A pessoa que me mostrou fotos das pinturas daqui foi Luiz Augusto Fernandes, que foi prefeito de Petrolina. Eu trabalhava no Museu do Ipiranga e organizei uma exposição com as pinturas de Minas Gerais, as únicas então conhecidas no Brasil. Ele foi visitar a exposição, pediu para falar com a responsável; fui falar com ele, e ele me mostrou as fotos.

    Não me lembro exatamente do tamanho, acho que as fotos eram branco e preto; talvez de 10 × 8 centímetros. Eram fotos de um abrigo do Desfiladeiro da Capivara; naquele tempo a BR-020 passava pelo desfiladeiro, na frente de vários sítios. Vi que eram pinturas completamente desconhecidas, diferentes.³

    Niéde Guidon

    Niéde Guidon havia chegado ao Museu Paulista em 1961, aos 28 anos – depois de curta e polêmica passagem pela rede pública paulista na cidade de Itápolis, juntamente com Luciana Pallestrini –, como docente de Ciências Naturais.

    Paulo Duarte, um influente intelectual e humanista paulista com passagem pelo Musée de l’Homme (Paris) e que, à época, pesquisava sambaquis no litoral de São Paulo, interferiu ativamente para o comissionamento das duas professoras de Itápolis no Museu Paulista. Assim, pôde integrá-las à sua equipe, em um movimento de fortalecimento de suas pesquisas. O museu, dirigido por Herbert Baldus, um etnólogo alemão refugiado no Brasil, continha um departamento de Arqueologia acéfalo e anêmico, para o qual Niéde foi designada, mesmo sem ter nenhuma formação específica. Ela, então, integrou-se à equipe de Paulo Duarte na pesquisa de sambaquis no litoral paulista. A esse mesmo grupo, no ano seguinte, juntou-se uma jovem geógrafa, Silvia Maranca, filha de italianos, cujo pai foi um importante executivo nas Indústrias Matarazzo⁴.

    Desconfortável com o próprio desconhecimento de Arqueologia, Niéde Guidon foi em busca de especialização na área. Por indicação de Paulo Duarte, optou pelo curso da Universidade de Paris-Sorbonne e conseguiu uma bolsa do Consulado da França no valor de US$ 300,00 mensais – que, somado ao salário do Museu Paulista, permitiu-lhe iniciar o curso de especialização em Arqueologia Pré-Histórica no mesmo ano.

    Filha de pai francês, Niéde Guidon sempre teve familiaridade com a língua e a cultura. Nessa viagem, ela se vinculou mais estreitamente às próprias origens francesas, laço que permanece intenso até hoje.

    Um ano depois, em 1962, retornou ao Museu Paulista como especialista em Arqueologia e continuou a participar das escavações do

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