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Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina
Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina
Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina
E-book382 páginas5 horas

Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina

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Sobre este e-book

Fruto de uma investigação transnacional realizada no decorrer de 2018 e 2019 e de um profícuo diálogo envolvendo as duas autoras e o autor, esta obra analisa as relações entre gênero, religião, direitos e democracia na América Latina. Com o fim da chamada "onda vermelha" na região, é significativo o aumento da atuação de católicos e evangélicos conservadores na política, com forte reação às políticas de equidade de gênero, direitos LGBTQI e saúde reprodutiva.

Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione destacam o uso, por agentes conservadores, de expressões como "ideologia de gênero", "feminismo radical" e "marxismo cultural" para justificar normas que promovem exclusões, vetos a perspectivas críticas e o fim de políticas públicas importantes para mulheres e minorias, corroendo, por dentro, a democracia na região. Não bastassem as consequências para mulheres e populações LGBTQI, em muitos países a recusa desses direitos vem acompanhada de políticas que transformam movimentos sociais em inimigos e, por meio de diferentes estratégias, procuram subtrair legitimidade às agendas de justiça social.

Num esforço de compreensão dos padrões atuais da reação ao gênero, o livro desenvolve uma moldura teórica em que o conceito de neoconservadorismo tem especial relevância. A disputa entre moralidades, analisada ao longo dos três capítulos que compõem a obra, inclui novos padrões de ação e de mobilização de enquadramentos, que abrem oportunidades para lideranças de extrema direita, colocam em xeque valores democráticos e reforçam tendências autoritárias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de set. de 2020
ISBN9786557170175
Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina

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    Gênero, neoconservadorismo e democracia - Flávia Biroli

    © Boitempo, 2020

    © Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione, 2020

    Todos os direitos reservados.

    Esta publicação recebeu apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), edital 04/2017.

    Direção-geral

    Ivana Jinkings

    Edição

    Isabella Marcatti

    Coordenação de produção

    Livia Campos

    Assistência editorial

    Pedro Davoglio

    Preparação e assistência editorial

    Carolina Mercês

    Revisão

    Sílvia Balderama Nara

    Diagramação e capa

    Antonio Kehl

    Equipe de apoio:

    Artur Renzo, Débora Rodrigues, Dharla Soares, Elaine Ramos, Frederico Indiani, Heleni Andrade, Higor Alves, Ivam Oliveira, Kim Doria, Luciana Capelli, Marina Valeriano, Marissol Robles, Marlene Baptista, Maurício Barbosa, Raí Alves, Thais Rimkus, Tulio Candiotto.

    Versão eletrônica

    Produção

    Livia Campos

    Diagramação

    Schäffer Editorial

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    B523g

    Biroli, Flavia

    Gênero, neoconservadorismo e democracia [recurso eletrônico] : disputas e retrocessos na América Latina / Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2020.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital edition

    Modo de acesso: world wide web

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-65-5717-017-5 (recurso eletrônico)

    1. América Latina - Política e governo. 2. Democracia - América Latina. 3. Igualdade de gênero - América Latina - Condições sociais. 4. Minorias sexuais - América Latina - Condições sociais. 5. Mulheres - América Latina - Condições sociais. 6. Livros eletrônicos. I. Machado, Maria das Dores Campos. II. Vaggione, Juan Marco. III. Título.

    Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135

    É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.

    1ª edição: julho de 2020

    BOITEMPO

    Jinkings Editores Associados Ltda.

    Rua Pereira Leite, 373

    05442-000 São Paulo SP

    Tel.: (11) 3875-7250 / 3875-7285

    [email protected]

    www.boitempoeditorial.com.br

    www.blogdaboitempo.com.br

    www.facebook.com/boitempo

    www.twitter.com/editoraboitempo

    www.youtube.com/tvboitempo

    SUMÁRIO

    Apresentação

    Introdução. Matrizes do neoconservadorismo religioso na América Latina – Juan Marco Vaggione, Maria das Dores Campos Machado e Flávia Biroli

    1. A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina – Juan Marco Vaggione

    2. O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia – Maria das Dores Campos Machado

    3. Gênero, valores familiares e democracia – Flávia Biroli

    Conclusão – Maria das Dores Campos Machado, Juan Marco Vaggione e Flávia Biroli

    Bibliografia

    APRESENTAÇÃO

    Asegunda década do século XXI tem sido considerada pela mídia e por analistas políticos um momento de inflexão do que se convencionou chamar a onda vermelha na América Latina. E isso porque foi na década de 2010 que se iniciou o desmantelamento dos governos de centro-esquerda que vinham se desenvolvendo em países da região. Da destituição de Fernando Lugo (Paraguai, 2012) e Dilma Rousseff (Brasil, 2016) ao golpe de Estado contra Evo Morales (Bolívia, 2019), passando pelas eleições de Pedro Pablo Kuczynski (Peru, 2016), Sebastián Piñera (Chile, 2010 e 2018) e Jair Bolsonaro (Brasil, 2018), uma parcela importante das sociedades latino-americanas vem enfrentando processos marcados, a um só tempo, por grande instabilidade política e pelo recrudescimento do conservadorismo religioso e do neoliberalismo. Embora reúna atores com perfis ideológicos e interesses materiais variados, a direita que vem assumindo a máquina estatal nesses países tem como ponto comum ignorar as políticas de direitos humanos e os tratados internacionais assinados para garantir direitos nos campos da sexualidade e da reprodução. Ainda que se saiba que a onda vermelha foi menos que rosa em muitos países e que governos de centro-esquerda não garantiram, necessariamente, a expansão desses direitos, estamos diante de uma correlação de forças que amplia o espaço e o potencial de atuação dos grupos conservadores religiosos e de seus aliados seculares.

    Não bastassem as consequências para mulheres e populações LGBTQI, em muitos países a recusa desses direitos vem acompanhada de políticas que transformam movimentos sociais em inimigos políticos e, por meio de diferentes estratégias, procuram subtrair legitimidade às agendas de justiça social. Feminismo radical e marxismo cultural são expressões-chave não só nas ações contra direitos de mulheres e pessoas LGBTQI, mas também contra os direitos de meninas e meninos, sempre em nome dos valores familiares. É nesse contexto que as reações globais contra as agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual ganham contornos regionais.

    Este livro é fruto de uma investigação transnacional realizada no decorrer de 2018 e 2019 e de um profícuo diálogo envolvendo as duas autoras e o autor sobre as relações entre gênero, religião, direitos e democracia. De forma sucinta, a obra analisa as novas configurações do conservadorismo religioso e os conflitos em torno das agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual na América Latina, levando em conta sua relação com a democracia.

    Um dos argumentos centrais dos autores é que a forma atual do conservadorismo latino-americano está relacionada a uma temporalidade marcada pelos avanços dos movimentos feministas e LGBTQI e expressa coalizões políticas de grupos cristãos com setores não religiosos da direita. Nesse sentido, dedica atenção ao combate à cultura da morte e à ideologia de gênero, que têm destaque entre as novas estratégias utilizadas pelos conservadores para restringir as agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual. Afirmam-se, assim, na oposição a direitos reivindicados historicamente por movimentos feministas, de mulheres e LGBTQI. Trata-se, ainda, de uma tática que permite reposicionar o Estado laico e a relação entre autoridade estatal, autoridade paterna e direitos individuais. O redesenho das normas jurídicas e do próprio Estado é, assim, fundamental a essa empreitada.

    Nossa atenção a atores e estratégias vai além de um diagnóstico descritivo. Em um esforço para compreender em que consistem os padrões atuais da reação ao gênero, desenvolvemos uma moldura teórica na qual têm especial relevância o conceito de neoconservadorismo e a conexão entre as disputas em torno do gênero e os processos correntes de erosão da democracia. A originalidade da obra se deve, em grande parte, ao caráter interdisciplinar da análise, que procurou articular os debates mais relevantes sobre as temáticas aqui elencadas nos campos da ciência política, da sociologia e do direito.

    O livro está organizado em três capítulos, antecedidos por uma introdução e seguidos de uma conclusão. Na introdução, os autores procuram estabelecer um marco teórico no qual se destaca a investigação sobre o que há de novo na reação conservadora ao gênero. Acompanhando outros estudos, propõem a utilização do conceito de neoconservadorismo, fundamentando essa proposta na identificação das diferentes dimensões do conservadorismo religioso atual.

    Em seguida, no primeiro capítulo do livro, Juan Marco Vaggione articula as mudanças nas formulações discursivas e nas estratégias de atuação da Igreja católica na esfera pública contemporânea, que têm o propósito de restaurar a ordem moral nos países latino-americanos. Ele chama atenção para a crescente importância do campo jurídico nas relações atuais das religiões com a política na região. O conceito de juridificação[1] reativa é proposto em referência ao uso do direito por atores religiosos e seculares, em sua defesa de princípios morais que consideram violados pelas demandas dos movimentos feministas e LGBTQI.

    No segundo capítulo, Maria das Dores Campos Machado analisa a participação de mulheres cristãs, em especial as evangélicas, na promoção da lógica normativa neoconservadora. Investigando os casos da Colômbia e do Brasil, examina também a política de ocupação das agências estatais por evangélicos/evangélicas e católicos/católicas, a partir das eleições de Iván Duque e Jair Bolsonaro em 2018, e as ações de cristãos/cristãs para desmontar as políticas sexuais e de gênero desenvolvidas no Brasil pelo Partido dos Trabalhadores (PT) a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República em 2002. A autora também apresenta informações sobre as redes regionais que têm se formado para a promoção de uma moralidade antagônica àquela que fundamenta o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos. Elas são fundamentais para que se possa compreender o escopo regional das disputas políticas de que tratamos.

    O terceiro capítulo, escrito por Flávia Biroli, situa os conflitos relacionados ao gênero no contexto de consolidação das democracias na América Latina e, mais recentemente, nos processos de erosão da democracia que têm tido expressão em países da região. Sistematizando o debate teórico sobre desdemocratização, discute o lugar do gênero nesses processos. A análise de protestos de rua contra a ideologia de gênero em diferentes países, a partir de 2016, coloca em cena enquadramentos que promovem a defesa da família, enquanto são contestados valores democráticos como a pluralidade, a igualdade e o direito à crítica, abarcando um amplo leque de direitos individuais. Em nome da família e das tradições, a produção intelectual difundida para combater a ideologia de gênero movimenta narrativas que têm o objetivo de deslegitimar os movimentos feministas e LGBTQI, a produção de conhecimento sobre o gênero e também as agendas de justiça social que fizeram parte da ampliação do sistema internacional de direitos humanos nas últimas décadas. Dessa perspectiva, o próprio conceito de democracia adquire novos sentidos.

    Por fim, a conclusão, escrita conjuntamente, retoma a ideia de disputas entre moralidades distintas para tratar do problema que perpassa todo o livro: a atualização do conservadorismo religioso, que entendemos ser um fenômeno que se desenvolve em uma temporalidade marcada pelos avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, por deslocamentos nas relações de gênero e na moral sexual, mas também por mudanças na correlação de forças no campo religioso. Nesse ponto, são particularmente importantes, na América Latina, o declínio do catolicismo e a expansão do pentecostalismo. Novas alianças entre católicos e evangélicos têm sido firmadas para o combate aos direitos reprodutivos e sexuais. Eles convergem no interesse mais amplo de renaturalização da moral religiosa como ética pública (e a batalha contra o gênero serve bem a esse interesse), mas há divergências que podem se manifestar em disputas concretas por espaços e recursos.

    A politização reativa das demandas dos movimentos sociais, ancorada na ideia de defesa da família, permeia o direito e a política institucional. O primeiro é um espaço privilegiado para o reenquadramento dos próprios direitos, renaturalizando a moralidade cristã como fundamento da lei. A segunda oferece um paradoxo: foi por canais democráticos que atores conservadores religiosos ampliaram sua atuação na região nas últimas décadas e que as novas alianças mencionadas se constituíram, mas essa atuação, marcadamente antipluralista, contribui para a erosão das democracias. A disputa entre moralidades, analisada em todos os capítulos, inclui novos padrões de ação e de mobilização de enquadramentos, que abrem oportunidades para lideranças de extrema direita, colocam em xeque valores democráticos e reforçam tendências autoritárias.

    Com este livro, esperamos contribuir para as pesquisas em curso, em especial para um olhar que permita, ao mesmo tempo, destrinchar especificidades nacionais, entender padrões regionais e conectar o que se passa na América Latina às dinâmicas globais da reação ao gênero.

    Gostaríamos de registrar que fizemos esforços para encontrar alternativas às marcas de gênero na linguagem. Como sabemos, a adoção do masculino como se fosse neutro e universal contribui para apagar sujeitos e perspectivas. Esse é, no entanto, um enorme desafio, sobretudo quando a língua demarca o gênero extensamente, como no caso do português. Para evitar prejuízos à fluência e à clareza do texto, optamos pela regra gramatical padrão, mas evitando, sempre que possível, o artifício da neutralidade.

    Não poderíamos finalizar esta apresentação sem uma série de agradecimentos a instituições e pessoas que tornaram possível esta publicação.

    Registramos nosso agradecimento à Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), que financiou a pesquisa Democracia, direitos e a ofensiva contra a ‘ideologia de gênero’ (Edital 04/2017), a qual deu origem a este livro. Da mesma forma, agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelas bolsas de produtividade em pesquisa concedidas a Flávia Biroli e a Maria das Dores Campos Machado para o desenvolvimento de seus projetos de investigação científica. Durante o período em que trabalhava na finalização do livro, Flávia Biroli também se beneficiou da estrutura concedida pela Jesus College, na Universidade de Oxford, à qual esteve vinculada como fellow entre janeiro e março de 2020.

    Ao longo dos dois anos em que foi realizada, a pesquisa contou com bolsistas de iniciação científica (FAP-DF), a quem agradecemos: Angela Castellanos Aranguren, Betânia Alves, Davi Gomes, Henrique do Amaral, João Victor Gonzalez, João Vitor Martins e Natália Oliveira. Também colaboraram para a pesquisa Daniel Jacó, Raniery Teixeira e Rayani Mariano, que nesse período desenvolveram, respectivamente, dissertações de mestrado sobre as reações ao programa Escola sem Homofobia e à chamada ideologia de gênero no Congresso Nacional e tese de doutorado sobre as disputas em torno da definição de família na Câmara dos Deputados (nos três casos, no programa de pós-graduação em ciência política da Universidade de Brasília).

    O diálogo com colegas de nossas próprias instituições e de diferentes universidades, centros de pesquisa e organizações não governamentais foi também fundamental para a compreensão da complexidade das disputas de que tratamos aqui. Pelas parcerias ou pelo tempo que nos concederam para conversas sobre o contexto nacional ao qual têm dedicado suas pesquisas e/ou atuado em defesa de direitos das mulheres e da população LGBTQI, agradecemos especialmente a Andreza de Souza Santos, Céli Pinto, Conny Roggeband, Constanza Tabbush, Daniel Jones, Danusa Marques, Eleonor Faur, Fanni Muñoz, Franklin Gil Hernandez, Gina Romero, Gisela Zaremberg, Javier Armando Pineda Duque, Joluzia Batista, José Fernando Serrano Amaya, José Luis Pérez Guadalupe, José Manuel Morán Faúndes, Juan Esquivel, Laura Alexandra Castro Gonzalez, Luciana Ballestrin, Maria Alicia Gutiérrez, Maria Angélica Peñas Defago, Maria Mercedes Acosta, Mariana Caminotti, Marlise Matos, Mauricio Albarracin, Oscar Amat y Leon, Patricia Ruiz-Bravo, Sonia Alvarez, Stéphanie Rousseau, Susana Chavez, Viviana Carolina Machuca e William Maurício Beltran Cely. Nosso agradecimento especial a Sonia Corrêa, que generosamente leu e fez apontamentos importantes nos originais. Equívocos ou limites analíticos que ainda possam existir são, é claro, de nossa inteira responsabilidade. Com essa lista certamente incompleta, estendemos nossos agradecimentos às redes de pesquisadoras que têm se dedicado a compreender as reações contra a agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual na América Latina e às ativistas comprometidas com a defesa dos direitos e da integridade física e psíquica de mulheres, de meninas e meninos e da população LGBTQI na região.

    Agradecemos também às pessoas queridas que nos apoiaram no cotidiano de trabalho, dentro e fora de casa. Sem seu cuidado, seu tempo e sua compreen­são, a circulação para a realização da pesquisa e o diálogo com pesquisadores, assim como a produção deste livro, seriam bem mais difíceis – e, em alguns casos, impossíveis.

    Por fim, ressaltamos a importância de ambientes acadêmicos plurais, nos quais exista liberdade para a pesquisa e para o ensino, assim como condições materiais adequadas para a realização dessas atividades. O ensino público e o apoio à pesquisa científica são, sem dúvida, pilares fundamentais da produção de conhecimento e do desenvolvimento e fortalecimento da democracia na região.


    [1] O termo juridificação tem diferentes dimensões. Nós o usamos em dois sentidos vinculados: por um lado, o crescente uso de instrumentos e normas legais para resolver os conflitos sociais e políticos e, por outro, o processo pelo qual as pessoas começam a considerar-se como sujeitos legais e portadores de direitos. O fenômeno da judicialização, que é uma das dimensões da juridificação, implica o uso crescente do poder judicial para a resolução de conflitos. Embora seja importante para compreender certos processos na América Latina, como a judicialização da política, é insuficiente para dar conta de outros usos do direito que ultrapassam inclusive as cortes e o Judiciário. Daí a opção feita neste livro pelo termo mais amplo, juridificação, considerando o conjunto de processos que analisamos. Para uma discussão aprofundada sobre as diferentes dimensões da juridificação, ver Lars Chr. Blichner e Anders Molander, Mapping Juridification, European Law Journal, v. 14, n. 1, dez. 2007.

    INTRODUÇÃO

    MATRIZES DO NEOCONSERVADORISMO RELIGIOSO NA AMÉRICA LATINA

    Juan Marco Vaggione, Maria das Dores Campos Machado e Flávia Biroli

    Nas últimas quatro décadas, temos observado o fortalecimento político de atores coletivos com agendas conflitantes na América Latina: os movimentos feministas e LGBTQI, por um lado, e os segmentos católicos carismáticos e evangélicos pentecostais, por outro. Enquanto os primeiros atuam para promover a igualdade de gênero e pela extensão dos direitos sexuais e reprodutivos, os setores pentecostal e católico também adotam uma política de identidade e representação, mas com uma agenda de defesa da liberdade religiosa, da família e da moral sexual cristã. Sem desconsiderar a heterogeneidade existente nos dois lados, quando se trata das disputas em torno do gênero e da sexualidade, é possível detectar o antagonismo entre uma agenda marcada pelo pluralismo ético e outra orientada por concepções morais unitárias.

    O conservadorismo, assim como suas configurações atuais que, como defendemos neste livro, permitem falar em neoconservadorismo, não se restringe a atores, agendas e linguagem de caráter religioso. Entretanto, religiosos conservadores e seu apelo a uma maioria cristã são centrais aos processos e disputas de que tratamos aqui. Eles têm reafirmado, em diversos espaços, uma perspectiva moral que serviria de base para a regulação da vida social e reprodutiva de toda a população.

    Longe de ser um remanescente do passado, a política estabelecida por esses atores religiosos projeta e impacta os debates públicos na maioria das sociedades latino-americanas. Isso demanda uma avaliação cuidadosa da relação entre religião e política, compreendendo seus padrões atuais.

    A análise que apresentamos aborda essa relação numa temporalidade específica, a da reação dos atores religiosos conservadores à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual, pauta incorporada ao sistema internacional de direitos humanos e, mais especificamente, às diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU) a partir dos anos 1990. No início deste século, essa reação se intensificaria, com maior mobilização no âmbito do Judiciário, do Legislativo e de protestos de rua em defesa da família e contra o gênero. A noção de ideologia de gênero, que tem origem nos anos 1990, seria, nesse processo, transformada em uma estratégia política que facilitou a atuação conjunta de diferentes atores conservadores e forneceu novos recursos para a mobilização popular. Assim, ao tratarmos das relações entre religião e política e do neoconservadorismo, voltamos nossa atenção a um conjunto específico de ações, assim como aos atores nele engajados, com um olhar regional para a América Latina.

    Sem desconsiderar, é claro, o que foi produzido nas décadas anteriores, um novo conjunto de problemas passou a ser analisado. Isso se deu à medida que as novas democracias latino-americanas, constituídas a partir dos anos 1980, transformaram-se em um espaço de disputas de movimentos feministas e LGBTQI contra movimentos de caráter conservador. Ao mesmo tempo, nos anos 2010, o impacto político das ações contra o gênero ultrapassou o escopo das disputas em torno de legislação e de políticas públicas específicas, sendo notado em diferentes processos na região, como o acordo de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em 2016, as eleições na Costa Rica e no Brasil em 2018 e, nesse mesmo ano, a oposição à paridade de gênero na participação política no Paraguai.

    Em grande parte, o interesse pelo assunto veio do ativismo, que encontrou na influência política dos religiosos um dos principais obstáculos ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos[1]. Acadêmicos do campo da sociologia e da antropologia da religião têm participado intensamente do debate com coletivos feministas e LGBTQI e produzido estudos importantes sobre os desafios que os grupos religiosos colocam para a agenda dos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina[2].

    Apesar do impacto político dessa questão nas democracias que se organizaram nas últimas décadas e em processos políticos recentes, na área de ciência política especificamente, ainda são poucos os estudos que assumem tal enfoque[3]. Consideramos, no entanto, que as relações históricas entre religião e política são incontornáveis para a análise do Estado na região, assim como para o entendimento das disputas e das formas correntes de polarização. Um olhar atento a esses processos pode contribuir para uma melhor compreensão da relação entre religião e democracia, assim como das clivagens políticas atuais. Estudos recentes têm também reposicionado essa discussão, abordando suas conexões com o neoliberalismo[4].

    Este livro se insere no debate em questão a partir de reflexões realizadas em diferentes áreas disciplinares, levantando algumas questões que perpassam todos os capítulos. São elas:

    • Qual o contexto em que se definem as disputas entre movimentos feministas e LGBTQI, de um lado, e movimentos conservadores que se opõem à agenda dos primeiros, de outro?

    • Quais atores estão engajados nessas disputas e quais são as principais agendas em que a controvérsia pública se estabelece?

    • O conservadorismo contra o gênero que ganhou expressão mundo afora – e, especificamente, na América Latina – no início do século XXI é uma continuidade de fenômenos anteriores ou estamos lidando com um fenômeno de novo tipo?

    • Considerando que o gênero, situado nessas disputas, se transformou em uma nova clivagem política e eleitoral, quais são as consequências da reação que aqui analisamos? Em especial, quais são seus efeitos em um contexto de crescente polarização política, em que se tem falado no fortalecimento do iliberalismo e na erosão das democracias?

    Nesta introdução, oferecemos uma moldura conceitual e teórica para essas questões, embora não seja nosso objetivo esgotá-las; não pretendemos dar conta neste livro de tudo o que envolve a reação à igualdade de gênero e à diversidade sexual na América Latina nas últimas décadas, mas sim colaborar para a compreensão dos padrões atuais dessa reação.

    Sabemos que as disputas em torno de direitos relacionados à posição das mulheres na sociedade e, em especial, à reprodução e à sexualidade, não são propriamente novas. Nosso entendimento, no entanto, é de que há algo novo que precisa ser descrito e explicado. Partimos, assim, de uma análise da temporalidade do fenômeno para, em seguida, definir conceitualmente nosso objeto e explicar por que mobilizamos a noção de neoconservadorismo.

    Temporalidade

    Embora venha sendo discutida no meio acadêmico desde os anos 1980, a noção de gênero levou certo tempo para se tornar comum em documentos internacionais e, principalmente, em debates parlamentares, campanhas eleitorais e protestos na América Latina. A temporalidade das disputas em torno do conceito de gênero está diretamente relacionada a diferentes moralidades – mobilizadas por atores diversos e, em alguns casos, até antagônicos – no que se refere às desigualdades entre mulheres e homens e ao controle da sexualidade. Está também relacionada ao processo de ressignificação da agenda de direitos humanos e da própria noção de cidadania, em um período de consolidação das democracias liberais em diversas partes do mundo.

    O fato de que tenha dimensões acadêmicas e políticas é revelador da posição ocupada pela produção teórica feminista. Essa produção tem, simultaneamente, registrado, revelado e colocado em xeque fundamentos das desigualdades e das violências relacionadas a estruturas e dinâmicas patriarcais e heteronormativas. Em tal campo de produção intelectual, que se expandiu justamente nesse período, o diálogo com agendas e lutas políticas dos movimentos sociais e o horizonte de intervenção pública estiveram sempre presentes.

    Na década de 1970, intelectuais feministas começaram a recorrer ao termo gênero para tratar das relações entre os sexos, compreendendo que as distinções que definem o feminino e o masculino são fundamentalmente sociais[5]. A abordagem histórica dessas diferenças e a compreensão relacional dos papéis e das identidades se tornariam matrizes relevantes para as pesquisas acadêmicas.

    Citada com frequência em documentos religiosos e por atores conservadores de diversos países que mobilizam a noção de ideologia de gênero, Judith Butler publicaria, em 1990, um livro que teria grande impacto nesse debate, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity[6]. Nele, questionava frontalmente o binarismo e a noção de que há um fundamento sexual natural que possa ser contraposto à construção cultural dos papéis sociais. [A categoria] sexo é, ela própria, uma categoria generificada e não uma realidade prévia na qual a cultura se inscreve[7]. Quando a segunda edição do livro foi publicada pela editora estadunidense Routledge em 1999, a noção de gênero já havia sido mobilizada em conferências da Organização das Nações Unidas, incorporada a documentos internacionais e mencionada em textos de intelectuais católicos e documentos da Igreja.

    É interessante observar que, apesar disso, no prefácio substantivo que escreveu para a edição de 1999, o foco de Butler está nos conflitos no próprio campo feminista, uma vez que também nele a abordagem de gênero foi controversa e despertou debates[8]. O que ela disse naquele momento serviria, no entanto, para pensar nas reações que foram sendo construídas, estabelecendo uma nova linguagem e uma estratégia política de novo tipo: A vida do texto excedeu minhas intenções, e isso é, em parte, certamente o resultado de um contexto de recepção em transformação[9].

    Uma nova temporalidade se estabeleceria com a politização reativa da reprodução e da sexualidade[10], mas também da própria noção de gênero; o recurso à expressão ideologia de gênero é importante na medida em que nos ajuda a compreendê-la. Presente na produção de intelectuais argentinos e estadunidenses desde meados dos anos 1990[11], o primeiro registro dessa expressão em um documento da Igreja católica viria em 1998, com a divulgação do informe Ideologia de gênero: seus perigos e alcances pela Comissão da Mulher da Conferência Episcopal Peruana. O informe se baseava no livro The Gender Agenda: Redefining Equality, publicado em 1997 pela jornalista Dale O’Leary. Na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela Organização das Nações Unidas em Pequim em 1995, O’Leary havia tido atuação destacada como representante de organizações da direita católica estadunidense.

    Os relatos feitos por Françoise Girard e Sonia Corrêa[12] sobre o que a última definiu como a constituição paulatina de uma política antigênero apontam para algo que se assemelha, embora em outra dimensão, ao que Judith Butler disse no prefácio à segunda edição de Gender Trouble, mencionado há pouco. A atua­ção conservadora, que envolveu organizações estadunidenses, países da América Central alinhados à Santa Sé e mesmo uma articulação inesperada entre Vaticano e Estados islâmicos, como

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