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Serviço Social e ética profissional: fundamentos e intervenções críticas
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E-book383 páginas4 horas

Serviço Social e ética profissional: fundamentos e intervenções críticas

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Sobre este e-book

Constitutivo da Biblioteca Básica de Serviço Social, este livro apresenta diferentes aspectos e questões que envolvem a ética e a ética profissional, oferecendo aos alunos e professores de ética elementos para uma abordagem critica acerca dos fundamentos e da intervenção ética em Serviço Social e áreas afins.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de fev. de 2023
ISBN9786555553628
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    Serviço Social e ética profissional - Cristina Maria Brites

    Capítulo 1

    Ética, ser social e trabalho

    1. Trabalho e capacidades humanas

    A compreensão ontológica da ética supõe a consideração do trabalho — como forma privilegiada de práxis — e a origem das capacidades humanas que fundam o ser social como um ser ético-moral.

    Tanto os animais como os humanos estabelecem relações com a natureza para sobreviver, mas, enquanto a atividade dos animais é imediata, a atividade de trabalho humano se caracteriza por ser uma relação mediada:

    À diferença das atividades naturais, o trabalho se especifica por uma relação mediada entre o seu sujeito (aqueles que o executam, homens em sociedade) e o seu objeto (as várias formas da natureza, orgânica e inorgânica). Seja um machado de pedra lascada ou uma perfuradora de poços de petróleo com comando eletrônico, entre o sujeito e a matéria natural há sempre um meio de trabalho, um instrumento (ou um conjunto instrumentos) que torna mediada a relação entre ambos (NETTO; BRAZ, 2006, p. 32).

    Através do trabalho (práxis), põem-se em movimento certas mediações humanas essenciais: a consciência; a capacidade teleológica de projetar idealmente o resultado da práxis segundo finalidades postas pelo sujeito;¹ as formas de sociabilidade necessárias à sua objetivação, como a cooperação, a comunicação, a linguagem, o conhecimento prévio da natureza; a liberdade, como a capacidade de criar alternativas e escolhas; a universalidade como categoria da práxis.

    A consciência tem um papel ativo na objetivação do trabalho e no processo de reprodução do ser social, na medida em que cada resposta às necessidades sociais envolve novas perguntas, gerando novas formas de atendimento e novas alternativas.

    […] o homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que — paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente — ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quando em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações bastante articuladas. De modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é um produto imediato da consciência que guia a atividade (LUKÁCS, 1979, p. 5).

    Para transformar a natureza, o ser social deve desenvolver certo nível de conhecimento que lhe permita saber quais são os elementos que melhor atendem às suas necessidades e os meios apropriados para essa intervenção. Esse processo envolve escolhas:

    Quando o homem primitivo escolhe, de um conjunto de pedras, uma que lhe parece mais apropriada aos seus fins e deixa outras de lado, é obvio que se trata de uma escolha, de uma alternativa (LUKÁCS, 2013, p. 71).

    As escolhas entre alternativas são orientações de valor baseadas em certas propriedades da pedra que a tornam adequada às finalidades postas pelo trabalho e que são precedidas de perguntas de natureza valorativa: é certo ou é errado escolher essa pedra (LUKÁCS, 2013)? Assim, a orientação de valor é objetiva, também gerada a partir do trabalho.

    O produto do trabalho torna-se um valor que não existe no objeto em si, mas que é produto da atividade humana, pois a valoração de um objeto supõe sua existência material concreta. Assim, seu valor corresponde à práxis que o transformou em algo novo, que responde às necessidades sociais, sendo valorado como bom, útil, belo etc. Por isso, o valor não é uma decorrência apenas da subjetividade humana; ele é produto da práxis.

    Portanto, o sujeito que trabalha deve fazer escolhas entre alternativas concretas; tais escolhas não se devem a pulsões naturais, mas a avaliações que envolvem elementos (útil, inútil, bom, mau etc.) pertinentes à obtenção dos resultados do trabalho. Assim, o valor é uma categoria ontológica social; existe independentemente da avaliação dos indivíduos, mas não da práxis humana.

    A capacidade de escolha só se torna objetiva pela prática que transforma a intenção num produto concreto; é a atividade, pois, a base ontológica de criação do valor e do caráter alternativo das escolhas das ações humanas:

    A necessidade social que põe os valores é, com igual necessidade ontológica, ao mesmo tempo, pressuposto e resultado do caráter alternativo dos atos sociais dos homens. No ato da alternativa contém-se necessariamente também a escolha entre o que tem valor e o que é contrário ao valor; temos assim, por necessidade ontológica, tanto a possibilidade de escolher o que é contrário ao valor, como quanto a possibilidade de errar, mesmo tendo escolhido subjetivamente o que é valioso (LUKÁCS, 1979, p. 156).

    Ao mesmo tempo, o caráter de alternativa das ações humanas supõe a presença do acaso. O trabalho exige que as propriedades dos objetos da natureza que serão modificadas sejam conhecidas adequadamente; mas isso não elimina a casualidade na relação entre a pedra e a estátua, entre a madeira e a mesa (LUKÁCS, 1979, p. 101, grifos nossos).

    Segundo Lukács, podemos falar no germe ontológico da liberdade posto, pela primeira vez na realidade, na alternativa dentro do processo de trabalho (LUKÁCS, 2013, p. 77, grifos nossos), pois a possibilidade e a necessidade ontológicas das alternativas fornecem a base para toda a liberdade (LUKÁCS, 2013, p. 367, grifos nossos). Portanto, a alternativa é a categoria que faz a passagem da possibilidade à realidade (LUKÁCS, 2013, p. 78).

    A liberdade é, ao mesmo tempo, capacidade de escolha consciente dirigida a uma finalidade, bem como capacidade prática de criar condições para a realização objetiva das escolhas e para que novas alternativas sejam criadas:

    Por isso, o fenômeno ‘originário’ não consiste na simples escolha entre duas possibilidades — algo assim também pode suceder na vida dos animais de organização mais elevada —, mas na escolha entre o valioso e adverso ao valor, eventualmente (em estágios mais elevados) entre duas espécies de valor, entre complexos de valores, precisamente porque a escolha entre objetos não se dá de modo, em última análise, estático, apenas biologicamente determinado, mas, tomam-se decisões de modo ativo e prático, sobre se e como determinadas objetivações podem ser realizadas (LUKÁCS, 2013, p. 374-375).

    Como possibilitador da liberdade, o trabalho é uma atividade potencialmente livre, isto é, ele põe as condições para a liberdade na medida em que permite o domínio do homem sobre a natureza, o desenvolvimento multilateral de suas forças produtivas, capacidades e necessidades — pressupostos para o reconhecimento de si mesmo e dos outros como sujeitos capazes de criar alternativas e imprimir uma direção a seus projetos sócio-históricos.

    Portanto, a liberdade é uma capacidade ontológico-social, um atributo humano essencial que se objetiva prioritariamente pelo trabalho e através de outras formas de práxis, que visam à superação dos obstáculos à sua realização.² Nesse sentido, a liberdade é ação prática de negação de impedimentos e entraves à sua objetivação e, ao mesmo tempo, valor fundante da práxis emancipatória dirigida à realização objetiva de forças, capacidades e potencialidades humanas.

    Como atributo humano essencial, a liberdade é produto sócio-histórico; sua objetivação depende, pois, das condições históricas de desenvolvimento do trabalho e da práxis, de modo geral. A consideração de que os homens escolhem circunstâncias históricas determinadas implica o entendimento de que — em determinadas condições históricas —, por exemplo, nas condições do trabalho alienado e da reificação, a práxis se realiza de forma a tornar a liberdade e as demais capacidades essenciais do ser social externas e estranhas a ele, possibilitando, inclusive, a negação de sua própria capacidade de escolha.

    Liberdade e universalidade se referem à totalidade e à diversidade de capacidades e necessidades; o ser social é mais livre e mais universal à medida que tem condições concretas de objetivar suas potencialidades de forma multilateral e de criar novas alternativas. O trabalho é a mediação primária, pela qual o ser social objetiva prática e teoricamente sua universalidade; na medida em que produz de modo universal, relaciona-se universalmente com a natureza e o faz de forma consciente.

    A objetivação da universalidade é parte essencial do processo de reprodução do ser social, pressupondo a ampliação da sociabilidade e da consciência, pois, para se constituir como um ser cada vez mais universal, é necessário que as limitações ao desenvolvimento livre sejam, também, superadas. Nesse sentido, o desenvolvimento de forças produtivas, capacidades e necessidades sociais é condição fundamental para a explicitação da universalidade e da liberdade.

    Considerar a universalidade atributo essencial do ser social é ter como referência o gênero humano, e seu desenvolvimento multilateral e ilimitado. Mas a relação entre o indivíduo e sua dimensão genérica desenvolve-se de forma contraditória:

    [...] em todo ato de sua vida, reflita-se ou não em sua consciência, o homem sempre e sem exceções realiza ao mesmo tempo, e de modo contraditório, a si mesmo e ao respectivo estágio de desenvolvimento do gênero humano (LUKÁCS, 1979, p. 142).

    A incorporação das objetivações humano-genéricas pelos indivíduos é proporcionada socialmente por diversas formas de práxis que permitem a compreensão crítica da realidade, a ampliação da consciência e do conhecimento mediado por valores, projetos e ideias. Desse modo, toda forma de práxis é universalizante, referindo-se ao gênero humano.

    À medida que o processo histórico se complexifica, surgem outras formas de práxis que expressam o desenvolvimento das capacidades humanas, por exemplo, a práxis política, a práxis revolucionária³ ou a artística.

    Algumas formas de práxis são privilegiadas nesse sentido; são aquelas que não têm a matéria como objeto, mas a relação entre os homens, ampliando e diversificando as capacidades humanas, revelando a criatividade humana, estabelecendo novas mediações a partir daquelas já desenvolvidas. Se a origem do valor é posta pelo trabalho como práxis econômica, o desenvolvimento da sociabilidade impõe o espraiamento da capacidade de escolha entre alternativas de valor para outras esferas da totalidade social e modalidades de práxis:

    A categoria da práxis permite apreender a riqueza do ser social desenvolvido: verifica-se na e pela práxis, como, para além de suas objetivações primárias, constituídas pelo trabalho, o ser social se projeta e se realiza nas objetivações materiais e ideais da ciência, da filosofia, da arte, construindo um mundo de produtos, obras e valores — um mundo social, humano, enfim, em que a espécie humana se converte inteiramente em gênero humano (NETTO; BRAZ, 2006, p. 44).

    Entretanto, sendo históricas as condições de objetivação da práxis, conforme as estruturas sociais em que se objetivam as atividades humanas, a práxis pode produzir a sua própria negação. Marx tratou desse fenômeno, referindo-se ao trabalho alienado.

    2. Trabalho e alienação

    Segundo Marx, na alienação, o trabalho não se apresenta ao trabalhador como algo que lhe pertence, que é produto de sua ação, mas como algo que lhe é alheio e estranho.

    […] a alienação, complexo simultaneamente de causalidades e resultantes histórico-sociais, desenvolve-se quando os agentes sociais particulares não conseguem discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo e efeito de sua ação e intervenção; assim, aquelas formas e, no limite, a sua própria motivação à ação lhes aparecem como alheias e estranhas (NETTO, 1981, p. 74).

    A alienação não é, como aparentemente se mostra, um fenômeno puramente subjetivo, mas a expressão de condições reais de separação entre o trabalho e seu produtor, de fragmentação do processo de trabalho e das dimensões do ser social. No modo de produção capitalista, a alienação adquire contornos específicos, tendo em vista a instituição do trabalho assalariado, e a total separação entre o trabalhador e os meios de produção, que pertencem ao capitalista.

    Nesse contexto, o trabalhador é alienado da totalidade do processo de trabalho, ou seja, da propriedade dos meios de trabalho, do controle sobre o processo de trabalho e de seu produto final. Como trabalhador assalariado, ele só dispõe de sua força de trabalho, entrando no processo em condições desiguais; durante o processo, sua participação é fragmentada, pois ele não tem controle sobre a totalidade desse processo; utiliza suas capacidades de forma limitada e não se apropria do produto do trabalho. Sai do processo tendo criado um valor a mais — a mais-valia —, que excede o valor de seu salário e é apropriado pelo capital, tendo criado um produto que não lhe pertence e com o qual ele não se identifica; seu salário lhe permite apenas sobreviver fisicamente para reiniciar o processo.

    Essa forma de produzir estabelece mediações que alienam o homem de suas objetivações ontológicas fundantes; ao alienar-se da totalidade do processo de trabalho, o homem está alienado: da atividade (de si mesmo), da natureza (de seu objeto), de sua genericidade e sociabilidade. Nesse sentido, a alienação da atividade não se manifesta somente em seu resultado, pois, como indaga Marx (1993, p. 161): como poderia o trabalhador estar numa relação alienada com o produto da sua actividade, se não se alienasse a si mesmo no próprio acto da produção?.

    Da alienação da atividade decorre uma relação de exterioridade do sujeito frente a seu trabalho e a si mesmo, na medida em que ele não se reconhece como ser ativo. Como afirma Marx (1993, p. 162): a actividade do trabalhador não é a sua actividade espontânea. Pertence a outro e é a perda de si mesmo. Nesse sentido, o trabalhador aliena-se de si mesmo como sujeito da atividade e, consequentemente, dos outros homens, pois na relação do trabalho alienado, cada homem olha os outros homens segundo o padrão e a relação em que ele próprio, enquanto trabalhador, se encontra (MARX, 1993, p. 166).

    O caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparece aqui diante dos indivíduos como algo estranho, como coisa; não como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos indiferentes entre si. A troca universal de atividades e produtos, que deveio condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca, aparece para eles mesmos como algo estranho, autônomo, como uma coisa (MARX, 2011, p. 105).

    O produto da atividade não pertence ao trabalhador. Com isso, deixa de ser a objetivação de um sujeito que se reconhece em seu objeto como algo que lhe pertence, que ele transformou através da atividade, para se tornar um objeto alheio; um objeto que não lhe pertence e no qual ele não se reconhece. Como diz Marx (1993, p. 159-160):

    [...] o trabalhador se relaciona ao produto do seu trabalho como a um objecto estranho […] quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo, tanto mais poderoso se torna o mundo dos objectos, que ele cria perante si, tanto mais pobre ele fica na sua vida interior, tanto menos pertence a si próprio […] O trabalhador põe a sua vida no objecto; porém, agora ela já não lhe pertence a ele, mas ao objecto […] A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objecto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autónomo em oposição com ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagónica.

    Na medida em que não se efetiva um reconhecimento do trabalhador frente a si mesmo, à atividade e ao produto do seu trabalho, ele se aliena de sua capacidade de se relacionar com a natureza como um ser das práxis; ele não se percebe como um ser ativo e consciente em oposição aos objetos da natureza e do mundo sensível. A atividade e os objetos produzidos deixam de refletir suas capacidades, diminuem sua possibilidade de valorar a si mesmo e aos outros homens como indivíduos em cooperação. Com isso, ele se aliena de sua sociabilidade e genericidade, se objetivando a "alienação do homem no homem", como diz Marx (1993, p. 166):

    Quando o homem se contrapõe a si mesmo, entra igualmente em oposição com os outros homens. O que se verifica com a relação do homem ao seu trabalho, ao produto do seu trabalho e a si mesmo, verifica-se também com a relação do homem aos outros homens, bem como ao trabalho e ao objecto do trabalho dos outros homens.

    O trabalhador não é alienado somente do controle da atividade e de seu produto, mas também de sua força de trabalho. Sua venda torna-se uma necessidade objetiva, tendo em vista a reprodução do trabalhador como força de trabalho e sua subsistência, o que explicita a lógica inerente às relações sociais capitalistas: a riqueza socialmente produzida não implica sua apropriação por parte dos que a produzem. Com a propriedade privada dos meios de produção e a divisão social do trabalho, portanto, são geradas as condições objetivas de exploração do trabalho nos moldes capitalistas, pois é mediante essa forma específica de produção que se efetiva a criação da mais-valia que torna possível a acumulação do capital. Alienação e expropriação do trabalho são, assim, faces de uma mesma relação social historicamente determinada.

    Nessas condições, o trabalho inverte sua finalidade criadora: em vez de liberar as capacidades essenciais do trabalhador, as aliena; em vez de se objetivar como um fim em si mesmo, torna-se um meio para a garantia da sobrevivência física; em vez de ampliar a criatividade e diversificar as possibilidades de escolha, reproduz a unilateralidade, a fragmentação, ou seja, reproduz condições que desumanizam o ser social. Dessa forma, o trabalho assume um caráter de negatividade, o que significa que ele nega o próprio homem, que se torna estranho à sua vida genérica, isto é, o homem torna-se estranho ao homem. Nas palavras de Marx (1993, p. 165-166):

    É precisamente na acção sobre o mundo objectivo que o homem se manifesta como verdadeiro ser genérico. Tal produção é a sua vida genérica activa. Através dela, a natureza surge como a sua obra e a sua realidade. Por conseguinte, o objecto do trabalho é a objectivação da vida genérica do homem: ao não reproduzir-se apenas intelectualmente, como na consciência, mas activamente, ele duplica-se de modo real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. Pelo que, na medida em que o trabalho alienado subtrai ao homem o objecto da sua produção, furta-lhe igualmente a sua vida genérica […].

    Portanto, a práxis afirma a humanização do ser social, a riqueza de sua construção histórica; por isso é uma objetivação emancipadora, de afirmação da vida. Mas as formas históricas de organização das sociedades limitam ou ampliam tais potencialidades. A alienação, nascida com a divisão social do trabalho, da propriedade privada e da exploração do trabalho, instaura uma defasagem entre o desenvolvimento universal das objetivações humanizantes do ser social e sua apropriação pela totalidade dos indivíduos sociais.

    No capitalismo, essa defasagem se transforma num abismo: onde o maior desenvolvimento das formas produtivas coexiste com o maior grau de alienação já produzido historicamente. Assim, as conquistas emancipatórias do gênero humano ou, nos termos de Marx — a riqueza humana produzida socialmente —, não são apropriadas pelo conjunto dos indivíduos sociais.

    O fetichismo é uma forma de alienação que se expressa na sociedade capitalista desenvolvida, nas condições da produção mercantil:

    Sem uma teoria da alienação, é impossível pensar a problemática do fetichismo: com efeito, em Marx, o fetichismo é uma modalidade de alienação. Todavia, quando a concretização histórico-sistemática alcançada pela sua reflexão a partir de 1857-1858 permite-lhe colocar adequadamente o problema do fetichismo, a teoria da alienação torna-se um complexo teórico critico que passa a abarcar um conjunto categorial onde desempenhará papel-chave o conceito de reificação (NETTO, 2015, p. 99).

    Na sociedade capitalista madura, a reificação invade todas as dimensões da vida social:

    Na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social preenche todos os espaços e permeia todos os interstícios da existência individual: a manipulação desborda a esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que penetra a totalidade dos agentes sociais particulares — é o interior cotidiano dos indivíduos que se encontra administrado (NETTO, 2015, p.110).


    1. Importa salientar que se não se objetivar na transformação prática da matéria, a teleologia permanecerá como um ideal, como afirmam Netto e Braz (2006, p. 32): Se essa prefiguração (no dizer de Lukács, essa prévia ideação) é indispensável à efetivação do trabalho, ela em absoluto o realiza; a realização do trabalho só se dá quando essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do sujeito, é transformada.

    2. Isto, no entanto, não significa afirmar que a liberdade é um estado de perfeição absoluta. Sendo histórica, a liberdade relaciona-se com as necessidades; por isso, não pode ser absoluta, na medida em que as necessidades são historicamente mutáveis. Também não supõe a eliminação das necessidades, pois liberdade e necessidade formam uma unidade indissolúvel e contraditória. A necessidade corresponde às tendências objetivas de reprodução econômico-sociais e a liberdade à capacidade humana de posicionar-se, escolher, criar novas alternativas e superar obstáculos à sua objetivação.

    3. É importante assinalar que, embora a transformação seja um elemento ontológico da práxis, isso não significa afirmar que a direção da transformação seja sempre a da liberdade; o trabalho alienado também transforma. No caso da práxis revolucionária, a transformação direciona-se a uma finalidade precisa: trata-se de subverter a totalidade da estrutura social.

    4. "Marx utiliza dois termos em alemão para referir-se à situação do trabalho no mundo capitalista: eutäusserung (alienação) e entfremdung (estranhamento) [...] Marx ora empregava as duas expressões indistintamente, ora acenava para uma sutil diferença. A referência ao trabalho estranhado, visando ressaltar a oposição entre o operário e sua criação, que lhe aparece como um poder irreconhecível e hostil, parece propor um distanciamento em relação à teoria feurbachiana da alienação religiosa, ao mesmo tempo que realça a dominação social inscrita no processo de produção, diferenciando-a, portanto, daquela alienação que é um produto abstrato, espiritual, da consciência mistificada" (FREDERICO, 1995, p. 131).

    Atividades complementares

    TEXTOS DE APOIO

    Texto 1

    Valor e história

    "O decurso da história é o processo de construção dos valores ou da degenerescência e ocaso desse ou daquele valor [...] Que entendemos por valor? Tudo aquilo que faz parte do ser genérico do homem e contribui, direta ou mediatamente, para a explicitação deste ser genérico. Aceitamos a concepção do jovem Marx — que se mantém também no período de maturidade — tal como foi expressa pela rica análise de György Márkus. Segundo esta análise, as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A essência humana não é, portanto, o que ‘sempre esteve presente’ na humanidade (para não falar mesmo de cada indivíduo), mas a realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade, ao gênero humano [...] Pode-se considerar valor tudo aquilo que, em qualquer das esferas e em relação com a situação de cada momento, contribua para o enriquecimento daquelas componentes essenciais; e pode-se considerar desvalor tudo o que direta ou indiretamente rebaixe ou inverta o nível alcançado no desenvolvimento de uma determinada componente essencial. O valor, portanto, é uma categoria ontológico-social; como tal, é algo objetivo; mas não tem objetividade natural (apenas pressupostos ou condições naturais) e

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