Religião em Portugal
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Sobre este e-book
Alfredo Teixeira
Alfredo Teixeira é doutorado em Antropologia pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e professor associado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (UCP). É investigador integrado do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião e colaborador do Centro de Estudos de História Religiosa (UCP). Integra a Comissão da Liberdade Religiosa do Ministério da Justiça, e é co-editor da Revista de Estudos da Religião (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
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Religião em Portugal - Alfredo Teixeira
Preâmbulo
Que livro é este? É um ensaio. Ensaiar é experimentar, repetir como forma de treino, iniciar sem o imperativo de acabar. Assim interpreto o espírito desta singular coleção da Fundação Francisco Manuel dos Santos, cujo objeto editorial tem alguns traços vincados de identidade. Procura-se um olhar de síntese sobre um problema ou conjunto de problemas, que não esteja fechado no âmbito restrito dos leitores de uma disciplina, mas antes habite a fronteira. Neste caso, a fronteira é, sobretudo, um lugar de transações. Lugar onde o conhecimento se comunica nessa qualidade fundamental que é a sua natureza pública, na abertura a todos os olhares, num formato portátil, pensado para a escala dos nossos quotidianos de leitores.
Mas a coleção permite também que o ensaio transporte com clareza a impressão digital do seu autor. Neste caso, gostaria que este texto pudesse ser lido à semelhança de uma biografia intelectual. A comunidade dos leitores vai encontrar-se aqui com uma parte do meu percurso de investigação no domínio dos Estudos de Religião, tanto no que diz respeito à indagação sobre esse labirinto misterioso que é a expressividade religiosa humana, como na caracterização das identidades religiosas em Portugal. Dessa biografia faz parte o encontro com vários cientistas sociais que, ao longo das últimas décadas, se cruzaram com os meus interesses de investigação. O diálogo com esses itinerários é uma marca expressivamente tatuada neste texto. É por isso que o leitor encontrará recorrentemente os sinais de uma remissão para a investigação e reflexão de outros. São janelas que abro. Isso acontece, na maior parte dos casos, de modo alusivo — sem a parafernália dos instrumentos complexos de citação e remissão, próprios da publicação científica. Mas é, em todo o caso, um gesto de honestidade e de homenagem necessário.
A construção que proponho favorece o jogo das escalas — entre a abordagem extensiva e a intensiva, entre a teoria e o caso, entre o retrato sincrónico e a perspetiva longitudinal, entre o corte no presente e a atenção aos substratos históricos, entre os modelos interpretativos e o interesse pela religião «a fazer-se». Creio que esse vaivém, numa perspetiva multiscópica, se revela adequado quando estamos perante um objeto tão complexo como este.
Na sua diversidade, este ensaio tem um fio condutor. As persistências ou as mudanças no campo religioso são pensadas no quadro mais amplo da dinâmica social que descreve a modernidade portuguesa. Elegemos três lugares de observação: destradicionalização, individualização, diversificação. Cada um destes eixos permite uma leitura transversal da paisagem religiosa portuguesa, desencadeada por algumas perguntas. Tendo Portugal prolongado no tempo alguns traços de uma forte tradicionalidade religiosa, que impactos se descobrem quando se observam dinâmicas como a urbanização, a terciarização, a migração ou a democratização? Que modernidade religiosa nos caracteriza, no quadro dessa ampla emancipação dos indivíduos relativamente às instituições? Sendo a diversificação de ofertas de sentido e de práticas uma das dinâmicas caracterizadoras das modernidades múltiplas, quais são os traços salientes da diferenciação religiosa em Portugal?
O mapa deste itinerário é a sociedade portuguesa, nas suas dinâmicas sociais, e não o perímetro de cada um dos grupos religiosos, tomados como um universo. Isso não significa que não seja necessário deter o olhar sobre algumas comunidades de pertença religiosa. Também não se ignorará que, atualmente, cerca de 80% da população se autorrepresenta como católica, nem que a sociedade portuguesa caminha, num ritmo próprio, para uma situação social de maior diversidade religiosa. Não será possível escrever sobre toda a geografia do diverso. Não só porque este texto é necessariamente incompleto, mas também porque o conhecimento construído cientificamente sobre algumas configurações do religioso, no nosso país, é ainda escasso. Este ensaio é, assim, um lugar num campo de possibilidades.
I. Destradicionalização
O Deus da nossa terra
Não precisamos de recuar muito no tempo para descobrirmos, na sociedade portuguesa, os traços de uma vincada tradicionalidade religiosa. Sob a designação de religiosidade tradicional quer-se incluir um conjunto de práticas, imaginários e mundividências, relativos a expressões do sagrado, de âmbito local e regional, e com uma particular relação com as estruturas herdadas do campesinato. Neste contexto, as imagens e as narrativas do Deus cristão sofreram moldagens diversas, na plasticidade própria de um «Deus da nossa terra».
Propõe-se, aqui, um breve exercício de memória. A trajetória do investigador de origem francesa que, mais tarde, adotou a nacionalidade brasileira, pode contribuir para uma compreensão da força social de certas práticas tradicionais na década de 70, do século XX. Pierre Sanchis desenvolvera um projeto de investigação de terreno em Portugal, entre 1972 e 1973, sobre uma aldeia da Beira Baixa. O interesse por dar continuidade a esta investigação conduziu-o até ao antropólogo Jorge Dias, e com este patrocínio alcançou uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Inicialmente, pensou em trabalhar sobre os conflitos e as transações entre os acontecimentos festivos populares e as formas litúrgicas católico-romanas — na década de 60, as tensões e negociações entre religiosidade popular e religião administrada constituíam um espaço de convergência de propósitos de investigação. No entanto, é oportuno notar que os primeiros interesses de Pierre Sanchis, no que dizia respeito à investigação para o doutoramento, passavam pelo Brasil — projeto dificultado, porém, pelas vicissitudes da situação política. Mas, como ele próprio sublinhou em entrevista, na revista Arquivos da Memória (1998, n.º 4), acabou por eleger a «romaria portuguesa», escolha que decorreu do facto de ele encontrar em Portugal esse lugar do «outro» que o antropólogo procura — neste caso, esse lugar do «exótico» face à experiência da Europa do Centro e do