Valentes, Brilhantes e Perfeitos
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Sobre este e-book
Viajaremos para a cidade fictícia de São Rafael da Nascente, onde três famílias, os Valentes, os Brilhantes e os Perfeitos, têm suas vidas entrelaçadas por uma série de questões que envolvem racismo, sexismo, classe social e muitos outros aspectos que perpassam a vida de quase todos nós, pois fomos formados em uma sociedade em que o preconceito soou, durante séculos, como algo normal.
A questão maior dos personagens deste livro é o fato de terem que lidar com seus próprios preconceitos, além dos alheios. Porém, nesta obra em particular, a ideia é que cada um se observe, se conheça e enfrente os preconceitos que moram dentro de si.
Não é preciso ter medo de embarcar nesta viagem, pois ela é leve e tranquila, embora prometa fazer todo mundo pensar muito sobre palavras e atitudes.
Quantas vezes ocultamos, por baixo de um perfil de correção, humanidade e altruísmo, gestos, pensamentos e palavras que nós mesmos condenaríamos se viessem de outra pessoa, mas que adoramos justificar quando descobertos em nós?
Quantas vezes escondemos de nós mesmos características que não queremos reconhecer para não nos vermos obrigados a enfrentá-las e modificá-las?
Em quantas oportunidades na vida fomos, pelo menos em parte, responsáveis pela dor de alguém e pela nossa própria dor por causa de palavras e atitudes preconceituosas, tentando defender uma situação já estabelecida, por não termos coragem de enfrentar a mudança?
Quantos corações magoamos, empenhados apenas em resolver nossas próprias questões sob a máxima de que "os fins justificam os meios"? Ideia com a qual não concordamos quando ela se volta contra nós.
Este livro é, acima de tudo, um trabalho de muita autorreflexão, sem o menor objetivo de julgar (ninguém tem as respostas sobre o outro), porém desejando que nos observemos com mais atenção "sem louvor nem censura", como diria um amigo meu que era terapeuta, a fim de tentarmos responder para nós mesmos a todas essas e mais quantas perguntas surgirem dentro de nós.
Enquanto tivermos perguntas sobre nós para responder, a vida será instigante e interessante. Vamos vivê-la?
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Valentes, Brilhantes e Perfeitos - Carla Maria de Souza
Valentes,
Brilhantes
e Perfeitos
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Carla Maria de Souza
Valentes,
Brilhantes
e Perfeitos
A todos os negros, pessoas com deficiência, homossexuais, mulheres e qualquer ser humano que se sinta vítima de alguma forma de discriminação, eu dedico este trabalho que busca apenas trazer, para cada um de nós, a necessidade de nos observarmos com o máximo de honestidade. À Mônica, viúva da parlamentar Marielle Franco, uma pequena homenagem por meio de uma personagem que leva seu nome e que foi construída com muito carinho. A todos os meus ancestrais, o desejo de mostrar que aprendi com vocês o amor pela família, não aquela feita de aparências, mas aquela com erros e acertos, com qualidades e defeitos, porém no seio da qual nos sentimos protegidos como somos.
Prefácio
Revolver a terra, tarefa de um bom jardineiro, é tarefa que exige o conhecimento da complexidade da terra: o pH, o tipo de solo propício a cada plantação, a multiplicidade de seres vivos e tantas outras características e cuidados necessários. Esta tarefa tão complexa é, ao mesmo tempo, uma tarefa tão simples por ser cotidiana de quem cuida do jardim. Arar, adubar, semear, regar, tarefas cotidianas, portanto simples e complexas.
Semelhante a um bom jardineiro, Carla Souza nos traz Valentes, Brilhantes e Perfeitos, uma narrativa de histórias comuns, de pessoas comuns, com seus medos, seus sonhos, seus projetos de vida e suas limitações. Histórias que se intercruzam e provocam tensões, pois cada personagem enfrenta seus preconceitos e é obrigada a enfrentar as suas questões mais íntimas, como jardineiros revolvendo a terra. O bom jardineiro não pode ter medo de revolver a terra, nem de mexer em esterco.
Essa metáfora perpassa a história de cada personagem deste livro. O que seria simples se revela em complexidade. E, com essa complexidade, Carla Souza nos faz enfrentar temas delicados que tocam o preconceito enraizado em uma sociedade patriarcal, sexista, racista e fundada na exploração dos(as) trabalhadores(as).
Fugindo do estereótipo do vilão, Carla Souza nos convida a pensar nos racismos estruturais e cotidianos, na LGBTfobia que mata e segrega, nas inúmeras tentativas de cerceamento da autonomia das pessoas cegas, no machismo que trata a mulher como um objeto, nas explorações diárias das empregadas domésticas, nas tentativas de invisibilizar as pessoas com autismo, entre tantos outros preconceitos cotidianos que habitam a nossa terra.
Ao mesmo tempo, o livro fala de amor, de amizade, de maternidade, de respeito entre as religiões e da capacidade que o ser humano tem de se autoconhecer e se transformar. A Carla Souza, escritora, traz aqui a Carla Souza, professora, pois nos presenteia pedagogicamente com toda essa complexidade, provocando-nos a refletir, a enfrentar e a problematizar questões tão polêmicas, como o aborto, sem criminalizar as mulheres. Carla Souza, mulher, negra e cega nos diz aqui de onde fala, convidando-nos a pensar quais personagens habitamos nesta história. Que revolvamos a terra!
Nivea Maria da Silva Andrade
Sumário
Introdução
Adriana
Dafne
Augusto
Interesseiros e interessados
Lívia e Lucas
Tarde demais para amar?
Os direitos da amante
Nuvens carregadas de tristeza
Sonhos desfeitos
Vida que segue
Super-homem e a kryptonita
A oficial de justiça
O diabo faz a panela, mas não faz a tampa
Virando o jogo
Quando o destino destina
Retas que se cruzam
Apendicite
Jardineiros e ervas daninhas
Rompimento de barragem
Amor de mãe
A festa do outono
Sempre pode piorar
No lugar do outro
Arrumando a casa
O bom jardineiro
Em pratos limpos
Quero conhecer meu pai
Valentes
Brilhantes
Perfeitos
Nossa cidade está mudando
AS histórias não têm fim, só recomeços
Introdução
Sejam todos bem-vindos a São Rafael da Nascente! Cidade fictícia do interior paulista, onde conhecerão três famílias, cujas vidas se cruzam por diversas circunstâncias: os Valentes, os Brilhantes e os Perfeitos. Acompanhando as histórias dos membros dessas famílias e alguns outros personagens desta trama que poderia acontecer em qualquer lugar, vamos nos perguntar: será que aquelas pessoas que conhecemos como bondosas e cheias de qualidades têm apenas esse lado para mostrar? Será que faz sentido levar uma mágoa para o resto da vida, ainda que nos doa, apenas para mantermos nossa aparência e pela opinião dos outros? Será que a opinião alheia vale o sacrifício de alguém que amamos? Será que não somos capazes de lidar com aqueles que são diferentes de nós e amá-los como são? Será que aquilo que julgamos ocultar está mesmo tão oculto assim?
Perguntas não nos faltarão, e sou capaz de apostar que o leitor ainda conseguirá encontrar outras neste universo que, agora, será também dele.
É um texto leve, porém repleto de indagações e, como sempre, de pessoas comuns, com qualidades e defeitos, sem que encontremos os bons de um lado e os maus do outro.
As lutas dos personagens são, acima de tudo, consigo mesmos, com seus conceitos e preconceitos, buscando um caminho melhor para viverem e conviverem.
Se o leitor vai encontrar a revolta de Letícia, a preocupação com a aparência em Glória e Augusto, a ambição de Dênis, a superproteção de dona Gerda, o orgulho de Edson, a falsidade de Dóris, também vai deparar-se com a força e o amor maternal de Adriana, a generosidade de Guilherme, a sensibilidade de Lívia, o equilíbrio de Mônica, o carinho fraterno de Diogo, a afeição simples e verdadeira de Renato, a inteligência de Dafne e a capacidade de empatia de Maurício.
Muitas mulheres, julgando amar, aceitaram a posição de amantes por toda uma vida, esquecidas de que, com isso, não amavam a si mesmas; muitos homens, ciosos de suas posições, não tiveram pejo em submeter outras pessoas a humilhações de todo o gênero, acreditando-se capazes de sufocar sentimentos em nome de valores que nada trouxeram. Muitos de nós armazenamos preconceitos por querermos evitar a violência, esquecidos de que há milhões de formas de sermos violentos; até nos consideramos pacíficos, mas promovemos apenas a paz do lago, onde há calma na superfície e lodo no fundo.
__________________________________________
Carla Maria de Souza nasceu no Rio de Janeiro em 1969, cidade onde vive até hoje.
Atingida pela toxoplasmose ainda no ventre materno, foi diagnosticada com baixa visão e, nessa situação, educou-se até os 13 anos. Dos 13 aos 15, viveu um processo gradual de perda do resíduo visual, fase em que foi muito ajudada pela sensibilidade de uma professora que, percebendo que seu caso era irreversível, prontificou-se a ensinar-lhe o Sistema Braille, mostrando-lhe que não havia portas fechadas, mas sim caminhos abertos à sua frente.
Com o apoio da família e o estímulo da maior parte dos educadores e colegas com quem cruzou, ela concluiu o antigo curso de Formação de Professores, a Faculdade de Letras na UERJ e, bem depois, o mestrado em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Sempre foi sua preocupação a ausência de textos que mostrassem a pessoa cega como um ser com qualidades e defeitos, nem bestial nem besta, sem superpoderes, porém capaz de tomar as rédeas de seu destino, com limitações como todo mundo.
Estimulada pelos próprios estudos ligados ao mestrado, em que pesquisou a percepção de professores cegos sobre o preconceito, começou a ler sobre o tema em si, vinculado a vários grupos: como mulher, cega e negra, faz parte de três grupos atingidos por situações de preconceito; tendo amigos e parentes homossexuais, conhece de perto mais uma realidade.
Em seu primeiro livro, A joia, o ourives e outras pérolas, as diversas histórias versam sobre várias situações de preconceito, havendo grande prioridade para a cegueira, já que era meta a escrita de textos que levassem mensagens a seus alunos do Instituto Benjamin Constant e outros jovens cegos.
Agora, a realidade é outra, contudo a cegueira continua a ser um dos temas formadores da trama.
Embarquem no trem para São Rafael e curtam a viagem!
Adriana
O trem mostrava, através de suas janelas, imagens familiares, imagens modificadas, imagens surpreendentes.
Voltar à terra natal era como retomar a história do lugar onde ela havia parado. Só que não havia parado realmente. Naqueles quase quinze anos, muita coisa havia acontecido. Transformações, a filha, novas experiências na enfermagem, novas cidades, novos falares, modos de viver diferentes, sofrimento. Tudo isso ela trazia na bagagem, mas trazia também uma grande saudade de sua gente, de sua família, dos amigos de infância... e de alguém muito especial. Tentaria novamente. Buscaria outra vez a felicidade ao lado do homem que sempre amara, talvez o único que já tivesse amado na vida.
— São Rafael da Nascente! Isso lá é nome de cidade? — protestava Letícia sentada ao seu lado. Diferente dela, a jovem de quatorze anos tinha os olhos verdes muito redondos. Vestia macacão azul claro e lia Morte na Praia, de Agatha Christie. Trazia na postura o gosto pelo desafio, sobretudo o desafio à mãe.
— Os nomes de cidade surgem assim. A nascente do rio Longo fica justamente nas terras que deram origem à cidade. No início, a ideia era chamar só de Nascente, mas seu Aurélio Perfeito, o dono das terras, teve um problema sério de saúde. Uma freira disse a ele que rezasse para o Arcanjo Rafael, e ele ficou curado. Daí exigiu a homenagem quando o povoado foi fundado — explicava ela à garota.
— E hoje deve continuar com a mesma cara que tinha quando foi fundado.
— Você viu as fotos. Sabe que não é assim.
— Duvido que seja como Curitiba.
— É muito melhor.
Veio a parada, e, quando se levantaram, Letícia mostrou à mãe uma jovem cega que se erguia e descia. Era negra como elas, o que atraiu a simpatia de Letícia que já havia vivido algumas experiências más com o racismo. Usava os cabelos alisados e bem compridos.
— Será que ela precisa de ajuda? — indagou a jovem em voz baixa.
— Só há um jeito de a gente saber — fez a mãe aproximando-se.
— Bom dia. Precisa de ajuda?
— Ah, sim. Queria ir ao banheiro e comprar um lanche — respondeu a moça contente com o oferecimento.
— Essa viagem é bem comprida. Achei que tivesse encurtado — comentou a mãe.
— O problema é que tem muitas paradas. Agora, boa parte das cidades tem estação, e o trem precisa parar em todas. Isso torna o processo mais longo — comentou a moça cega.
— Pelo visto, você faz sempre esse trajeto. Mora onde? — quis saber Letícia.
— Estudo em São Paulo, mas minha família mora em São Rafael.
— Sou de São Rafael! Qual é o sobrenome da sua família? — dessa vez, foi a mãe quem se manifestou.
— Brilhante. Sou filha de Alceu e Lígia Brilhante, mas acredito que você não os conheça. Não são gente influente. Minha mãe trabalha na cozinha da Santa Casa.
A moça sorriu e exclamou feliz:
— Como é que eu não ia conhecer a Lígia? Meu nome é Adriana, fui enfermeira da Santa Casa. Estamos sempre nos correspondendo. Se você falar com ela da Adriana, instrumentadora, tenho certeza de que ela vai se lembrar — deu até um abraço na outra.
— Ah, mas ela não te esquece. Já falou tanto de você para mim que acho que já te conheço só de ela falar — fez Dafne também contente.
— Cidade do interior é assim: antes da gente chegar, já encontra conhecidos. Será que, nas estações anteriores, o trem fica esperando todo mundo acabar de bater papo com o pessoal da estação, para seguir em frente? — brincou Letícia.
— Não sei quando você saiu da cidade, mas meu nome é Dafne. Tenho dois irmãos mais velhos — começou a contar a outra.
— Sim, você tinha três anos quando saí de lá. Seus irmãos são Dênis e Diogo, certo?
Abraçaram-se.
— Gente, sem querer estragar a alegria do reencontro, a gente tem que ir embora. O trem vai sair — lembrou Letícia.
As três compraram lanche e voltaram para o trem. Como estava tudo muito cheio, não tiveram como sentar juntas, porém sentiram imensa alegria em se encontrarem, e até Letícia ficou feliz.
— Ela parece legal. Pelo menos alguém jovem para conversar. Será que ela sabe andar bem pela cidade? Bem, se ela não souber, eu a guio. É alguém para me fazer companhia — alegava.
— Que bom que gostou dela. Parece uma boa moça, mas não seja injusta em falar que não tem companhia. Acha que o Gui vai deixar você sozinha?
— O Gui trabalha, mãe. É um primo maravilhoso, mas tem suas obrigações — Leticia respondeu pensando que precisava admitir: sentia muitas saudades do avô que lhe fazia as vontades, do primo, um dos garotos mais doces e gentis que ela conhecia, dos tios sempre atenciosos, sobretudo o tio Dario que, ela supunha, tentava substituir o pai que ela nunca conheceu. Só não queria enfiar-se naquela cidade acanhada.
— Se a Dafne estudou como parece, se seguiu em frente, deve saber muita coisa sobre a cidade. Se os pais a deixam viajar sozinha, é porque ela se garante — comentou Adriana, voltando ao assunto.
— Sempre tenho vontade de ajudar, mas tenho vergonha. Tenho medo de ser mal recebida.
— Ah, é que lá no hospital tinha o pessoal da câmara escura que é cego, e estou muito acostumada.
Vaqueiros, Itabaú, Serra Linda, São Rafael da Nascente. O trem cumpriu a sequência de cidades e estações tão conhecidas para Adriana. No seu tempo, porém, só São Rafael tinha estação, e não era nem de longe a grandeza que a enfermeira tinha diante dos olhos. Desembarcou gente em todas elas. Na de São Rafael, ela viu um rapaz aproximar-se de Dafne e foi até eles.
— Você é o Dênis ou o Diogo? — perguntou.
— Ah, Diogo. Essa moça conhece nossa mãe. Ela morava aqui em São Rafa, porém já está fora há bastante tempo — falou Dafne fazendo as apresentações.
O rapaz estendeu a mão respeitoso.
— Minha mãe adora reencontrar velhos conhecidos. Qual é a sua graça? Sou Diogo, às ordens.
— Sou Adriana, e essa é minha filha, Letícia.
— Precisam de ajuda? Já sabem para onde vão? — quis saber o rapaz.
— Minha irmã ainda mora por aqui, no Jardim Primavera. Vou pegar um táxi para a casa dela.
Depois de trocarem endereços e prometerem se procurar, Adriana e a filha entraram no táxi.
— Celso? É o Celso da Olga, não é? — perguntou a moça assim que o taxista as cumprimentou.
O rapaz firmou a vista e exclamou:
— Dona Adriana, filha do seu Mathias! Meu Deus! não mudou nada.
— Quer dizer que sempre tive essa cara velha e você nunca me disse? — brincou a outra.
— A senhora continua brincalhona. Vai para dona Anita, no Jardim Primavera? — fez rindo.
A viagem seguiu em meio a recordações de ambos. Adriana notava nele alguns cuidados quando falava.
Os ruídos do trem cada vez mais distante, dos carros agora em maior número, os passos das pessoas, o cheiro da padaria, da farmácia, da sapataria, da pensão da dona Emília que, segundo Celso, mantinha com a filha a mesma comida saborosa, enchiam a mente da enfermeira e traziam curiosidade à sua jovem filha.
Passaram pelo cemitério, que tinha muita gente na porta.
— Foi gente conhecida que morreu? — perguntou ela, vendo que Celso a olhava como se decidisse se ia ou não falar alguma coisa.
— Ah, coisa triste, dona Adriana! O Leonardo, filho do Dr. Augusto.
Dafne
A jovem pegou o trem em São Paulo ansiosa pelo bom período que passaria em casa. Aprovada no vestibular da Mackenzie para o segundo semestre, poderia ficar em casa até o final de julho.
Desde que fora estudar no Instituto Padre Chico, colégio administrado por irmãs e que atendia a crianças cegas, seu coração dividia-se entre o desejo de estudar, a amizade com aqueles com quem privava na escola e as saudades da casa, da cidade menor, das brincadeiras livres na rua. No colégio, era mais independente. Todos eram como ela, os professores a compreendiam. Rapidamente dominou o espaço da escola e, como acontecia a colegas que vieram antes e depois dela, corria pelo pátio, escorregava pelos corrimãos curtia e brigava à vontade. Também aprendia, é claro. Ganhou prêmios em leitura e redação; no soroban, usado para cálculos matemáticos, não era tão boa, porém conseguia o bastante, tanto que nunca foi reprovada. Oradora da turma em sua formatura, conseguiu vaga em boa escola paulista para o então Segundo Grau, continuando a residir no Padre Chico para estudar. Desenvolta, dominou com rapidez o desenho da cidade. Em casa, de férias, auxiliava a mãe nos serviços domésticos. No começo, Lígia havia protestado sempre temendo colocar a filha em perigo.
— Mãe, você não confia em mim? Nunca vai acreditar que não vou para a escola apenas para enrolar? — reclamava Dafne quando a cozinheira não queria que ela ajudasse. Ia driblando mãe, pai e irmãos e conseguindo se impor. A frase que a jovem mais detestava ouvir quando perguntava a alguém em casa como se fazia alguma coisa era:
— Me dá que eu faço para você.
Aquilo a enlouquecia, contudo entendia que não era possível brigar sempre.
Encontrou, no trem, a simpática Adriana e sua filha Letícia de quem havia gostado de cara. Esperava sinceramente não encontrar muito com Lucas, filho do Dr. Augusto. Já adulto, o rapaz nunca lhe fizera nada, no entanto tinha más recordações dele na infância. Colocava o pé na frente para que ela caísse, roubava seus brinquedos ou lanche só para irritá-la, devolvia-os depois, mesmo porque poderia comprar coisa muito melhor. Um dia, o pai do garoto decidira acabar com aquilo dando uma bronca em regra no menino na frente dela e forçando-o a pedir desculpas. Isso acabou gerando outro problema, pois dona Glória, esposa do médico, achava que o marido tinha exagerado e que a menina fazia-se de vítima. O fato é que o garoto não a provocou mais. Ela achava até que ele a evitava quando estava lá em férias.
Sabia que ele estudava medicina em Campinas. Já encontrara Lívia, irmã gêmea do rapaz duas vezes em São Paulo, porém não tinham muita proximidade, embora a moça tivesse sido simpática com ela.
— Evite se misturar com esse pessoal cheio do dinheiro em São Paulo, filha. Não são para você. Estão lá para se divertir, e não para estudar. Depois os pais deles pagam um professor, compram um diploma para eles e fica tudo certo. Você não tem isso. O Dr. Augusto foi muito bom levando você até lá quando a gente nem sabia que a escola existia, mas o resto é esforço seu. Ao demais foi só isso já que a escola é gratuita. Todavia, não podemos negar que teve vezes que ele pagou as passagens para eu te levar lá e você não perder aula — alegava sempre o pai que era grato ao médico, contudo não queria abusos por parte da filha.
— Não faço nenhuma questão de me aproximar do Lucas, mas não vi motivo para evitar a Lívia, já que foi ela quem me cumprimentou. Além disso, a única coisa com que não vou concordar é deixar de falar com o Leo por causa da dona Perfeita — respondia Dafne. A jovem era amiga de Leonardo, filho caçula do médico, desde que eram crianças. Glória implicava com essa amizade, reclamava que, quando ia na casa deles, a menina derrubava comida na mesa, sujava tudo, o que não era verdade. Por isso, aproveitando-se do sobrenome da família do médico (Perfeito), Dafne só a chamava assim, por trás, é claro.
Um dia, ela e Diogo estavam sentados na praça da igreja conversando e caíram nas histórias da infância. Desavisada, Dafne soltou sem medo:
— Dona Glória sempre queria colocar a culpa em mim, mas era o Lucas quem me provocava. Acho que a dona Perfeita pensa que cegueira pega. Ela me trata como se eu fosse leprosa.
De súbito, sentiu que o irmão lhe dava um chute na canela.
— Bom dia, meninos! Como vão?
Era o Dr. Augusto que acabava de chegar e ouvira, é claro, o apelido que a jovem pusera em sua mulher.
— Desculpem, a indiscrição foi minha. Eu quis deixar para falar quando estivesse bem perto. Não sou de falar alto, por isso acabei atrapalhando a conversa íntima de vocês — falou ele controlando a vontade de rir.
— Ah, tudo bem... O senhor... como está? — ainda conseguiu dizer Dafne, sentindo que seu rosto pegava fogo.
— Muito bem. E os estudos como vão? Você não tem ido ver o Leo. Agora, só se encontram na lanchonete, e eu fiquei de fora das conversas.
— É que a sua esposa não se sente bem na minha presença. Tento respeitar.
— Claro. Coisas da dona Perfeita... — Augusto riu vendo que a moça baixava os olhos. — Achei o apelido interessante. Encaixa bem com ela. Só não deixe o Leo saber. Ele pode ficar chateado.
Beijou a menina na testa, cumprimentou Diogo e saiu.
— Você tem que ser mais cuidadosa no falar. Em plena praça pública não acha que é muita bandeira? — falou Diogo nervoso.
***
Dafne tinha planos para seu futuro.
— Vou fazer Serviço Social e trabalhar na minha cidade. Não gostaria de ficar em São Paulo. Sei me virar lá, mas gosto da minha cidade — declarava ela para orgulho e, ao mesmo tempo, preocupação dos pais. Orgulho porque sentiam falta da filha; preocupação porque não sabiam se, em uma cidade pequena, com pessoas tão cheias de preconceito, ela conseguiria uma colocação.
— Não sei como vocês deixam a filha perdida naquela cidade — diziam uns.
— Como a senhora deixa ela passar roupa, dona Lígia? Se ela se queima? — alertavam outros.
— Não embarquem nessa piedade que não vai ajudar a filha de vocês. Se forem a São Paulo, se conhecerem o colégio de que falo, verão muitas pessoas cegas sendo úteis, estudando, trabalhando com autonomia. Ela não precisa ser tão dependente para sempre. É uma menina esperta, inteligente — argumentava o Dr. Augusto para convencê-los a deixá-la estudar. E ela queria muito. Tanto pediu, tanto reclamou que foi.
Ficou firme quando o pai a deixou lá pela primeira vez para não fazê-lo desistir, porém foi só ele virar as costas que começou a chorar. Chorou a noite toda e viu que outras crianças choravam. Uma inspetora conversou muito com ela, distraiu-a com brincadeiras; com o tempo, a dor a saudade, a tristeza foram dando lugar a novas amizades, aos estudos, às novas brincadeiras e ao novo mundo que descobria. Um mundo cheio de oportunidades.
Diogo era o irmão preferido. Não por uma escolha aleatória, mas porque, desde que eram pequenos, a identidade viera. Ele havia se interessado em aprender o Braille, levava-a para passear quando estava na cidade, escrevia para ela e contava muitas