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História e ensino de história hoje: Uma defesa
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História e ensino de história hoje: Uma defesa
E-book340 páginas3 horas

História e ensino de história hoje: Uma defesa

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Sobre este e-book

O livro História e ensino de história hoje: uma defesa, organizado por David Maciel e Luiz Sérgio Duarte, apresenta uma série de contribuições acerca dos impasses e dificuldades que afetam a produção do conhecimento histórico nos dias atuais, a fim de buscar alternativas para superar esses problemas que atacam o ensino de história. A obra é constituída por nove capítulos, distribuídos em duas partes, em que são abordados os principais problemas situados no âmbito da história e do ensino de história hoje, bem como dão discutidos os aportes que permeiam o debate sobre a história, trazendo reflexões pertinentes sobre essa ciência.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de set. de 2022
ISBN9786558409489
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    História e ensino de história hoje - David Maciel

    APRESENTAÇÃO

    Este livro vem à luz numa conjuntura em que a história, enquanto ciência e enquanto disciplina, sofre ataques generalizados que visam mais do que sua ressignificação, mas sua destruição enquanto conhecimento crítico capaz de dar sentido à ação dos indivíduos e coletividades na vida social numa perspectiva emancipatória. De todos os lados, e também a partir de dentro, emergem discursos, práticas culturais e ações políticas que buscam não apenas desqualificar, mas, principalmente, desautorizar o historiador/professor como produtor de conhecimento e educador. Esses ataques vêm associados a processos históricos de grande abrangência que se desenvolvem no Brasil e no mundo nas últimas décadas, condicionando o processo social e o próprio modo de vida dominante. Entre os principais processos destacam-se o aprofundamento das desigualdades de todos os tipos e em todos os níveis sociais, a progressiva restrição e/ou eliminação dos mecanismos democráticos de participação política e social, reforçando o despotismo estatal e empresarial, a monopolização das esferas públicas de produção e difusão cultural por meio da concentração empresarial de seus aparelhos mais importantes e abrangentes e o predomínio cultural de uma crise dos sentidos, que sequestra o futuro, torna o passado insignificante e comprime o tempo num presente eterno, marcado pela urgência e pela efemeridade. Ao longo do tempo, a função social do historiador e do professor de História foi questionada em diversos momentos, e inúmeras foram as tentativas de domesticá-la ou mesmo de anulá-la, mas no atual período a situação piorou bastante em função dos processos descritos acima.

    Essa piora significativa se manifesta de diversas formas e por diversos meios. Em primeiro lugar, desencadeia-se uma ofensiva ideológica contra a própria autoridade científica e pedagógica da produção historiográfica a partir de uma perspectiva negacionista vinculada politicamente às várias faces da extrema-direita contemporânea, que contesta a própria veracidade dos fatos e processos históricos, obedecendo a interesses políticos obscurantistas e autoritários, quando não abertamente fascistas. A falsificação da história, nesse caso, obedece à tentativa de criação de um mito fundador ou de uma era de ouro com os quais se busca cimentar a unidade e identificação dos que compõem os movimentos organizados em torno desses interesses e assim ampliar o seu raio de interlocução social e capacidade de construção de consenso. Em diversos lugares, como no Brasil, essa perspectiva se aproveita do relativismo alimentado por tendências e correntes revisionistas de inspiração liberal, surgidas no âmbito da própria historiografia, e que, ao contestar determinados cânones interpretativos, adota uma postura seletiva contraproducente, que fere os princípios do rigor e da objetividade acadêmicos com o fito de salvar processos históricos dramáticos, regimes políticos de triste memória e reputações perversas diante do fluxo contínuo da revolta e da mudança.

    O negacionismo de extrema direita também é beneficiário de um processo de pluralização do fazer historiográfico que quebrou certo monopólio das instituições acadêmicas na produção de conhecimento histórico, mas que, em vez de forçá-las ao diálogo produtivo e construtivo com outras perspectivas de apreensão, descrição e interpretação do real, deu origem a um novo monopolismo, dessa vez sob controle dos grandes aparatos da mídia tradicional, como a imprensa e a TV, e das novas mídias, como as redes sociais e plataformas de entretenimento, estas povoadas de analistas e formadores de opinião mais interessados em monetizar seus conteúdos do que em produzir conhecimento e reflexão. No plano da produção de conhecimento histórico, esses grandes aparatos passaram a instrumentalizar lucrativamente uma historiografia baseada na exposição de curiosidades, no diletantismo, na manipulação das fontes e, quando não, na mera opinião. Cria-se, com isso, uma produção discursiva sobre história sem qualquer compromisso com os procedimentos investigativos mínimos, como a interlocução crítica, e não denegatória, com a produção já estabelecida, o confronto entre fontes e hipóteses de trabalho e o diálogo criativo com as referências teórico-metodológicas. Tampouco há compromisso com o debate abalizado nesses procedimentos, mas apenas com a produção de uma consciência histórica mistificadora que eleva escribas de pena solta, charlatães, digital influencers, video makers e mercenários em geral à condição de historiadores.

    Esse ataque no plano da produção historiográfica inevitavelmente se estende para o plano do ensino de história e com uma virulência ainda maior, pois, nesse caso, trata-se de atingir o plano em que a conscientização histórica extrapola os muros da academia e do universo letrado e se espraia pelo conjunto da vida social por meio da ação pedagógica. Nesse plano, a disputa pela consciência histórica torna-se ainda mais acirrada, pois se trata de definir como e por quem as crianças, adolescentes e jovens serão educados e de que maneira sua consciência histórica será construída. Daí o enorme esforço para desqualificar a educação crítica, tida como doutrinadora e a serviço de interesses políticos inconfessáveis, e equiparar a ação pedagógica da escola à das famílias, igrejas, redes sociais e programas de TV. Esforço desdobrado numa campanha de perseguição aos professores, cada vez mais acuados no exercício de seu ofício e reféns da criminalização permanente de seus juízos históricos e de questionamentos sem qualquer fundamentação objetiva por parte de pais, alunos e oportunistas em geral. A privatização da educação pública é outra frente de ataque e esta se dá não apenas com o corte de gastos públicos para a educação, incluídos aí o arrocho salarial de professores e servidores técnico-administrativos, o sucateamento das estruturas escolares, a redução brutal de bolsas e verbas para pesquisas, etc., mas também por meio da expansão do capital privado sobre o ensino público, por meio do avanço do ensino privado, da formatação do fazer educativo pela lógica empresarial e/ou da venda de serviços escolares, como programas, planos de ensino e material didático a estados e municípios por grandes grupos educacionais.

    Para um programa de qualificação acadêmica voltado diretamente para professores da educação básica, que atuam em sala de aula, ou seja, na ponta do processo de construção da consciência histórica junto à crianças, jovens e adolescentes, essa é uma situação preocupante, que deve ser combatida com toda a energia e por todos os meios. Aqui reunimos um conjunto de contribuições que nos permite refletir sobre os impasses e dificuldades vivenciados pela ciência e pelo ensino de história nos dias atuais, e buscar alternativas teóricas e pedagógicas para sua superação.

    Na primeira parte do livro, intitulada Problemas, os autores tratam, de maneira crítica, alguns dos temas candentes que polarizam o debate sobre a história e o ensino de história hoje. Gelsom Rozentino de Almeida, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), parte da distinção entre memória e história para problematizar a abordagem sobre a ditadura militar presente em grande parte dos livros e materiais didáticos voltados para o ensino básico nos últimos anos, em grande medida dominada por uma perspectiva revisionista que desloca e apaga a história e a memória de diversos processos e atores políticos e sociais incômodos, o que hoje favorece o negacionismo. Vanessa Clemente Cardoso, professora da rede privada do ensino médio e fundamental em Goiânia e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFG, volta no tempo para mostrar como a relação antagônica entre anticomunismo e ensino crítico de História é antiga, mostrando a intervenção repressiva e ideológica do governo militar e de um elenco variado de aparelhos de hegemonia diante da coleção História Nova do Brasil. Logo depois do golpe de 1964, o novo regime desencadeou brutal ofensiva contra essa iniciativa editorial, proibindo sua circulação como material didático no sistema escolar, perseguindo e prendendo seus autores. O paralelo com a situação atual do país é evidente, pois argumentos mobilizados à época, como o caráter ideológico-partidário dos conteúdos e o risco de doutrinação dos estudantes por professores, nos é hoje bastante familiar. Kenia E. Gusmão Medeiros, professora do IFG, história o tratamento das relações de gênero pelo ensino de história, tema candente na atual conjuntura de desqualificação do ofício do professor, levantando as dificuldades de abordagem que esta problemática encontra na sala de aula e defendendo a necessidade de se demonstrar como as categorias de gênero são construídas cultural e historicamente com o fito de desnaturalizar as desigualdades e todas as formas de discriminação social e racial. Fechando a primeira parte, Luiz Carlos Checcia, doutorando em Ciências Humanas pelo Programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (FFLCH/USP), e diretor teatral, aborda como a partir do golpe de 2016 e, especialmente, com o governo Bolsonaro os direitos humanos, especialmente o direito à arte e à cultura, assim como o direito à educação crítica, vêm sendo atacados pelo governo federal e pela direita brasileira, animada por uma concepção ideológica conservadora, reforçada por uma situação fascista. Busca-se com isso não apenas sufocar a orientação oposicionista e democrática de artistas e produtores culturais, mas anular seu potencial crítico e educativo.

    Na segunda parte, intitulada Aportes, os autores retomam o debate teórico-metodológico sobre história e ensino de história à luz do acúmulo de referências e reflexões desenvolvidas ao longo do tempo e dos problemas atuais. Sebastião Cláudio Barbosa, professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), recupera, criticamente, por meio das categorias totalidade, mediação e contradição, o aparato metodológico do empirismo, buscando problematizá-lo como recurso legítimo no ensino de história, desde que em conexão com a perspectiva da interdisciplinaridade e tendo a realização de oficinas como prática pedagógica concreta e efetiva em consideração à empiria. Breno Mendes, professor da Faculdade de História e do ProfHistória da UFG, busca, na transição para a modernidade, as origens da atual crise de autoridade dos historiadores e professores de história, mas ressalta que o presentismo/atualismo da cultura contemporânea acentuou ainda mais esta crise ao favorecer a pluralização dos usos públicos do passado para além de sua dimensão esclarecedora e educativa, particularmente num sentido não fundamentado em termos historiográficos e irresponsável em termos ético-políticos, tornando urgente a afirmação de uma perspectiva democrática, pluralista e participativa para a produção historiográfica e o ensino de história. Fernando Augusto dos Santos Ribeiro, professor do curso de História e do ProfHistória da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), e Iraíldes Pereira e Silva, mestranda do ProfHistória (Uespi) e professora da Rede Municipal de Teresina (PI) e Timon (MA), discutem as vicissitudes do ensino de história no Brasil, desde a passagem da História Sagrada para a História Profana, ainda na virada do século XIX para o XX, até a atual situação de ressignificação da disciplina histórica por outras fontes produtoras de conhecimento histórico e de ataque e desprestígio da produção historiográfica e do ato de ensinar como mera doutrinação política, o que exige do professor/historiador a adoção de estratégias didáticas que privilegiem a criticidade e o papel do conhecimento histórico na compreensão dos elementos formadores da sociedade. Cristiano Nicolini, professor da Faculdade de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do ProfHistória da UFG, resgata o debate sobre a Educação Histórica no Brasil a partir das atividades da Associação Brasileira de Ensino de História, mostrando como as temáticas e referências conceituais se sucederam ao longo dos anos, destacando a necessidade de aprofundamento democrático e participativo do debate diante dos desafios postos pela atualidade, como a necessidade de incorporação das pluriepistemologias no ensino de história e a vigência próxima da bastante polêmica Base Nacional Comum Curricular. Encerrando este livro, apresentamos o pequeno ensaio de Luiz Sérgio Duarte, professor da Faculdade de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do ProfHistória da UFG, que, a partir do resgate das referências teóricas e categoriais do conceito de consciência histórica, busca entender as condições de sua viabilidade enquanto produção do conhecimento histórico e enquanto educação histórica no ambiente latino-americano, lugar de encontro entre o idealista, o historicista e o romântico.

    Esperamos que este livro contribua para o debate e a reflexão sobre os problemas e impasses que afetam a produção do conhecimento histórico e a construção da consciência histórica de modo a favorecer sua superação num sentido crítico e emancipatório.

    Os organizadores

    David Maciel

    (professor da Faculdade de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do ProfHistória da UFG).

    Luiz Sérgio Duarte

    (professor da Faculdade de História, do Programa de Pós-Graduação em História e do ProfHistória da UFG).

    Parte 1

    PROBLEMAS

    1. HISTÓRIA E MEMÓRIA NO ENSINO DE HISTÓRIA EM TEMPOS DE REVISIONISMO, SILENCIAMENTO E NEGACIONISMO: O GOLPE DE 1964 E A DITADURA MILITAR

    Gelsom Rozentino de Almeida

    Introdução

    Quase sempre as lembranças, imagens, sentimentos, percepções se apresentam quando queremos contar algo que aconteceu, mais afastado ou mais próximo do tempo em que estamos, de forma mais ou menos ordenada, como sendo a sua história. Por isso, quando o senso comum busca uma definição para história, a memória aparece como a sua primeira definição. Como veremos, há muito mais proximidade entre uma e outra do que distanciamento, mas são diferentes.

    O presente texto busca problematizar os usos (e abusos) da memória na história, do revisionismo e negacionismo e sua relação com o ensino de história. Seja pelo senso comum, seja por trabalhos acadêmicos, cabe questionar por que a memória é muitas vezes supervalorizada, havendo casos em que é utilizada como fonte única e tomada como um dado verídico em si mesmo, e, ao relacionar os significados de suas lembranças e, principalmente, esquecimentos de momentos, questões, dados, informações, etc., como uma opção do sujeito da memória (individual ou coletiva). Essa(s) opção(ões) não são naturais ou tomadas isoladamente, mas determinadas historicamente, a partir de condições objetivas, interesses organizados, etc. Ou seja, de volta à história do que deve ser esquecido e do pode ser lembrado.

    Nossa abordagem a respeito do ensino de história está relacionada à relação entre professor e aluno no ensino básico (não no ensino superior), considerando as pesquisas produzidas sobre ensino-aprendizado, as diferentes bagagens dos alunos e a aula como texto. E vale lembrar que a produção do livro didático tem passado por transformações profundas no Brasil nos últimos 35 anos. O Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) foi criado em 1985 pelo governo federal e consiste na aquisição pelo Estado e distribuição gratuita de livros didáticos para os alunos das escolas públicas de ensino fundamental de todo o país.1 O PNLD proporcionou o surgimento de um mercado editorial extremamente rentável, disputado por várias editoras, grandes conglomerados empresariais. A cada três anos, os livros são substituídos por novos, e são os professores, de modo geral, que escolhem aqueles a serem utilizados no triênio seguinte. No governo FHC, os livros passaram a ser avaliados e classificados. Entretanto, grande parte dos professores indicava a sua preferência justamente pelos livros de classificação baixa. Em parte, porque esses livros apresentavam o conteúdo de forma sequencial no tempo (o que facilitaria o trabalho do professor e a compreensão do aluno), em parte porque esses livros traziam questões políticas e sociais – classes sociais. A classificação foi abandonada formalmente, mas os livros considerados ruins foram excluídos, sem que pudessem mais serem escolhidos. Na avaliação, em geral, mais da metade dos livros são reprovados e os aprovados passam por correções. Somente os livros aprovados ficam disponíveis para que os professores de todo o Brasil escolham os que querem adotar pelos próximos três anos. Nos últimos anos, alguns estados e, principalmente, municípios passaram a adotar material didático produzido por instituições – aparelhos privados de hegemonia.2

    De forma assustadora, o que antes era um embate contra o revisionismo histórico, notadamente o revisionismo sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar, tornou-se ainda mais grave com o negacionismo atual. A ação do governo Bolsonaro de também querer fortalecer o sentimento patriota e aplicar o revisionismo histórico no âmbito educacional, como a negação do período ditatorial civil-militar-empresarial. A partir disso, como pensar um futuro do ensino de história com a implicância de políticas de silenciamento, negacionismo e revisionismo histórico no Brasil?

    Para tanto, busco dialogar com os principais autores que demarcaram o debate entre memória e história, e apresentar alguns exemplos dessa problemática no ensino de história no Brasil.

    Uma breve distinção

    Dentre as várias possibilidades, optamos por distinguir a memória individual da memória coletiva ou social, sendo a primeira, objeto sobretudo da psicologia social e a segunda pertencente a um determinado grupo e o elemento de coesão de uma determinada classe ou formação social. A memória individual é a recordação, mas que só se torna um fato social quando expressada para outra pessoa.

    A memória seria formada: por acontecimentos vividos pessoalmente; vividos a partir da experiência do outro, por meio da projeção ou identificação com um passado, mesmo por pessoas que não o viveram; por ser constituída por personagens; e pelos lugares de memória, locais de realização dos atos de rememoração/comemoração (Pollack, 1992, p. 201).

    Fernando Catroga afirma que escolher é também esquecer, silenciar e excluir (Catroga, 2001, p. 26), indicando os esquecimentos deliberados que são realizados a fim de construir uma memória que faz sentido, com começo, meio e fim, objetivando sempre um resultado almejado, organizado e calculado, em que as vivências individuais e coletivas fossem sempre tributárias de uma missão previamente constituída. A noção de história com um fim lógico de causa e efeito traçado por um fio condutor, com desfecho previsível, que ao mesmo tempo tem o caráter de descontinuidade, seria semelhante ao apresentado por Bourdieu (2006, p. 190):

    […] não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos em certo número de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. Essa construção prévia também é a condição de qualquer avaliação rigorosa do que podemos chamar de superfície social, como descrição rigorosa da personalidade designada pelo nome próprio, isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas num dado momento por uma individualidade biológica socialmente instituída e que age como suporte de um conjunto de atributos e atribuições que lhe permitem intervir como agente eficiente em diferentes campos. (grifo nosso)

    A história dos processos de constituição da memória coletiva pode ser dividida em cinco períodos: o da transmissão oral, o da transmissão escrita com tábuas ou índices, o das fichas simples, o da mecanografia e o da seriação eletrônica (Le Goff, 1992, p. 467). Nos dias atuais, como resultado dos desenvolvimentos da memória no século XX, sobretudo depois de 1950, presenciamos uma verdadeira revolução da memória em que memória eletrônica não é senão um elemento, sem dúvida o mais espetacular. Presenciamos uma revolução tecnológica sem precedentes que resulta em duplo processo, interligado, de aceleração da história e preservação da memória – memória eletrônica, digital, automática. Hoje, com os avanços da informática, chegamos perto de uma memória ilimitada. O capitalismo destrói os suportes materiais da memória, bloqueia os seus caminhos, arranca seus marcos e apaga seus rastros – já não existe mais (Bosi, 1994, p. 19). Ao mesmo tempo, transforma-se a memória em mercadoria: pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos, mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão do olhar histórico. Conversão partilhada pelo grande público, obcecado pelo medo de uma perda de memória, de uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retro, explorada sem vergonha pelos mercadores de memória desde que a memória se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que se vendem bem (Le Goff, 1992, p. 472).

    De acordo com Le Goff, em diálogo com o pensamento de Pierre Nora, a memória coletiva, definida como o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado, poderia, à primeira vista, opor-se em sua quase totalidade à memória histórica como se opunha antes memória afetiva e memória intelectual. História e memória, até a atualidade, confundiram-se praticamente, e a história parece ter-se desenvolvido sobre o modelo da rememoração, da anamnese e da memorização. Os historiadores davam a fórmula das grandes mitologias coletivas, ia-se da história à memória coletiva. Mas toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso pelo media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas, e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas. A história dita nova, que se esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva, poderia ser interpretada como uma revolução da memória, fazendo-a cumprir uma rotação em torno de alguns eixos fundamentais: Uma problemática abertamente contemporânea… e uma iniciativa decididamente retrospectiva. E mais: a renúncia a uma temporalidade linear em proveito dos tempos vividos múltiplos nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo (linguística, demografia, economia, biologia, cultura). História que fermentaria a partir do estudo dos lugares da memória coletiva. De forma objetiva, cita-se: lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais, como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares simbólicos, como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações: esses memoriais têm a sua história. Esses são os verdadeiros lugares da história, aqueles onde se deve procurar, e nunca deveriam ser esquecidos, não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e os denominadores da memória coletiva: Estados, meios sociais e políticos, comunidades de experiência históricas ou de gerações, levadas a constituir os seus arquivos em função dos usos diferentes que fazem da memória (Le Goff, 1992, p. 472-473).

    Nesse sentido, estabelece-se como princípio de que: Tal como o passado não é a história mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar de elaboração histórica (Le Goff, 1992, p. 49).

    Conforme Burke, a memória constitui-se em fonte histórica na medida em que ao serem externadas possibilitam saber o que é recordado, expressando ainda fenômenos históricos – a história social da recordação (Burke, 1992, p. 238). Ou ainda:

    Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, e a aval, eco sonoro (e vivo) do

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