Fora da Norma? A Construção do "Direito à Identidade" de Pessoas Trans e Travestis
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Sobre este e-book
O título é um chamado à reflexão, que nos remete à noção de um sujeito dentro da norma e questiona sobre o ser/estar fora da norma. Ao analisar as demandas por retificação de nome e sexo no registro civil de pessoas trans e travestis via Judiciário, a partir de sua experiência no grupo G8-Generalizado (Saju/UFRGS), a autora expõe as lutas das pessoas trans e travestis e as barreiras que o Direito, a partir de interpretações herméticas, oferecia a elas.
Os esclarecimentos da autora, no início da obra, sobre si mesma, apontando a impossibilidade de neutralizar a subjetividade, é elementar para a construção do texto, inclusive por alertar a respeito de falsas neutralidades.
A obra contém uma leitura crítica do papel do direito, sublinhando a importância de "desnaturalizar os fundamentos e as práticas das instituições jurídicas", sem afastar seu valor. Pontuando que o "direito materializa processos sociais e acaba por torná-los reivindicáveis", a autora traça o caminho de sua análise sobre a temática proposta, buscando uma "possível transformação do pensamento dogmático", em referência à obra e ao pensamento do eminente professor José Rodrigo Rodriguez.
Segundo a autora, a forma Direito é "necessariamente inclusiva, pois, ao prometer igualdade perante a lei em uma sociedade desigual, possibilita elaborar insatisfações sociais em forma de reivindicações por direitos", o que se faz notório no caso das reivindicações das pessoas trans e travestis. Elas reivindicaram seus direitos fundamentais da personalidade, sofreram com a patologização de si e de sua existência, a partir das exigências probatórias nas demandas judiciais, e conseguiram transformar essa realidade.
Este livro propõe reflexões essenciais para o estudo, compreensão e aprimoramento do Direito, aqui reconhecido como ferramenta de transformação social. Como diz a autora, "sempre que a norma não oferece um modo de vida dentro das condições sociais existentes, torna-se impossível ao sujeito apropriá-la sem submetê-la a uma
revisão crítica".
Eis um texto que produz bem-vindo desassossego.
Luiz Edson Fachin
Ministro do Supremo Tribunal Federal
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Fora da Norma? A Construção do "Direito à Identidade" de Pessoas Trans e Travestis - Simone Schuck da Silva
FORA DA NORMA?
A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE
DE PESSOAS TRANS E TRAVESTIS
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2021 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Simone Schuck da Silva
FORA DA NORMA?
A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE
DE PESSOAS TRANS E TRAVESTIS
Ao G8-Generalizando.
AGRADECIMENTOS
Este livro é uma versão reorganizada, revisada e ampliada de minha dissertação de mestrado, defendida em fevereiro de 2018, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Agradeço ao meu orientador, José Rodrigo Rodriguez, a atenção, a dedicação, a paciência e o entusiasmo em acompanhar e construir comigo a pesquisa. Agradeço à professora Jaqueline Gomes de Jesus, à professora Fernanda Frizzo Bragato e ao professor Bruno Nubens Barbosa Miragem, pelas críticas e sugestões fundamentais ao desenvolvimento e conclusões do trabalho. Em especial, agradeço à professora Jaqueline, pela inspiração e pelo carinho em apresentar este livro. Agradeço também ao professor Luiz Edson Fachin, pela gentil leitura e comentário.
Sou grata ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, especialmente à Vera Regina Schwade Loebens, e ao financiamento do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Proex/Capes) por criarem genuinamente as condições de possibilidade para a realização da pesquisa.
Agradeço profundamente ao G8-Generalizando, pelo acolhimento, as reflexões e o aprendizado. Agradeço, em especial, ao Julio Knach de Bittencourt, pelo apoio técnico e pelo incentivo incansável no desenvolvimento da pesquisa. Não é qualquer exagero afirmar que, sem seu suporte, o livro jamais teria tomado forma.
Agradeço o companheirismo intenso e fundamental de Maurício Pedroso Flores e o prazer de compartilharmos cotidianamente nossos caminhos. Também agradeço o trabalho afetuoso e estimulante de Jussara Bordin. À Odete Maria Schuck, minha mãe, e a Laerte Tomaz Freitas da Silva, meu pai, agradeço por comemorarem comigo minhas alegrias, por sempre incentivarem a busca de compreensões além de si e de mim e por apoiarem, mesmo sem, por vezes, entenderem os meios pelos quais eu escolhi fazê-la.
Se eles me condenassem, na realidade eles estariam me reconhecendo como pessoa trans. Estariam reconhecendo que meus documentos não são válidos. Estariam abrindo um precedente para que todas as pessoas trans fossem respeitadas por sua identidade de gênero e não pelo gênero, pelo sexo declarado nos documentos. Mas, ao mesmo tempo, eu estaria sendo condenada enquanto feminina, enquanto mulher. Então eles estariam dizendo claramente que homens e mulheres não são iguais perante a lei, que os homens teriam um direito e as mulheres não. Então me condenariam como mulher e abririam um precedente para as pessoas trans. Se eles me absolvessem, eles estariam dizendo que, sim, legalmente, sou um homem e, então, tenho direito. Mas outra vez seria absolvida enquanto homem. Se fosse mulher seria condenada. Então outra vez eles estariam abrindo um precedente, que homens e mulheres não são iguais perante a lei. A Justiça não quer reconhecer que, no Brasil, existe essa diferença. Não abrindo um precedente, eles voltam também a reconhecer que homens e mulheres não são iguais perante a lei.
(Indianare Siqueira, sobre episódio em que foi detida por sair sem camiseta no Rio de Janeiro).
APRESENTAÇÃO
UM NOME PRA CHAMAR DE SEU
Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto possível, aquilo que se é, dói muito menos do que ter escolhido a falsa não solidão de ser o que não se é...
(Caio Fernando Abreu).
De que vale olhar sem ver? Atualmente, tanta gente admira pessoas trans, porém não as enxergam... Sequer as ouvem. O significado de visibilidade comumente esvai-se no senso comum. Nos dias em que vivemos, é importante pensar quais representatividades realmente importam para além do exercício de autorreferência esvaziado de conteúdo ou do estereótipo do zoológico humano.
Talvez, pior do que olhar sem ver, seja impor um nome a quem já se nomeou. Crueldade considerada normal por muitos. O normal que falhou ante as urgências da vida e o direito inexpugnável de cada pessoa de falar por si mesma na sociedade dos indivíduos em que vivemos.
Esse fracasso do normal geralmente subscreve-se ao fundamentalismo religioso, político ou mesmo científico, e suas expressões mais polidas escondem-se por trás das burocracias ratificadoras de verdades
que não passam de tentativas de forçar a sua visão de como os seres humanos deveriam ser.
Enfrentando essa perversão do poder sobre o outro, o livro de Simone Schuck da Silva questiona o normal, esse normal patológico, normopático, portanto, que tem imposto danos concretos no gozo pleno da cidadania a gerações de mulheres trans, travestis e homens trans aos quais o direito brasileiro não reconheceu o direito fundamental à identidade, sequer o direito de ir e vir, prejudicando, objetivamente, o seu direito à vida.
Avançamos enormemente no sentido do fortalecimento da democracia brasileira, com as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal a favor de grupos sócio-historicamente discriminados, ante a inércia ou mesmo à oposição do Poder Legislativo, como se deu no reconhecimento da Corte quanto ao direito da população trans de adequar seu registro civil em cartório sem necessidade de judicialização ou medicação.
Porém, o sexismo ainda se expressa como um viés da cultura brasileira que prejudica a vida das pessoas trans, tudo em nome de um ideário da cisgeneridade, essa característica de quem se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, que deveria ser apenas isso, mas permanece como um padrão de privilégio para os que com ela se identificam e estrutura uma lógica cisnormativa de poder excludente para as identidades de gênero e corpos não hegemônicos.
Simone fala-nos de um Brasil profundamente marcado pela transfobia estrutural, que, às vezes, pulsa liberdade por meio das frestas que se espalham pelas redes sociais de subalternização que teima em se repetir.
No entanto, são com estudos como os de Simone que nos empoderamos para enfrentar esses desafios históricos não apenas teoricamente, mas com chaves interpretativas e construção de estratégias que, pelo menos, permitem-nos errar menos diante de tanta problemática e sofrer menos, a partir de um sentimento do mundo que é afetado pela percepção de que muita gente concorda conosco quanto à urgência de desbancarmos esse normal
, que entroniza o sujeito localizado na branquidade e na cisgeneridade. Não como uma negação, tão somente, mas, acima de tudo, como abertura de portas e janelas que nos alimentem para a tessitura do novo.
Enfim, nestas páginas você encontrará uma fonte especial, em que se bebe não apenas conhecimento, mas também afeto, senso de missão, um relance de futuro melhor, que não se reduz a uma utopia, e que Simone, com sua elevada capacidade de interpretação do real e domínio sobre o tema, elaborou com vistas não a uma autopropaganda, mas a uma contribuição honesta para que a dignidade de toda e qualquer pessoa não seja mais aviltada por normas e políticas institucionais que tentam apagar quem somos e as nossas raízes.
Nós resistimos há séculos. Resta-nos seguir insurgindo também a partir da academia e por meio de produções intelectuais como esta, que orientarão os de hoje e os que virão em prol da construção de outro mundo possível, trans-formado, em que não mais se naturalize que não podemos ser donas, donos e dones
de nossos próprios nomes enquanto terceiros se consideram autorizados a nos rotularem.
Glória, Rio de Janeiro, 14 de julho de 2021,
há mais de um ano na pandemia de Covid-19.
Jaqueline Gomes de Jesus
Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Pesquisadora-líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (Odara) (CNPq). Presidenta da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (Abeh).
PREFÁCIO
MINHA RELAÇÃO PESSOAL COM O DIREITO
Minha avó materna, Yolanda Pedro, contava que havia vivido o pânico de sofrer bombardeios aéreos quando era uma jovem agricultora na divisa de São Paulo com Minas Gerais. Durante meses, sua família e a cidade inteira evitou acender as luzes durante a noite para que os aviões do governo federal não pudessem localizar suas casas, que poderiam ser alvo de ataques. Como se não bastasse, ela também relatava ter ajudado a cuidar de soldados feridos nos combates armados que ocorreram na região.
Demorei algum tempo para compreender a dimensão do que ela dizia, ao menos até estudar a Revolução de 30 no ensino médio. Minha avó morava na divisa de São Paulo com Minas Gerais em 1932, ano em que ocorreram combates que marcaram a assim chamada Revolução Constitucionalista. Esse movimento, que eclodiu no estado de São Paulo, defendia a instauração de uma Assembleia Nacional Constituinte contra a continuidade do governo provisório de Getúlio Vargas, instaurado no contexto da assim chamada Revolução de 30.
Nessa época, todo o estado de São Paulo e a sua capital foram palco de combates armados que incluíram bombardeios aéreos. O conflito mobilizou diversos estados da Federação e, ainda que não tenha se espalhado pelo território brasileiro, não exagero caracterizá-lo como um ensaio de guerra civil. Uma guerra que afetou pessoalmente minha avó, certamente por ela ter vivido o risco iminente de eliminação física, além de ter sido testemunha das violações físicas que uma guerra pode causar.
A violação de seu corpo, a eliminação de sua existência e da existência das pessoas próximas em nome do direito foi uma realidade tangível para ela. Talvez, por essa razão, para o resto de sua vida, minha avó passou a interpretar a política nacional com muita veemência e indignação e nos marcos dos conflitos entre os estados da federação brasileira que marcaram o começo do século XX.
Não, minha avó nunca foi uma doce velhinha. Até perder a consciência em razão de derrames cerebrais, estava sempre disposta a entrar em toda e qualquer discussão política, sem intenção de conciliar as posições em disputa, defendendo seus pontos de vista com toda a contundência. As circunstâncias em que viveu podem ter roubado dela o direito de ser delicada ou pode ser que a delicadeza não fosse a sua vocação desde o princípio. É impossível saber.
Também em razão de suas experiências, minha avó nutriu, até o fim de sua vida, sentimentos contraditórios em relação à figura de Getúlio Vargas. Ela relatava sentir um ódio profundo do Getúlio ditador por ter atacado São Paulo, mas, ao mesmo tempo, dizia tê-lo perdoado, anos depois, quando ele promulgou a Consolidação das Leis do Trabalho.
Ao ouvir essas histórias, presenciei, pela primeira vez, alguém falar de um texto legal – e do Direito em geral – com paixão. Não como mero instrumento destinado a efetivar e operacionalizar determinados valores em relação aos quais o jurista deve se manter indiferente, ou como peça de um jogo retórico cheio de sutilezas, cujo resultado será sempre indeterminado e em relação ao qual devemos nos manter céticos ou, no caso de determinados juristas, devemos exibir o mais descarado cinismo.
Minha avó falava do direito com intensidade, como se dele dependessem a vida e a sua morte: como nos lembra Robert Cover, a interpretação jurídica se estabelece em um campo de dor e morte.
Pode não ser mero acaso que sua filha, minha mãe, muitos anos depois, tenha se tornado juíza do Trabalho e eu, em minha dissertação de mestrado, tenha escrito sobre liberdade sindical. Seja como for, para a minha avó, a CLT era muito mais do que um texto. Ela implicava seu corpo e sua existência: o direito que um dia ameaçou feri-la, ou mesmo eliminá-la fisicamente, agora era capaz de protegê-la contra o risco de ser vulnerada.
Em 1935, aos 18 anos, minha avó migrou para a capital de São Paulo e começou a trabalhar como operária na Johnson & Johnson, no bairro da Mooca, onde residiu até o final de sua vida. Um bairro que, nos levantes tenentistas de 1924 contra o governo federal, também havia sido bombardeado, como os demais bairros operários de São Paulo ‒ Brás, Belenzinho, Aclimação e Luz ‒, em nome da tentativa das forças oficiais de indispor os trabalhadores contra os tenentes insurgentes.
Esse episódio covarde e violento, negligenciado pela historiografia, foi extremamente grave. Estima-se que durante os conflitos, 1.800 imóveis tenham sido atingidos e 250 mil pessoas tenham deixado São Paulo para se abrigar no interior. Além disso, 212 mil pessoas deixaram seus bairros para se abrigar, em São Paulo, na casa de parentes e conhecidos, em uma cidade que contava, então, com 750 mil habitantes. Há notícias de que o levante resultou na morte de 503 pessoas e deixou 4.846 feridas.
Certamente, a memória desses acontecimentos ainda estava muito presente em 1935. É provável que a Greve de 1917 tenha tido um papel importante na decisão de atacar as classes populares. Na época, o discurso oficial criou a figura do agitador estrangeiro hostil
para caracterizar os anarquistas, então dominantes no movimento operário. Esses estrangeiros eram acusados de ingratos por haverem sido acolhidos generosamente pelo Brasil e, naquele momento, terem resolvido promover agitações e atos violentos sem uma justificativa justa. É claro que se tratava de um discurso construído para desviar a atenção do público das condições de trabalho da época, a real motivação da greve e da insatisfação dos trabalhadores e trabalhadoras. No relato de Roberto Pompeu de Toledo:
Nas fábricas de tecido, as mais bem equipadas e com maior número de operários, trabalhava-se em ambientes mal ventilados, sob o infernal barulho das máquinas e a vigilância severa dos mestres e contramestres. Controlavam-se as conversas e as idas aos banheiros. Na fábrica Santana, de Antônio Álvares Penteado, em 1902, cobravam-se 200 réis por cada uso do sanitário; sua revogação foi uma das reivindicações de um movimento então deflagrado pelos trabalhadores.¹
Em sua nova vida em São Paulo, experimentando todos os problemas da condição operária, é compreensível que minha avó tenha perdoado Getúlio Vargas. Afinal, ele esteve à frente da criação de um texto legal que passou a viabilizar uma existência física e simbólica mais digna para toda uma classe trabalhadora submetida a duras condições de trabalho e vítima de um discurso que a estigmatizava a ponto de abrir espaço para que fosse atacada fisicamente. De novo, o direito aparece como instrumento capaz de vulnerar e exterminar corpos, mas também de constituir-se em uma das condições de possibilidade de sua existência.
A meu ver, o trabalho de Simone alinha-se a uma tradição de reflexão radical a respeito da relação entre direito e violência que, salvo engano, foi inaugurada no campo da Filosofia do Direito, por Thomas Hobbes. Como mostra Franz Neumann em O Império do Direito, a partir de Hobbes, uma das funções centrais do direito – na forma de Estado Democrático de Direito – passa a ser manter separados direito e sociedade, separação esta que exige a criação de anteparos, de obstáculos, de procedimentos para que o poder, público ou privado, possa pretender tocar, controlar ou vulnerar – em caso de pena de morte, por exemplo, – o corpo de quem quer que seja.
A Filosofia do Direito moderna e contemporânea começa com a separação entre corpo humano e poder, ou seja, com a constituição jurídica do corpo humano como algo diverso e protegido pelo corpo político e contra ele. Nesse mesmo gesto, separa-se também a vontade do soberano da vontade do súdito. No estado civil, depois do contrato, só é possível ser completamente livre em segredo, pois, como diz Hobbes, o soberano não pode interferir e deve garantir nossa liberdade de pensamento.
É justamente por isso, como nos ensinou Robert Cover, que o melhor ponto de vista para compreender o direito é o ponto de vista do carrasco. Generalizando essa ideia para além das categorias do Direito Penal, cabe refletir sobre o direito do ponto de vista de sua execução sobre o corpo, sobre a estima individual ou social das pessoas e sobre os seus bens.
Jamais seremos invulneráveis, pois somos apenas seres humanos. Não faz