Jazz band na sala da gente
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Sobre este e-book
"O livro de estreia de Alexandre Staut, tem uma linearidade, tanto da temática da narrativa quanto da linguagem, essa fluente e diáfana. O autor consegue penetrar o imaginário e a mitologia dos anos 40, sem incorrer em inverossimilhança, num romance que dá ideia do Brasil daqueles conturbados anos numa cidade do interior com seus valores, seus totens, seus moralismos, preconceitos e tensões. As figuras emblemáticas deEduardinho , de Ondina, de Buduçu remetem às mesmas figuras folclóricas e recorrentes encontradiças em qualquer lugar do mundo, em Pinhal ou em Komala, em Cataguases ou Macondo. Como diz um personagem de Cyro dos Anjos, "a literatura se nutre do real". Esse real redimensionado, essas vivên - cias retrabalhadas, com o amálgama da ficção edulcorando a memória, não deixam de recuperar a humanidade (e o universalismo) das histórias de pessoas comuns." (Ronaldo Cagiano)
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Pré-visualização do livro
Jazz band na sala da gente - Alexandre Staut
Jazz Band na Sala da Gente
Alexandre Staut
Logo - Folhas de RelvaCopyright @ Alexandre Staut, Folhas de Relva Edições
Edição de texto:
Anna Luiza Cardoso
Revisão de fatos históricos:
Eduardo Martins
Revisão:
Sheyla Miranda e Kyanja Lee
Projeto gráfico:
Gabriel Lima Garcia
Imagem da capa:
Arquivo de família
Catalogação na fonte
Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
S798
STAUT, Alexandre
Jazz band na sala da gente / Alexandre Staut – 2.ed. – São Paulo: Folhas de Relva, 2020.
ISBN 978-65-80672-29-5
1. Romance. 2. Literatura brasileira. I. Staut, Alexandre. II. Título.
CDD 869.93
Índice para catálogo sistemático
I. Romance : Literatura brasileira
Folhas de Relva Edições ®
Rua Herculano de Freitas, 263, cj 43
São Paulo, SP, 01308020
Este é um romance de ficção, portanto deve ser lido como tal. A sequência de fatos narrados, no entanto, aconteceu na vida real.
A obra foi reescrita e corrigida pelo autor com base na edição original de 2010.
A reedição, agora, comemora os dez anos do lançamento.
Para
André (in memoriam),
que não teve tempo de ouvir esta história;
Para
Aline, Lara e minha mãe
Sumário
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Epígrafe
Dedicatória
Prólogo (à guisa de uma crônica-efeméride de jornal)
A música
A descoberta
O caminho
A Buduçu
O Natal
O casamento e o funeral
"J’écris ces pages comme on rédige un constat ou un
curriculum vitae, à titre documentaire
et sans doute pour en finir avec
une vie qui n´était pas la mienne."
Patrick Modiano, Un Pedigree
"Que me poderia dizer agora sobre sua cidade e sua gente
um portuense bairrista que surgisse aqui a meu lado
neste miradouro, conjurado por minha fantasia?"
Erico Verissimo, Solo de Clarineta
Prólogo
(à guisa de uma crônica-efeméride de jornal)
"Comoveu profundamente nossa boa gente a notícia da morte de Eduardo Staut — ou Eduardinho, como era afetuosamente chamado por aqueles que lhe queriam bem — sorridente, alegre e mui prestativo agente funerário da nossa comuna. Durante anos a fio, enterrou nossos mortos, e também encantou o povo do nosso burgo com seu riso sonoro, seus ditos pilhéricos e também com as melodias que extraía de sua flauta. Entre suas qualidades e dotes pessoais estava mais este: ser flautista.
Era um homem que sabia gracejar. Ria delicadamente. Não tinha riso rasteiro. Nenhuma tristeza minava seu organismo moral. Nunca deixou de ser o que sempre foi: jovial, afável, comunicativo.
Tudo se deve dizer: nosso Eduardinho era, de seu natural, um conversador. Jamais permitiu que se lhe ferissem a dignidade fundamental. Não era vaidoso, enfatuado. Não era tampouco modesto. Era, sim, lúcido. Praticava ações de longa eficácia. Fechava os ouvidos às sugestões do mal, não como o Prometeu de Ésquilo, que fazia ouvidos moucos (orelha de mercador) àquilo que diziam seus verdugos.
Perguntar-se-á nesta altura: a atuação habitual de Eduardinho, sua maneira de ser, seus méritos, a capacidade para dirigir e orientar as coisas aguçariam as invejas? Era de crer que sim. Não juro, não aposto, mas creio que sua personalidade perturbava, tirava o sono de pessoas sem préstimo.
Palavra: esse homem era um legítimo realizador. De resto, era um coração aberto, não podia ver ninguém sofrer. Todos nós enxergávamos como tratava os pobres que batiam à sua porta, como era caritativo e pio. Entristecia-se com os desarranjos sociais que via derredor de si. Contristava-o ter de presenciar o espetáculo das dores humanas. As sociopatias e a miséria desolavam-no, literalmente. Como suportá-los com longanimidade? Como assistir indiferente às injustiças que diariamente se praticam na sociedade humana? Como presenciar, sem abatimento, os fortes devorarem os fracos? Em realidade, o Prometeu de Ésquilo vivia preso ao poste do sofrimento. Muitos, porém, vivem encadeados ao rochedo da frivolidade. Esse não era o caso do Eduardinho, de quem ora falamos.
Mas falemos d’outras coisas...
Porventura deixei dito n’alguma página que Eduardinho era amigo dos amigos de seus amigos? Não deixei? Então o digo agora: era! Amizade, para ele, tinha de ser como a de Orestes e Pilates, Castor e Pólux. De caso pensado, não cometeria nenhuma vileza ou indignidade. Conscientemente, não provocaria a queda, não promoveria a ruína de ninguém. Era homem sem rancor, não desejava o mal nem a morte, embora alguns queiram dizer o contrário.
E dando prosseguimento à tarefa que nos propusemos a discorrer, currente calamo, a respeito da personalidade desse homem, nosso contemporâneo, que conhecemos relativamente bem, ou seja, com certa profundidade, repisamos aqui que ele tinha a voz timbrada e doce, como a música de sua flauta... voz modelada, sonora, voz cheia. Era inimigo das farsas e burlas, imposturas e embustes. Não era um tartufo, um fariseu. Não temia as acusações nem os julgamentos da opinião pública, o tribunal anônimo e invisível, como disse Machado de Assis, fino psicólogo do Cosme Velho. Aceitava o real, não tentava encobri-lo com as sombras da dúvida, com os mantos da fantasia. Bem compreendia a ação corrosiva do tempo. O tempo que, como escreveu o mesmo Machado de Assis, caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas, que faz os anos passarem e despontarem os espinhos, que faz com que a distância dos fatos apague os respectivos contornos. Matamos o tempo, mas a verdade é que ele nos engole, nos enterra. O tempo, essa coisa que não repousa, que se abate sobre nós, fazendo com que nos tornemos sombras de nós mesmos.
Gostaria de anotar que esse homem viveu com intensidade malrauxiana. De fato, gostava do prazer de ver-se a si mesmo, de autoanalisar-se, de sondar suas próprias motivações. Não tinha, creiam, o gosto de luzir, de brilhar na ribalta social. Não queria ser o primeiro na vida da sociedade. Sempre botou em relevo o seu absoluto descaso pelo êxito cortês, pelo triunfo mundano. Não namorava o sucesso, o aplauso público, apesar de ser um músico de chiste, que agradava de gregos aos troianos. Um homem que preservou, no comércio dos homens, das almas, a sua nobreza íntima, e que agora se vai jovem e a quem devemos agradecer. Tanto pelo seu trabalho de plantar os corações dos povos da cidade sob a terra, como por sua música.
E nada mais direi."
Ubirajara Rocha
Gazeta de Pinhal,
20/07/1946, alguns dias depois da morte de Eduardinho
1
A música
Naqueles dias, o menino parecia ter pouco interesse, ou quase nenhum, pelos carrinhos de madeira; pelos canudos feitos de galhos de mamoeiros que cresciam no quintal e que ele usava para brincar de guerra; pela bola feita com as meias de seda da mãe; pelo gosto de falar sobre Fords e Chevrolets; ou pela mania de se arrastar em meio aos agapantos e palmas do canteiro, deitado como um soldado no campo de batalha. A mãe estava quase sempre à frente da pia da cozinha separando feijão de gorgulho, picando chuchu, ou então à beira do rádio. Ele a espiava com rabo de olho e cantava versos das músicas da moda, que chegavam com algum atraso à pequena cidade. Soava na garganta notas musicais, principalmente o dó. Fazia uma espécie de treino vocal atrás das portas, como se se preparasse numa coxia. Um dia a mãe perguntou se era um canário. Não, ele disse. "Uma cantora de dentro do rádio cantou isso; o pai disse que o dó é uma nota musical. As notas... os desenhos das folhas que ele guarda. As partiduras. Ela retrucou:
Partituras, partituras! Não precisa repetir essa bobagem toda, essa história de dó, de ré, essa tranqueirada sem sentido". Ela tinha a mão direita enviesada na altura do rosto do filho enquanto falava.
Era só o que faltava. Um cantor em casa. Como se não bastasse o marido músico. "Está cansado de saber que não é tempo