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Ideologia e Mitologia:  História, Símbolos, Política e Religião em Eric Voegelin
Ideologia e Mitologia:  História, Símbolos, Política e Religião em Eric Voegelin
Ideologia e Mitologia:  História, Símbolos, Política e Religião em Eric Voegelin
E-book325 páginas4 horas

Ideologia e Mitologia: História, Símbolos, Política e Religião em Eric Voegelin

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Sobre este e-book

Ideologia e Mitologia busca expor o quadro teórico proposto na obra do filósofo germano-americano Eric Voegelin (1901-1985), em particular a maneira como ele busca trazer à luz da teoria os pontos de contato entre a dimensão política e a dimensão espiritual da existência humana. O livro toma como ponto de partida os tratamentos dados à questão pela teoria da história, situando o debate travado entre Karl Löwith e Hans Blumenberg acerca do conceito de ?secularização? e introduzindo contribuições de Reinhart Koselleck e do próprio Voegelin à compreensão de como conceitos históricos podem se imbuir de significação espiritual. Em seguida, a questão é abordada discutindo afinidades teóricas entre Voegelin e teóricos da linguagem simbólica tais como Ernst Cassirer, Paul Ricoeur, Mircea Eliade e outros. Em seguida, o foco se torna mais especificamente à obra voegeliniana, discutindo a base empírica da qual Voegelin extrai sua teoria através de uma análise mais aprofundada do que o filósofo chama o salto no ser, fenômeno que ele considera de crucial importância para operacionalizar os conceitos analíticos que emprega. Por fim, quando atingida uma compreensão mais sólida desse instrumental teórico, o livro retorna aos problemas da ordem política moderna colocados no início do trabalho, explorando até que ponto as ideologias políticas da modernidade podem ser tratadas como ?religiões políticas? à luz da teoria voegeliniana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de ago. de 2022
ISBN9786525246857
Ideologia e Mitologia:  História, Símbolos, Política e Religião em Eric Voegelin

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    Ideologia e Mitologia - Pedro Franco

    1 HISTÓRIA E SECULARIZAÇÃO

    1.1 SECULARIZAÇÃO - ORIGEM E IMPLICAÇÕES

    Entre o rol de termos que buscam exprimir o processo de separação entre o religioso e o não-religioso, ‘secularização’ talvez seja aquele que mais se sujeitou a tentativas de se desenvolver um termo técnico para designar fenômenos históricos, políticos e/ou sociais. Em sua origem, no entanto, o termo procura indicar um fenômeno de ordem jurídico-institucional. Nas negociações da Paz de Vestfália, em 1648, ele é usado para se referir à transferência de bens eclesiásticos para principados seculares em meio ao processo de pacificação das guerras religiosas da Europa cristã. Com o avanço da modernidade, cada vez mais bens materiais e atribuições institucionais da igreja seriam apropriadas pelo estado – uma onda secularizante que levaria finalmente, após o Iluminismo, à concepção de um estado que reivindica para si o monopólio sobre toda política temporal.

    Embora normalmente apontasse na direção de um acirramento da disputa entre estado e igreja, o termo também agrupou movimentos de conciliação, como se observa dentro da história da Secular Society da Inglaterra. Como observa Giacomo Maramao, essa organização usaria o termo ‘secularismo’ para indicar o fenômeno hoje comumente definido por ‘laicização’, isso é, o processo de emancipação das instituições seculares em relação à autoridade eclesiástica. George Holyoake, fundador da Secular Society, procurou mostrar que essa dinâmica de emancipação era perfeitamente compatível com os preceitos éticos da cristandade, e não pretendia colocar os objetivos da organização em conflito direto com a religião cristã.

    Esse projeto de emancipação de fato era harmonizável com certas tendências dentro do debate teológico, onde havia tentativas de legitimar a secularização como uma consequência positiva do próprio cristianismo. Essa corrente teológica, como descreve Maramao, estaria baseada num preceito fundamental transmitido pelo Evangelho: dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Essa teologia não estaria então preocupada em preservar uma ‘civilização cristã’, mas sim em permitir que o mundo seja ‘apenas’ o mundo. Ela procurava, em outras palavras, voltar os olhos do fiel para um reino que não é desse mundo, despindo a religião da ideia ilusória de que o Estado possa ser ‘cristianizado’. Essa teologia legitimaria então a emancipação da sociedade em relação à religião na mesma medida em que promovia um "resgate da religio dos grilhões do saeculum", desta forma promovendo uma ‘purificação’ da tradição espiritual cristã.

    A direção conciliatória desses movimentos se complicaria, no entanto, quando Charles Bradlaugh assume a condução da National Secular Society em 1866 e incorpora nela uma inspiração abertamente ateísta e anticlerical. Não mais uma tentativa de delimitar reciprocamente os domínios legítimos da religião e da política secular, a organização empenhará a partir de então um esforço para atacar a legitimidade da religião enquanto tal. Para Maramao essa reviravolta acabaria tendo dois efeitos no contexto de debate sobre a secularização: de um lado, "uma deslegitimação da religião, por parte dos adeptos do secularism e, do outro, uma deslegitimação do secular thinking, por parte da teologia conservadora. Ou seja, quando energizado pela retórica de Braudlaugh, o processo de secularização produziu um um ciclo vicioso em que as pretensões totalizantes do secularismo ‘laicista’ acabam servindo de álibi para uma condenação sumária, em âmbito teológico, da ‘secularização’ como tal."

    Esse episódio na história da Secular Society serve como exemplo de como a secularização tende a implicar um debate mais amplo a respeito do princípio que confere legitimidade ao processo. Como vimos, o secularismo radical de Bradlaugh invoca princípios muito diversos daqueles embutidos na retórica conciliatória de Holyoake e, mesmo que as reivindicações jurídicas tecnicamente fossem as mesmas, a natureza do processo secularizador promovido pela organização se alteraria drasticamente por conta dessa mudança de direção. A secularização tende então a evocar não somente um terreno de disputa institucional por bens materiais, mas também uma disputa por princípios imateriais. Quando essa dimensão do debate é vislumbrada, ele implica não somente as delimitações apropriadas do par estado-igreja, mas também uma delineação apropriada do par política-religião. A tarefa de distinguir a natureza desses dois pares será, para Eric Voegelin, um dos grandes problemas que o teórico moderno se defronta ao lidar com os problemas implicados no conceito de secularização.

    A dificuldade dessa tarefa, diz Voegelin, é imposta por circunstâncias históricas. Isso porque o desenvolvimento dos conceitos de ‘religião’ e ‘política’ na história intelectual do Ocidente está intimamente atrelada à história pragmática das suas instituições correspondentes, isso é, a igreja e o estado. Isso fez com que, nos usos discursivos do par religião-política, a intenção de descrever a realidade fosse muitas vezes sobrepujada pela intenção de demarcar territórios em uma disputa institucional – circunstância que, para Voegelin, comprometeria a utilidade teórica desses conceitos. Na realidade, nem a igreja teria monopólio sobre o religioso e nem o estado teria monopólio sobre o político. Recuperar a utilidade teorética dos conceitos de religião e política necessitaria um cuidadoso trabalho de discernimento e distinção desses conceitos em relação às suas instituições correspondentes. Para Voegelin, um olhar crítico sobre os conceitos de religião e política poderia revelá-los como exemplos diferentes da eficácia de forças humanas fundamentais que são intimamente relacionadas – forças que compartilham uma relação tão íntima a ponto de frequentemente fazer o ‘político’ transbordar no ‘religioso’ e vice-versa.

    Diversos teóricos usariam o termo ‘religiões políticas’ para explorar o ponto de encontro entre essas duas dimensões – uma formulação que impulsiona o surgimento de um amplo gênero literário no qual se argumenta que a apropriação de qualidades próprias da religião por movimentos políticos seculares seria uma das características essenciais das ideologias de massa do século XX. Sob a clave analítica desse gênero, o próprio Voegelin produziria um penetrante estudo em seu livro As Religiões Políticas, de 1939. Muito frequentemente se ignora, no entanto, que Voegelin mais tarde diria que o conceito de ‘religião política’, por mais sugestivo que seja, também é teoreticamente inadequado para explorar os meandros do problema além do nível superficial. Em sua obra madura, o filósofo não usaria mais o termo religiões, por ser muito vago e já deformar o problema real da experiência, misturando-o com outro, que é o da doutrina ou do dogma. Para penetrar a real natureza dos problemas evocados pela interrelação do par religião-política, seria preciso então desenvolver um vocabulário técnico adequado para distinguir certos domínios da experiência humana que na linguagem contemporânea se encontram confusos e indistintos.

    Para apresentar o instrumental teórico desenvolvido por Voegelin, precisamos, no entanto, ter mais clareza sobre os problemas que ele foi desenvolvido para abordar. Com esse intuito, no presente capítulo prosseguiremos a discussão acerca do conceito de secularização de modo a catalogar outras questões que surgem no embate entre o religioso e o não-religioso no campo da teoria.

    1.2 A METÁFORA DA SECULARIZAÇÃO E SUA PERSISTÊNCIA POLÊMICA

    Na medida em que a problemática em torno do conceito se revela, não serão poucos os teóricos que usariam o termo ‘secularização’ para estudar as fronteiras do religioso e não-religioso na vida humana. A abundância de termos para indicar essa fronteira (sagrado-profano, transcendente-imanente, temporal-atemporal, espiritual-material, divino-terreno) e a sua transposição (secularização, desencantamento, dessacralização, desdivinação, imanentização, laicização) indicam a imensa variedade de contextos nos quais essa investigação foi empreendida – uma variedade dentro da qual a nossa própria investigação poderia facilmente se desnortear caso ambicionássemos uma catalogação exaustiva.

    O importante a se notar agora é a maneira como um termo jurídico transformou-se num conceito descritivo no âmbito das ciências sociais mais amplas. Essa transformação, como alerta Hans Blumenberg, faz com que o conceito adquira um caráter metafórico que precisa ser criticamente aprofundado, pois a amplificação semântica pela qual o termo passará nesse processo muitas vezes pode causar equívocos e confusões.

    O uso de metáforas nas ciências sociais não é de modo algum inédito. Analogias extraídas da medicina, do esporte, do teatro ou do campo jurídico são frequentemente aplicadas às ciências sociais, muitas vezes revelando processos antes ocultos e lançando a base de largos e profícuos edifícios teóricos. No entanto, por mais útil que seja, o cadafalso metafórico das ciências requer alguns cuidados. Blumenberg alerta que uma metáfora sempre traz consigo certas implicações do seu contexto de origem que, quando ignorados, podem vir a confundir mais do que esclarecer a natureza dos problemas que ela pretende trazer à luz da teoria. No caso da metáfora da secularização extraída do campo jurídico, é preciso ter em mente que dentro de qualquer tentativa de desenvolver uma ‘teoria da secularização’ existe, por princípio, uma pretensa diferenciação entre duas esferas da realidade entre as quais um trânsito de objetos pode ser rastreado. Em outras palavras, toda teoria da secularização pretende ser capaz de estabelecer, à sua maneira, quando um objeto sai da esfera religiosa e adentra a secular. Em contextos em que não há mais a textualidade jurídica para fundamentar a delimitação inequívoca de objetos, diversas precauções devem ser tomadas para não confundir os fenômenos em observação. Em suma, quando saímos do contexto jurídico temos de tomar um novo cuidado em definir precisamente qual é a ‘propriedade’ que está sendo transferida, e quais as ‘partes’ envolvidas no processo.

    Para Blumenberg, também é preciso ter em mente que, apesar do teor não-valorativo que muitas teorias da secularização procuram adotar, o termo surgiu em um contexto de disputa e o seu uso metafórico poderá acabar envolvendo os fenômenos observados nesse contexto. A secularização poderia então carregar a conotação de uma apropriação ‘indevida’ de substâncias ‘próprias’ ao domínio religioso pelo domínio secular. Alimentando-se dessas conotações, muitas críticas seriam formuladas sobre o caráter eminentemente ‘religioso’ de certas ideologias seculares, como já mencionamos acima.

    Blumenberg, no entanto nos lembra que a validade dessas críticas pende sobre uma definição do que seria uma religiosidade ‘autêntica’ em contraposição à inautenticidade das ‘religiões substitutivas’ seculares. O uso teórico do conceito de secularização impõe quase que necessariamente a tarefa de determinar os domínios legítimos da religião e da política, lançando o teórico diretamente no centro da disputa. A discussão se torna virtualmente inseparável de uma prática de crítica cultural, seja para denunciar o processo como uma apropriação indevida ou para louvá-lo como um sinal do progresso. No contexto de qualquer ‘teoria da secularização’, portanto, uma delimitação de fronteiras conceituais sempre poderá ser vista como uma ‘tomada de posição’ em uma guerra cultural.

    Não faltariam tentativas de posicionar o pensamento de Voegelin nesse campo de disputa. Apesar do seu conceito de ‘imanentização’ parecer, no nível puramente semântico, estar livre de tais conotações, e de ser um termo ‘não-valorativo’ de fato, é seguro dizer que o autor não escaparia à apropriação partidária de sua teoria. Seja louvando a seu potencial justificativo para um projeto político cristianizante, seja denunciado o seu ‘cripto-fascismo’ teocrático, muitas resenhas da obra voegeliniana procurariam trazer à luz o suposto ‘projeto político’ que estaria implícito nela. Seja como for, rastrear essa modalidade de crítica ou as tentativas de apropriação política dessa obra não é o interesse do presente trabalho. Ao longo de sua carreira, Voegelin não demonstraria grande interesse em abastecer a retórica de movimentos políticos particulares, e suas teorizações seguiriam frustrando tanto progressistas, quanto conservadores, quanto tantos outros que se empenharam em lançar rótulos de fácil digestão à obra do filósofo. Quanto à atitude de Voegelin em relação a essas tentativas de rotulação, vale reproduzir um comentário do próprio:

    [Já] fui chamado, por partidários desta ou daquela ideologia, de todos os nomes possíveis e imagináveis. Tenho em meus arquivos documentos tachando-me de comunista, fascista, nacional-socialista, liberal, neoliberal, judeu, católico, protestante, platônico, neo-agostiniano, tomista, e, é claro, hegeliano… Dou grande importância a essa lista, pois os vários rótulos permitem identificar a bête noir do respectivo crítico e dão, assim, um retrato bastante fiel da corrupção intelectual que caracteriza o mundo acadêmico contemporâneo.

    1.3 SECULARIZAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA - FORMA E CONTEÚDO

    As críticas de Hans Blumenberg ao conceito de secularização são formuladas, em grande medida, em resposta à obra de Karl Löwith, Meaning in History. Nela, Löwith procurara argumentar que a ideia de ‘progresso’ que integra certas formulações histórico-filosóficas modernas seria uma versão ‘secularizada’ da ideia bíblica da História como um movimento em direção à sua consumação escatológica. Blumenberg enxergaria na teoria de Löwith uma acusação implícita sendo lançada contra a modernidade: de acordo com a tese, a verdadeira substância da era moderna haveria sido então sorrateiramente apropriada de um domínio que não era seu por direito. Para Blumenberg, a insinuação de ‘ilegitimidade’ transmitida pela teoria acabaria alimentado o que ele chama uma ‘retórica da secularização’, uma forma discursiva caracterizada pelo empenho de denigrir a modernidade e tudo o que ela representa. É uma retórica que insinua "não apenas o mero fato de que autoridades temporais adquiriram poder sobre autoridades espirituais, mas que ideias religiosas haviam sido transformadas em ideias seculares ainda que mantendo algo da substância delas."

    Na medida em que se proliferam tentativas de explicar o nazismo e o comunismo como formas de ‘religiosidade substitutiva’, a retórica da secularização ganha apelo e será mobilizada para fortalecer argumentos desse gênero. A teoria da secularização estaria então correndo o risco de comprometer sua utilidade científica na medida em que seria despendida como arma na ‘guerra fria’ intelectual contra o marxismo e outras variantes de utopismo político.

    Um longo debate entre esses dois teóricos se desenrolaria em torno do que Blumenberg enxergava como pressuposições essencialistas na teoria da secularização de Löwith. Para Blumenberg, Löwith não teria sido capaz de provar a continuidade essencial da ‘substância’ que haveria sido apropriada pela modernidade. Afinal, como é possível dizer que uma ideia permanece ‘a mesma’ uma vez que foi ‘secularizada’? Reconhecendo que o cristianismo era de fato responsável por impregnar a cultura do ocidente com símbolos que expressam a expectativa esperançosa de uma consumação apontada pelo futuro histórico, Blumenberg concede que Löwith argumentara convincentemente que a articulação simbólica da experiência do progresso seria inconcebível sem a tradição judaico-cristã anterior. Mas, continua Blumenberg, não basta dizer que ‘A’ seria impensável sem ‘B’ para concluir que ‘A’ é uma versão secularizada de ‘B’ – isso só significa que a tradição anterior prestou auxílio especulativo para uma determinada formulação posterior. Para Blumenberg, é perfeitamente possível articular uma ideia ‘autônoma’ de progresso, desemaranhada das implicações salvacionistas que decorrem de sua inserção em uma forma simbólica escatológica. Para ele, a modernidade de fato teria à sua disposição uma ideia de progresso livre de implicações religiosas. A formulação essencialista e generalizante de Löwith estaria então obscurecendo a percepção de elementos legítimos e autênticos da era moderna que são independentes da fenomenologia religiosa.

    Apesar do antagonismo que o debate gerou entre os dois autores, é crucial enfatizarmos alguns pontos de encontro. Blumenberg admite em sua argumentação que, embora não haja nada intrínseco à ideia de progresso que obrigue sua inserção em uma perspectiva escatológica, essa inserção de fato ocorrerá em alguns momentos da história intelectual moderna e que, devido a essa inserção, o progresso de fato adquire um teor religioso em certos contextos. Mesmo negando a continuidade substancial entre a ideia da salvação cristã e a ideia moderna do progresso da humanidade, Blumenberg acabaria então admitindo uma outra espécie de continuidade que se manifesta "não na permanência de substâncias ideais mas sim na transmissão de problemas". Daí temos um indicativo de que a ‘substância’ religiosa que perdura nas formulações ideológicas não está, afinal, no conteúdo das ideias, mas na continuidade de certos problemas que, se colocados, podem levar a linguagem a indicar algo do domínio do religioso independentemente dos conteúdos introduzidos para lidar com esses problemas. Para Blumenberg, a noção de uma ‘ideia secularizada’ que compartilha algo da substância de sua versão original ‘não-secularizada’ seria então "uma ilusão criada pela identidade de função que conteúdos completamente heterogêneos podem assumir em certas posições dentro do sistema de interpretação do homem e do mundo".

    A questão pode ser colocada assim: O principal sistema de interpretação concernente ao desenrolar da história humana disponível ao homem ocidental anteriormente ao advento da era moderna era a clássica filosofia da história cristã. O problema principal ao qual esse sistema de interpretação se direciona é o destino escatológico do homem. Os conteúdos desse sistema, extraídos primariamente da fenomenologia religiosa, haviam sido incorporados na medida em que auxiliavam a exploração desse problema em particular. Isso começa a mudar (e o processo apontado por Blumenberg começa a se desenrolar) por uma série de fatores que se acentuam no avanço da modernidade, incluindo a corrosão da autoridade espiritual do cristianismo, a perda de interesse por conteúdos da fenomenologia religiosa, e o surgimento de novos conteúdos que se prestam a formulações especulativas sobre o desenvolvimento da história humana. Blumenberg parece argumentar que na medida em que esses conteúdos surgiam, eles teriam sido incorporados a um sistema de interpretação que não se adequou com a mesma velocidade aos novos conteúdos fornecidos pela modernidade. A forma do sistema antigo continuaria servindo de abrigo para os novos conteúdos, ainda que essa forma permanecesse permeada pelo ‘problema’ original ao qual se direcionava, isso é, o destino escatológico do homem. Os conteúdos alternativos que surgem na era moderna seriam então mobilizados dentro desse sistema para cumprir funções para as quais esses conteúdos não eram aptos a cumprir. Como resume Joe Paul Kroll, a posição de Blumenberg seria então a de que:

    O que havia ocorrido … era que ideias religiosas concernentes ao trato de Deus com o homem haviam exaurido seu poder explicativo e ideias seculares, emergindo do reino das ciências naturais, haveriam tomado o seu lugar, eventualmente expandindo suas próprias reivindicações, que eram inicialmente limitadas. Que uma ideia possa assumir a função de uma mais antiga não deve ser confundido com uma continuidade substancial entre elas.

    Com isso, Blumenberg traçaria então uma distinção entre o conteúdo específico da ideia de progresso e a função que a ideia exerce quando inserida em uma determinada forma especulativa. Reinhart Koselleck parece lançar mão de uma distinção semelhante na sua própria avaliação do conceito de secularização. Procurando responder à pergunta se haveria uma experiência temporal caracteristicamente moderna que é independente da linhagem religiosa sugerida pelas teorias da secularização, Koselleck aponta a experiência da aceleração como uma categoria temporal que se torna autonomamente articulável na era moderna e que oferece à dinâmica histórica uma temporalidade independente da experiência implícita no simbolismo escatológico.

    A aceleração que Koselleck se refere é sentida quando eventos associados a uma ordem sequencial recorrente passam a proceder em intervalos cada vez menores. Essa sensação se dá porque o passar do tempo é experienciado pelo ser humano através da interrelação e da intervalação de eventos diacronicamente articulados. Por esse motivo perceberemos o tempo transcorrer de maneira acelerada quando o intervalo esperado entre eventos recorrentes diminui. Durante a era moderna diversos fenômenos se prestam a tal modo de simbolização, gerando expressões da aceleração temporal sentida nos âmbitos político, social e econômico. Daí que na aceleração, como diz Koselleck, o conteúdo da experiência é específico à era moderna, estritamente temporal e sem uma conotação necessariamente espiritual.

    Koselleck enfatiza então que existem acelerações "não da história, mas apenas na história… A ‘própria história’ ou a ‘história em si’ não parece se qualificar como sujeito de uma ação com sentido acelerado." Ele reconhece, no entanto, que a articulação simbólica da experiência da aceleração pode adquirir uma qualidade salvacionista e religiosa quando os conteúdos de experiência temporal são transpostos para um estrato de significação supratemporal que procura atribuir sentido à ‘história em si’. As tentativas de simbolizar uma aceleração da história ocorreriam devido ao fato de que os instrumentos simbólicos disponíveis para expressar a experiência da aceleração ainda tinham grande conexão com aquelas que tentavam expressar uma outra experiência temporal, à qual Koselleck chama de abreviação. Essa experiência, ocasionada pela expectativa apocalíptica do fim dos tempos, deixara marcas profundas no acervo cultural do ocidente, uma herança que geraria interpretações da nova experiência temporal através de associações metafóricas com a antiga. A ‘justificativa parcial’ que Koselleck vê em falar da experiência moderna do tempo como uma ‘secularização’ da experiência cristã, portanto, estaria nos casos onde formas simbólicas atrelada à experiência da abreviação do tempo incorpora eventos que estariam se acelerando no tempo. Daí que "a abreviação temporal pré-formulada pelo apocalipticismo transforma-se em metáfora para a aceleração, que, desde o século XVI, verbaliza outros e novos conteúdos, diferentes daqueles pretendidos no horizonte da escatologia

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