Liberdade: fato ou ilusão?
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Liberdade - Clóvis de Barros Filho
Esta é uma publicação Principis, selo exclusivo da Ciranda Cultural
© 2022 Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.
Texto
© 2022 Clóvis de Barros Filho
© 2022 Gustavo Dainezi
Editora
Michele de Souza Barbosa
Preparação
Luciana Garcia
Revisão
Fernanda R. Braga Simon
Produção editorial
Ciranda Cultural
Diagramação
Linea Editora
Design de capa
Ana Dobón
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
F481l Filho, Clóvis de Barros
Liberdade : fato ou ilusão? [recurso eletrônico] / Clóvis de Barros Filho ; Gustavo Dainezi. - Jandira, SP : Principis, 2022.
192 p. ; ePUB ; 823 KB.
ISBN: 978-65-5552-774-2
1. Autoajuda. 2. Liberdade. 3. Ensaios. 4. Discussão. 5. Atualidade. 6. Reflexão. I. Dainezi, Gustavo. II. Título.
Elaborado por Lucio Feitosa - CRB-8/8803
Índice para catálogo sistemático:
1. Autoajuda : 158.1
2. Autoajuda : 159.947
1a edição em 2022
www.cirandacultural.com.br
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta daquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.
A você que marcou para sempre e a você que está para chegar e já mudou tudo para sempre.
Gustavo Dainezi
Prefácio
Sou mulher, preta, pobre e fui mãe solo por alguns anos. Sofri na pele e na alma, com a mais profunda intensidade, todos os males que esses estigmas carregam em si. Desde estupro, agressão e exploração a abandono e violência psicológica. Sempre foi muito difícil estar viva e por muitos anos acreditei que era minha responsabilidade todo aquele sofrimento. Não tinha noção do peso da sociedade, da cultura, das classes sociais e do porquê de tantos fatores externos me atacarem só por eu ter nascido.
Em 2014 eu passei o Natal e o Ano-Novo fazendo o curso do professor Clóvis que estava disponível no Espaço Ética (guardo o certificado com muito orgulho), sozinha e sem perspectiva de vida. Mas, com aquele curso, eu consegui enxergar que existem forças muito maiores que movem o mundo e também que, há séculos, as pessoas se questionam e pensam sobre como a vida pode e deve ser boa. Eu entendi que posso escolher onde colocar minha atenção, meus hábitos e meus sentimentos. Entendi também que sou responsável por mim e não pelo que fizeram comigo e, finalmente, que sou livre para deliberar sobre a minha vida, apesar das marcas históricas que carrego sem nem mesmo ter escolhido por elas.
Tatuei em 2018 a palavra Liberdade, nesta cor próxima à cor das minhas veias e no pulso como símbolo que troca as algemas pela palavra. Foi neste ano que consegui ressurgir de dentro de mim, e minha fonte de inspiração sempre foram as belas palavras do professor Clóvis. Ele disse tantas e tantas vezes fica bem
que eu fiquei!
Camila Santos
Capítulo de
advertência
– Tudo isso, fora o glamour.
Com esse item, muitos clientes e até amigos costumam arrematar a lista das vantagens de ter virado palestrante
. Dissipação definitiva de toda eventual dúvida.
Impossível negar ou dissimular. Havia tirado a sorte grande. A Divina Providência me guiara com holofotes náuticos. E o acaso, em rara concórdia entre suas caprichosas variáveis, decidira, por fim, dar uma força, enfileirando surpreendentes impactos alegradores.
***
Glamour
já teve sua glória. Seu próprio glamour. Hoje ocupa a tumba 442 da ala norte do cemitério das palavras.
Até que, muito de vez em quando, algum incauto desatualizado aposta suas fichas no estrangeirismo de pequeno porte e o ressuscita. Seja por conhecer bem as gentes do auditório e intuir o que lhes faz bem à alma, seja para salvar frase de pouca relevância e não perder a fluência buscando um sinônimo menos antigo.
Na falta de algo melhor, vai glamour
.
***
– Todos sonham com uma vida assim glamourosa como a sua!!!
Quando, pela enésima vez, alguém solta uma dessa, a personagem que incorporo antes e depois do palco meneia a cabeça, vertical e curtinho. Para não danificar mais a cervical. É a síntese de uma vida inteira, em corriqueira cena de enfado, na representação de mim mesmo para o teatro da vida cotidiana.
Acompanha o gesto um ã-hã
de confirmação. Com zero de autenticidade e 200% sisudo, para não dar brecha à ironia.
***
Os primeiros parágrafos de grandes obras de literatura são sempre arrebatadores. Rompem espetacularmente a inércia narrativa, inauguram um mundo fictício que não existia antes, situam o leitor ante o que está por vir e indicam, desde as primeiras palavras, a excelência daquela construção literária.
O que você leu até aqui também dá o tom: deixa você na mesma, como se nada tivesse lido, não cria um universo ficcional, não te dá ideia alguma do que está por vir e indica a indigência literária que te acompanhará ao longo das páginas.
Bem. Se o leitor quisesse boa literatura, teria comprado Stendhal, Céline, Tchekhov ou Rubem Braga. As obras desses autores exigem imensa atenção a como se manifestam, tanto quanto ao que dizem.
Já entre nós, você não precisa se dar esse trabalho. Pode ir direto ao assunto. Como quem lê um artigo sobre o desgaste do solo por cultivo sem descanso no interior do Maranhão. Ou ainda uma reportagem policial cobrindo estupro de anciã em manicômio.
No mundo dos livros, como em todos os outros, apostar no desconhecido pode até dar certo. Mas o nosso título jogou limpo com você: como ralar a vida inteira sem sair do lugar. Na troca da autoajuda por autocomiseração, para a qual você não precisa de lição alguma, sobrou o que talvez importe ainda menos. A liberdade. E algumas histórias a respeito.
Não foi por falta de aviso. Sabe quando alguém pisca um olho só, fazendo até careta, para te alertar de uma roubada? Então, foi esse o nosso intuito. Só não fomos além, desaconselhando mais explicitamente a leitura, para não entristecer a editora, por quem também temos apreço.
***
Sempre me perguntei como se sentem os que alcançam a glória. Um reconhecimento endeusado. Celebridade de todo mundo, de todo dia.
Livres? Certamente. Afinal, sobejamente autorizados, podem fazer o que bem entendem. Sem pedir licença alguma. Digo, na esfera criativa de seus ofícios.
Escravos? Tanto quanto livres, ou mais. Vítimas de uma excelência traduzida em expectativa. De uma disponibilidade presumida a todo tempo e lugar. De intimidades unilaterais fantasiadas pelo fã.
***
Pobre do pianista ídolo do público, isolado como um náufrago diante do mar negro em plateia, enfrentando o piano polido, apelando para os dedos hábeis, mas de carne, osso e tendinites, como os demais dedos do mundo.
Triste craque de futebol que enfrenta o gramado, a capacidade sempre temível do adversário, as incertezas do jogo, a esfericidade traiçoeira da bola e a reação implacável da massa que o assiste.
E, claro, bendito escritor consagrado, com a folha de papel em branco diante de si: sabem lá o que é desespero de não poder inventar, a agonia de se sentir fracassar.
A mente vazia, sem riqueza de ideia, sem desenho de forma, poço seco onde só há areia e pedra… E assim mesmo o relógio correndo, espírito contra a parede, em luta consigo mesmo por um fiapo de frase… E não qualquer frase. Angústia.
Sim, passado o momento decisivo da criação, há o aplauso, o dinheiro, o renome, a consagração… até a liberdade…
Mas é com o velho corpo que se paga
, lamentava o velho Clóvis de Barros, quando a cabeça não presta
. E quando presta também, ouso acrescentar.
Para lembrar uma querida cearense:
– Isso quando também a alma não vai de roldão.
***
Logo, é possível sentir-se livre e escravo. Na mesma situação. Pela mesma causa. E quase ao mesmo tempo.
Pondo na balança, melhor deixar do jeito que está. Decair, impossível, quando já se mora no térreo. E comprar pão na padaria sem ter que saudar desconhecidos a cada passo, permissão libertadora que só o anonimato profundo chancela em três vias.
Capítulo
1
Alumiados a meias
Era mais um dia desses, de glamour. Com despertar, às 4h20, solicitado pessoalmente na recepção e recomendação chorada de quem não poderia perder o primeiro voo, de jeito nenhum.
O hotel ficava – e talvez ainda fique – na Avenida Afonso Pena, de BH. Cidade com amor de doce de leite.
Havia um café de ontem à disposição dos madrugadores. No salão – bem protegido por quatro pilares zelosos de robustez –, as moscas pareciam se divertir escapulindo de espíritos desinformados. Era muito comum por ali. Acertavam o hotel, mas ignoravam o quarto dos hóspedes a visitar.
Era preciso aguardá-los na recepção. E abordá-los no saguão mesmo. A caminho do táxi. Na porta giratória, quem sabe.
Se a regra de manual para entes imateriais sempre impôs encontros com corpos de carne e osso longe de seus domicílios – sabidamente, o vuco-vuco familiar oblitera os canais de acesso ao suprassensível –, o entra e sai dos viajantes tampouco aguçava sensibilidades de segundo grau.
***
Como havia quitado minhas contas na noite anterior, logrei passar sem ser notado, no vazio pacato dos adormecidos, em meio à distração entretida de espíritos e moscas.
– Se o senhor quiser, tem um cafezinho ali na cafeteira.
Gentil o moço do check-out. Mas o café, esse é velho conhecido. Entre os vinte piores de uma trajetória que já se conta em década, com eventos corporativos diários.
– Para Confins? Temos o táxi executivo do hotel. O preço é o mesmo do normal. E o senhor viaja mais tranquilo.
Fiquei curioso sobre a natureza da intranquilidade com que ele me ameaçava. Mas o torpor sábio do despertar recente trouxe lucidez e silêncio.
Na concordância tácita de quem aquiesce sem nada dizer, em poucos minutos a bordo o centro da cidade já se exibia, todo sujo do vidro do carro e nu retinto, de criança que passou a tarde brincando na lama da chuva.
***
Num mundo de controle – onde a vida é observada, no ponteiro dos segundos, em olhar estendido, que zela por 40 lugares diferentes na telona da portaria –, com políticas de segurança sempre mais opressivas, aquele instante de exceção, na passagem urbana em orvalho enevoado, de breu implacável e ausência aparente de fiscal, trouxe-me grande sensação de liberdade.
Tão sentida que acabei me dando conta. O que nem sempre acontece, claro. Ocasião privilegiada para conhecer-se melhor.
Se há algum eu
em mim, ele aparece quando, em face desse ou daquele fragmento de mundo, sente isso ou aquilo e se dá conta. Toda vez que consigo dar em mim um flagrante é pela sensação que chacoalha em ruptura, por obra de um mundo que afeta.
***
As lojas de rua, típicas da região central de nossas capitais, desafiam – com seu jeito decadente de letreiros alumiados a meias e lâmpadas queimadas – as tendências do consumo que distinguem.
Para muitos especialistas, não vão além de resquícios retardatários e anacrônicos de toda transição inexorável. Espécie em vias de extinção. Com hora marcada para o último suspiro.
***
Na lógica inexorável de um capital que circula, afoito para se aninhar em mãos cada dia menos numerosas, é hora de inventar um nome novo para novas loucuras.
Afirmações de empáfia, que sentenciam sobre um futuro cada dia mais iminente. Escoradas em leis econômicas apresentadas como objetivas e naturais. Como a da gravidade. Enunciadas por cientistas do dinheiro, supostamente neutros e comprometidos só com a verdade.
Lembro que esses porta-vozes do amanhã – sob os holofotes televisivos de maior prestígio, alinhados em indumentária, gestos comedidos e tonalidade linear, em respeito estrito a uma estética da racionalidade, falando sempre sobre o que não é ainda – raramente são confrontados pelo que efetivamente vem a ser um outro mundo diante de suas previsões.
Quando o amanhã vira hoje, um outro amanhã ainda se esconde no horizonte. Cujos teor e substância também cobram ansiosa antecipação. Por ela, paga-se fortuna aos bruxos da vez. Enquanto isso, o hoje, que só preenche algumas poucas almas sábias, de tão ligeiro e estrangulado, já surge parecendo ontem.
Se você prevê ao acaso um desfecho com duas alternativas, sua chance de acertar é de 50%. Esses, ancorados em seus nobres saberes, erram sempre. Quase sempre. Lembram muito os meteorologistas de quando eu era criança.
Que erravam também, quase sempre.
***
O meu pai me levava a Santos. Viagem de ônibus que começava no sábado, bem cedo, e terminava no final do dia, subindo a serra de volta.
Para mim era o paraíso, com sol, nuvens ou mesmo chuva. Já o velho Clóvis, na sexta-feira, fazia questão de se informar sobre o tempo. Quando a previsão era negativa, fazia cara feia e ameaçava adiar o passeio.
Eu, então, argumentava:
– O senhor mesmo sempre diz que eles erram toda hora! Vamos mesmo assim! Ele não pode nos impedir.
O erro do homem do tempo era a condição da liberdade de ir mesmo assim
. Uma certeza sobre a incerteza de que tudo poderia acontecer. E, portanto, de que sempre valia a pena arriscar. De que valia a pena viver.
Porque só o incerto é mágico e libertador.
Se não errassem nunca, restaria a escravidão que todo implacável impõe, sem dó de quem se divertia num bate e volta de ônibus a Santos, debaixo de chuva, levando as iguarias de casa.
***
A resistência dos comerciantes, com suas lojas de neons deselegantes – naquele instante em que os porta-vozes do inexorável mundo novo ainda dormiam – reforçou minha estranha sensação de poder fazer, agir, viver, em suma, como bem me desse na veneta.
O ato desses pequenos proprietários, muito mais importante do que lhes parece, afirma um sentimento de confiança, um propósito de contribuir para que todos nós, residentes e transeuntes, recuperemos um pouco da beatitude perdida.
Quem pinta hoje a fachada da sua sapataria antiga, mantendo suas vitrinas, em vez de negociar-lhe a demolição, cumpre uma cláusula do contrato social, observa a boa lição urbanística e, dentro do