Direito fundamental à água: um patrimônio comum?
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Sobre este e-book
Tais projetos dividem opiniões. Há quem defenda sua implementação, pois na esfera privada há uma melhor gestão de energias. É o que defende quem apoia a privatização. Por outro lado, o domínio público da água não estará mais na mão do estado, logo, o mercado irá preferir fornecê-la a quem mais pagar, e se sobrar, fornecerá a quem não puder pagar os valores a serem determinados. Essa é a lógica do mercado.
Para compreender tudo isso, será abordado como se procede a gestão das águas no Brasil, e tratado acerca da crise hídrica mundial que somente vem aumentando com o passar dos anos, especialmente pelas adversidades climáticas presenciadas.
Por fim, será tratado da água sob o viés constitucional em simetria com a teoria dos bens comuns, presente na doutrina de vanguarda, que em muito engrandece a discussão sobre o tema.
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Direito fundamental à água - Cleverson Sottili
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho é dirigido ao estudo das águas no Brasil, a fim de fazer um recorte sobre os principais temas que permeiam o assunto e reunir diversas informações sobre o atual cenário que esse bem se encontra atualmente.
A ideia de pesquisar a respeito do tema partiu de um Projeto de Lei de origem do Senado Federal, de autoria do Senador Senhor Tasso Jereissati (PSDB/CE), sob o número 495 de 2017, que pretende criar comércios de águas, viabilizando a livre alienação de bacias e sub-bacias hidrográficas inteiras, sem nenhum controle e tampouco sem qualquer interferência do Estado.
Visto isso fez emergir a palpitação para pesquisar a respeito de como se configura o debate em torno da privatização das águas no Brasil, mas também de onde veio essa forte influência, que pelo projeto acima está em vias de ser introduzida no Brasil e já possui raízes em alguns Estados norte-americanos e europeus.
A pesquisa possui relevância ímpar, vez que são raros arquivos científicos com a densidade necessária para outorgar ao leitor uma visão abrangente das águas, que aborde tanto o ordenamento jurídico, quanto os dados representativos da atual situação das águas, bem como o tratamento conferido a esse bem.
O objetivo geral da pesquisa é estudar como são tratadas as águas no Brasil, do ponto de vista jurídico e social, pela doutrina mercadológica e pela ambientalista. Os objetivos específicos a serem perquiridos são o levantamento de dados acerca da disponibilidade de água potável ainda existente para uso e consumo humano; Estudar os efeitos das mudanças climáticas na natureza e o que isso impacta na água; Trazer a discussão da água em relação a dignidade da pessoa humana e estudar os valores inerentes à água; Analisar o tratamento jurídico conferido às águas no Brasil; Debater acerca dos novos direitos e novos paradigmas que se desenham para o futuro das águas e por derradeiro analisar a possibilidade de privatização das águas no Brasil.
O problema de pesquisa consiste em abordar se a água na sua condição de bem comum é passível de ser privatizada, e o tema do estudo é como se configura o debate em torno da privatização das águas no Brasil.
Para tanto será discutido no primeiro capítulo o direito a água em evidência, trazendo dados a respeito da crise de água presenciada no mundo e a consequente redução de água potável já ocorrida, demonstrando a atual conjuntura hídrica nacional e internacional, bem como se desenham as projeções futuras caso não ocorram mudanças radicais de comportamento na tutela da água.
Será possível observar ainda os efeitos causados pela falta de água potável, que repercute diretamente na vida das pessoas, sendo responsáveis por índices assustadores de doenças em todo mundo, e por altas taxas de mortalidade, afetando não só pequenos grupos de pessoas, mas sim nações e continentes por inteiros, frente ao profundo impacto sentido pela má qualidade da água.
Abordaremos ainda, além da crise e seus efeitos, os motivos que lhe deram e continuam a operar tais consequências, demonstrando como as atitudes pautadas apenas pela lógica extrativista acaba destruindo a própria economia a longo prazo, bem como a vida de milhares de seres vivos.
Veremos ainda os impactos causados pelas mudanças climáticas na natureza e na vida de todos os seres vivos, buscando informações cientificas a respeito do atual cenário de degradação causado, bem como as projeções futuras de destruição advindas pelos efeitos das mudanças climáticas, demonstrado alguns dos prejuízos já causados e quais se desenham para o futuro e como tais mudanças impactam na água.
Em meio a esse cabo de guerra entre o capital e a vida, vamos falar sobre a axiologia que circunda ao redor da vida, para construir uma abordagem que demonstre o valor inerente a vida e a importância de práticas sustentáveis pautadas nos valores essenciais indispensáveis a nossa sobrevivência, bem como do direito universal de acesso à água potável para dignificação humana, como eixo motriz dos valores inerentes à importância do cuidado com a água.
Neste primeiro capítulo, ao final, vamos discutir acerca do direito humano de acesso à água potável que vem conquistando cada vez mais espaço na ordem jurídica mundial por estar se tornando um comando jurídico universal frente aos inúmeros documentos que vieram sendo construídos neste sentido ao passar dos anos, promovendo uma ruptura em algumas restrições que existiam e direcionando uma atenção maior ao cuidado com a vida.
No segundo capítulo, a fim de entender como funciona o sistema brasileiro de gestão das águas, as instituições estatais e a legislação de regência, será abordado como são estruturados os órgãos de gestão das águas no Brasil, quais as respectivas funções e para que se destinam.
Ato contínuo será avaliado qual é o grau de efetividade desse sistema de gestão, abordando o grau de eficácia dos instrumentos de gestão existentes no Brasil, a fim de observar qual é o retorno que ele proporciona à sociedade.
Por derradeiro será buscado com base da doutrina de vanguarda, identificar novos paradigmas a serem enfrentados, especialmente os que prezam pela água como um bem comum da humanidade e lutam por um novo direito a água.
Para fechar o capítulo então será abordado se é possível privatizar as águas no Brasil, apresentando detalhes do Projeto de Lei número 495 de 2017 do Senado Federal e verificando de onde partem essas propostas e projetos com viés fortemente mercadológicos.
Consigna-se ainda, que o método de abordagem é o dedutivo, baseado na pesquisa documental de doutrinas, artigos científicos e capítulos de livros, que por prezar pela qualidade do recorte realizado, certamente proporcionará um engrandecimento significativo no tema.
2 O DIREITO À ÁGUA EM EVIDÊNCIA
Este capítulo abordará o assunto da crise de água potável existente no mundo, inclusive no Brasil, país que apresenta dados alarmantes e curiosos que fazem do estudo uma ótima oportunidade de interação social dos desafios do século XXI.
Atentos a todo esse cenário delicado a ser estudado, trataremos ainda sobre a interferência da mudança climática na disponibilidade de água potável, e quais são os seus efeitos na natureza, a fim de compreender melhor as causas e ações que estão comprometendo a vida da presente e futura geração no planeta.
Ao final do capítulo, discutir-se-á o acesso à água em relação ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a fim de tentar identificar os valores extrínsecos e intrínsecos que a água e a dignificação humana possuem em meio a todos os ataques que a natureza vem sofrendo contemporaneamente.
2.1 A crise da água e a disponibilidade de água potável no planeta
A crise da água é a dimensão mais profunda, mais intensa, que abrange todos e ao mesmo tempo é a dimensão mais invisível da devastação ecológica¹.
Sabemos que a água é essencial para todos, pois sem ela ninguém vive. Partindo dessa premissa que vem atraindo interesses de múltiplos atores, em busca do domínio da água potável a qualquer custo, refletiremos um pouco mais acerca da magnitude e da riqueza natural que é a água.
Voltaremos nossa atenção agora para levantar dados acerca da disponibilidade de água potável e para compreender a crise da água, assunto corriqueiro entre pesquisadores que cuidam do tema.
Vivemos no planeta água, onde aproximadamente 75% de toda a superfície do planeta é coberta por ela. Contudo, aproximadamente 97,2 % de toda essa água é salgada, sendo inapropriada para o consumo humano, logo, restam apenas 2,8% de água doce no mundo². Destes 2,8 % de água doce, aproximadamente 70% que os integram estão concentrados nas calotas polares, 29% está concentrado nos lençóis subterrâneos e apenas 1% é água superficial, concentrada nos rios, lagos e na atmosfera³.
Além da quantidade de água doce apropriada ao uso ser tão restrita (o equivalente a uma gota a cada quinze litros de água existente), o ser humano está tornando gota após gota inapropriada para o consumo. Para termos uma noção da crise em que adentramos, segundo dados do Banco Mundial em 2007 cerca de 80 países enfrentavam problemas de abastecimento⁴, sendo que no ano 1998, apenas 28 países sofriam com a escassez ou a falta de água⁵, e segundo projeções da ONU, até 2025 um terço da população mundial não terá acesso à água potável⁶.
Em apenas 10 anos o número de países com estresse hídrico quase triplicou, e até 2025 a previsão é que um terço do planeta esteja sem água potável, o que compromete violentamente a manutenção da vida em razão das inúmeras doenças e problemas reflexos advindos da poluição da água, o que demonstra a emergência do tema e o abismo para onde estamos caminhando.
Importa fazer um adendo a fim de trazer o conceito de estresse hídrico, que pode ser entendido como o déficit de hidratação em um ser vivo (planta ou animal), causado pela escassez de água, que traz consequências como a carência dela em todo o conjunto de tecidos ou células que necessitam de água⁷.
A Organização de Saúde relata ainda que a água contaminada, é uma das causas de 80% de todas as enfermidades e doenças em todo mundo⁸.
Para termos noção do tamanho do problema que a água impura representa para a humanidade, cerca de 3,5 milhões de crianças até cinco anos morrem anualmente pelo mundo todo em decorrência de doenças advindas exclusivamente da qualidade da água⁹.
Só entre os anos de 1900 e 2013, mais de 11 milhões de pessoas morreram por causa da falta d’água e 2 bilhões tiveram suas vidas transtornadas pelo fenômeno, com o advento de doenças relacionadas a má qualidade da água¹⁰.
Se isso não bastasse, estudos apontam que a demanda por água doce é multiplicada a cada 21 anos, já a disponibilidade de água apta para o consumo humano, diminuiu 62% no mundo nos últimos 50 anos¹¹.
Só no Brasil podemos citar inúmeros casos de extremos climáticos, entre secas devastadoras e enchentes, que comprometem a oferta ou a qualidade da água. Na Amazônia, nos anos de 2005 e 2010 ocorreram secas intensas e nos anos 2009, 2012, 2014 e 2015 a região sofreu com enchentes. A região Sudeste do país também sofreu com intenso estresse hídrico pela falta de água no ano de 2014. Por sua vez, em 2014 ocorreram enchentes em Rondônia e no Acre, enchentes em Salvador em 2015, no Rio de Janeiro em 2011, em Pernambuco em 2010 e no Vale do Itajaí em 2008, que juntas contabilizaram mais de dois mil mortos¹².
O advento das enchentes também contribui significativamente para a escassez hídrica, pois geralmente contaminam todas as reservas e depósitos de águas aptas para o consumo, de modo a tornar toda a água existente na circunscrição atingida, inapropriada para o consumo.
A título de exemplo da crise hídrica vivenciada, vejamos alguns exemplos.
Minas Gerais é considerada a caixa d´água do Brasil, por contar com aproximadamente 8,3% de todos os rios brasileiros, totalizando mais de 10 mil cursos d´águas. Porém, atualmente muitos desses rios estão poluídos, cheios de esgoto e resíduos de mineração, o que fez com que milhares de pescadores migrassem forçadamente para a mineração, pois não há mais o que se pescar. A água de muitos rios reduziu pela metade em virtude do desmatamento e da poluição, e muitos outros acabaram secando completamente, restando apenas uma listra de areia¹³.
A China, assim como o Brasil, é um dos países com maior densidade de água do mundo. Porém, há crises muito severas desse bem por lá, principalmente no Norte, região mais seca, que sofre muito com