Segregando para "cuidar": política de Estado para controle da hanseníase – 1950/1960
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Segregando para "cuidar" - Nayara Alexandra Rodrigues da Silva
PREFÁCIO
Por Nádia Elisa Meinerz
Novos horizontes de crítica à geografia dos indesejáveis
em Alagoas
O presente livro é uma contribuição valiosa e inovadora à história política de Alagoas, produzida a partir da área da saúde e das problematizações de mulheres que atuam e fazem ciência sobre o cuidado e sobre a história das políticas de saúde em nosso país. Sua inserção numa linha de pesquisa sobre história da enfermagem em Alagoas, reflete o engajamento dessa área em produzir registros sobre o percurso dessa profissão singular no estado e também no país e, principalmente o compromisso com uma prática em que a memória é matéria de reflexão para a atuação no presente. A autora, Nayara Alexandra Rodrigues da Silva reúne diferentes registros sobre a forma como foram tratados os doentes de lepra no estado de Alagoas, entre os anos de 1940 e 1950. O estudo explora portarias, decretos, manuais e demais materiais produzidos pelos órgãos de saúde, recortes de jornais da época e também depoimentos de quatro pessoas que vivenciaram diretamente a política estudada. Como resultado, traz evidências inéditas sobre as ações de controle da lepra e sobre experiências de violação que foram apagadas dos espaços oficiais de construção da memória em nosso estado. Documenta a própria existência de um leprosário em nosso território, o Hospital-Colônia Eduardo Rabelo e, com o seu fechamento, a remoção compulsória dos acometidos pela doença para o Hospital-Colônia da Mirueira na cidade de Paulista em Pernambuco.
O valor heurístico desses registros é potencializado em face das movimentações recentes em torno das evidências genéticas que permitem a reconstituição dos fios de parentesco até os internos das ex-colônias hospitalares
no Brasil e da constituição de um movimento social organizado por demandas de reparação. Seguindo um caminho paralelo e igualmente importante, o livro contribui para ampliação das descrições disponíveis sobre esses espaços idealizados como réplicas da estrutura citadina, onde os acometidos pela doença foram segregados em nome do seu próprio bem-estar, de seus familiares e de toda a sociedade. Ele ajuda a refletir criticamente sobre as teorias eugênicas que inspiraram essas políticas segregatórias e se apoiaram na observação do adoecimento, especialmente em suas sequelas incapacitantes, para erigir o ideal de corpo saudável para a nação.
Também merece destaque a divulgação da história de ex-internos daquelas instituições, dos filhos dos ex-internos que foram separados e enviados aos educandários
ou preventórios
, que eram uma espécie de orfanatos específicos criados garantir o controle do contágio e observar de perto o aparecimento da doença em sua forma hereditária. O texto ainda dá visibilidade para gerações mais novas de sujeitos que foram atingidos pela hanseníase
e realizaram o tratamento ambulatorial, que teoricamente substituiu as políticas de isolamento embora fosse em grande parte realizado exatamente nos mesmos espaços. Desse modo, o livro se soma a outros esforços de crítica, no campo dos estudos de ciência e tecnologia à uma história bacilo-centrada
da hanseníase (Maricato, 2019). Quero dizer com isso que, ao invés de reforçar a existência de uma linha temporal em direção à cura e à eliminação global da hanseníase como problema de saúde pública (partir do advento da poliquimioterapia), ela abre espaço para a consideração das narrativas daquelas pessoas diretamente afetadas pela doença e da persistência de demandas ao longo da vida dos sujeitos por terapêuticas não medicamentosas de convivência com as sequelas corporais.
Em outra pesquisa recente, a antropóloga Gláucia Maricato demonstra como a reabilitação e a prevenção de incapacidades, que compõe os cuidados pós-alta por cura em hanseníase, são insuficientes para a demanda existente no país. A escassez de serviços ortopédicos, as barreiras que os usuários encontram para acessá-los, a resistência dos materiais empregados na confecção das órteses e próteses e a discriminação relacionada ao seu uso evidenciam uma lacuna entre o acompanhamento recomendado na política pública e as práticas de cuidado. Assim como essas evidências corporais que fazem a hanseníase uma experiência cotidiana na vida de muitas pessoas, a antiga infraestrutura estatal erigida para conter os bacilos da lepra traz um conjunto de demandas que são anacrônicas em relação à nova racionalidade da política de saúde, mas que continuam atuando no cotidiano da gestão dos ambulatórios. Nesse sentido, a autora defende uma análise topográfica das políticas de saúde para que sejamos capazes de apreender as dobras temporais que inscrevem no aqui e no agora
os efeitos das práticas de cuidado segregatórias (Maricato, 2019).
Nos mesmos termos, sugiro que os registros históricos apresentados sobre a gestão dos doentes de lepra em Alagoas nas décadas de 1940 e 1950 sejam aproveitadas na análise sobre os seus efeitos para quem adoece de hanseníase em nosso estado nos dias de hoje. É fundamental que os pesquisadores, os gestores públicos e também os profissionais que performam o cuidado no cotidiano possam se apropriar dessa ferramenta e compreender o valor do questionamento à uma narrativa histórica que torna protagonista o micro-organismo e seu combate pelos homens da ciência, invisibilizando as demandas das pessoas que experimentaram a ação aguda do bacilo em seus organismos. São cidadãos que tiveram seus corpos expostos a todo o tipo de experimentações em nome da ciência, (sem nenhum benefício ou reconhecimento assegurado a partir de seu material biológico) e que seguem convivendo com as sequelas incapacitantes e principalmente com a experiência da discriminação. Ao colocar em relevo o exercício de poder do estado através das políticas de gestão do adoecimento, esse estudo demonstra que apesar da violência física e simbólica inerente ao processo de desterritorialização vivida pelos seus interlocutores prepondera a percepção de que naquela época havia um cuidado
mais efetivo, uma ação de enfrentamento a doença mais concreta e observável.
Aqui peço licença para agregar às conclusões da autora uma interrogação antropológica, na esteira das provocações de Fonseca (2017). Na narrativa dos entrevistados, apesar da pretensa neutralização do bacilo, a hanseníase continua viva em seus organismos e muito presente nas expressões cotidianas de discriminação que eles convivem. Não se trata, como argumenta a autora, de qualquer dificuldade de compreensão sobre ação dos fármacos. O que esses depoentes estão reivindicando é muito parecido com o que tem sido identificado entre as famílias de crianças com microcefalia e outros agravos relacionados ao Zika Vírus (Silva, Matos e Quadros, 2017; Fleisher 2020, Wiliamson, 2021) São demandas que se desdobram na interação com os determinantes sociais de saúde como pobreza, discriminação racial, desigualdade de gênero e capacitismo. Os depoimentos em tela se coadunam com as discussões que vem sendo conduzidas sobre a eliminação da Hanseníase no âmbito da saúde global. Em 2010, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) lançou as ‘Diretrizes para o fortalecimento da participação das pessoas afetadas pela hanseníase em serviços de hanseníase’, a Assembleia Geral da ONU Organização das Nações Unidas adotou a resolução 65/215 sobre a eliminação da discriminação contra as pessoas afetadas pela hanseníase e seus familiares
. Essa resolução tem como foco os direitos individuais e princípios básicos de liberdade tanto para aqueles que foram afetados pela doença quanto para seus familiares. Em suma, ela trata da não discriminação, do direito ao casamento e a constituição de família (que implica que a hanseníase não deveria ser tomada como razão justificável para o divórcio ou para a separação do acometido de seus filhos), direito à cidadania e acesso a documentos, possibilidade de concorrer a cargos públicos, garantia dos mesmos direitos trabalhistas que o restante da população nacional, sentimento de dignidade e condições de tomar parte em processos decisórios nos quais suas vidas se encontram diretamente implicadas.
Ao mesmo tempo que se soma às críticas que já vem sendo feitas à centralidade ocupada pelo controle epidemiológico nas políticas de saúde que vem sendo apontadas de forma consistente em relação a Dengue, Zika e Chicungunha (Segata, 2017) e a própria hanseníase (Maricato, 2019), a autora nos brinda com uma nova camada de análise. Trata-se da invisibilização dos doentes em face às precariedades programáticas (geograficamente delimitáveis) do investimento em ciência, tecnologia e saúde pública no Brasil. Os registros compilados no livro apontam para a justificativa de inexistência de uma demanda no estado de Alagoas, que fosse suficiente para justificar o custo de um Hospital Colônia. Justificativa idêntica à que foi dada nos anos 2000 para a extinção do Núcleo Interdisciplinar de Acompanhamento à Transexualidade (Santos, 2013) e que faz com que até hoje homens e mulheres trans tenham que se dirigir a outros estados para realizar o processo transexualizador pelo SUS. Para além de simplesmente contabilizar o público-alvo da política, importa responder uma série de outras perguntas: Quem foram as pessoas acometidas pela lepra em nosso estado? Por quanto tempo viveram? Quais os efeitos das diferentes intervenções de combate à doença em sua qualidade de vida e sobre suas estruturas familiares? Quantas crianças nasceram nessas instituições foram compulsoriamente separadas de seus pais? Quantas e quais puderam regressar ao convívio com seus familiares após o fim da Campanha Nacional da Lepra em 1964 e transferência das ações do governo federal para serem articuladas pelos estados? Todas essas informações aparentemente desprezadas pelas autoridades locais seriam de grande importância na primeira década do século XX, quando foi implementado o direito a uma pensão mensal vitalícia a todos os sujeitos que foram compulsoriamente isolados nas antigas colônias hospitalares até o ano de 1986 através da lei 11.520/2007.
Apesar do tempo transcorrido em relação ao período analisado nessa obra, as questões que ela suscita continuam sendo indispensáveis para articulação desses sujeitos e seus familiares a ações locais de assistência às pessoas com deficiência, às movimentações em escala nacional protagonizadas pelo Morham – Movimento de Reintegração e mesmo a alianças internacionais como a ILEP - International Federation of Anti-Leprosy Associations. Essas organizações de caráter científico e também grupos autônomos de pacientes e acometidos por doenças crônicas tem desempenhado um papel fundamental especialmente em face às ações da Organização Mundial da Saúde em busca da eliminação da Hanseníase como problema de saúde global. Muitos analistas têm observado que a animadora notícia têm acarretado a descontinuidade de campanhas de busca ativa dos infectados, uma perda progressiva da expertise médica em realizar o diagnóstico e o tratamento da hanseníase (Virmond, 2012) e uma queda brusca no financiamento de pesquisa a nível internacional (Fine, 2017). Nesse sentido, a leitura desse trabalho, precursor em Alagoas e que traz na íntegra as entrevistas realizadas com Saltiron, José Tributino, Maria José e Zelma Claudino se apresenta como um convite à novas abordagens historiográficas, sociológicas e antropológicas que possam se debruçar sobre os inúmeros questionamentos que ela torna possíveis.
Por fim, gostaria de destacar como o argumento construído ao longo do trabalho, que coloca o cuidado
como justificativa aceitável à época para segregar os doentes de lepra, dialoga com outras análises críticas sobre as políticas de saúde voltadas às doenças crônicas, ao envelhecimento e para pessoas com deficiência. Revisitar através das páginas desse livro as décadas de 1940 e 1950 e a geografia dos indesejáveis
que ela esboça, favorece a compreensão das práticas de condução coercitiva que ainda nos dias de hoje delimitam os espaços em que corpos marcados por raça, gênero e deficiência podem habitar ou por onde podem circular. Ela nos desafia a refletir sobre o momento presente em que experimentamos de forma contundente a austeridade econômica e fiscal no qual a justificativa da redução dos recursos destinados ao sistema público de saúde estreita cada vez mais o limiar em que a universalidade de acesso aos cuidados de saúde pode operar. Em contextos como esse é preciso considerar como precariedade e privilégio estão sempre emaranhados (Block, 2020). Quantas decisões na gestão dos serviços de saúde pública implicam a confinamento dos corpos vulneráveis a espaços onde eles são culturalmente aceitos? E o quão invisível ou talvez oportuna, como sugere Rosana Castro da Silva (2018) em relação à experimentação farmacêutica, essa realidade precária é para quem produz ciência e tecnologia no Brasil e a partir do Brasil?
Olhando especificamente para as pessoas com deficiência nos EUA, Snyder e Mitchell (2006) discutem a condução coercitiva e o confinamento de pessoas em localizações culturalmente aceitáveis sob a mesma justificativa: o seu bem-estar e a garantia de acesso a cuidados especializados. O argumento de Snyder e Michell (2006), assim como a análise de Nayara Alexandra Rodrigues da Silva se detém ao período em que as teorias eugênicas foram fundamentais para consolidação dos projetos de nação. Discorrendo sobre as políticas de segregação estadunidenses, eles problematizam a maneira como os corpos de pessoas com deficiência se tornam objetos da ação do estado a partir de um conjunto de coordenadas biológicas. Nessa perspectiva, pessoas doentes, deficientes e envelhecidas encarnam o que os autores chamam de paradoxo da desvalorização
pois à medida em que se tornam improdutivas
e até mesmo são percebidas como ônus
do ponto de vista econômico se tornam extremamente valiosas como objetos de estudo. Porque é justamente explorando estatisticamente a variabilidade morfofisiológica que nossos cientistas são capazes de reconhecer os desvios prejudiciais da nossa viabilidade enquanto organismos, para que uma vez identificados eles possam ser antevistos e prevenidos. Para os autores a emergência dessa necessidade, de esquadrinhar nos corpos todas aquelas características ou traços defeituosos ou indesejáveis, é uma inscrição do passado no presente, ou seja, uma herança eugênica que vem se enraizando através de formas capilarizadas de segregação.
Atualmente no Brasil, essa prática de segregar para que seja possível cuidar ultrapassa o exercício do poder do estado através das políticas de saúde e de instituições específicas de confinamento. Mais do que uma medida emergencial imposta de cima para baixo, trata-se de um modo de gestão amplamente aceito e até mesmo considerado como o mais viável (ou seria economicamente rentável?) em face do nosso amplo repertório depreciativo e nossa restrita capacidade de engajamento com a variabilidade morfofisiológica. Embora raramente seja percebida como tal, a exclusão rotineira dos espaços de convívio social a que são