Jurisdição Indígena: fundamento de autodeterminação dos povos indígenas na América Latina e no Brasil
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Jurisdição Indígena - Victor Melo Fabrício da Silva
Dedico a realização do presente sonho à minha Esposa Maria Andreia e à minha Filha Ádria – as duas principais razões e inspirações de e para tudo.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela graça da vida.
Aos meus pais José Paulo e Marlene, e aos meus irmãos Simone e Francisco – por tudo que fizeram para que eu chegasse até aqui.
À Professora Doutora Mônica Nazaré Picanço Dias, minha orientadora, a quem tenho grande consideração, respeito e carinho e, principalmente, a quem mui respeitosamente considero como uma grande amiga – por me guiar neste caminho acadêmico digno da importância da Universidade Federal do Amazonas.
À Universidade Federal do Amazonas – pela oportunidade de ser seu aluno e fazer parte da história desta secular Instituição de Ensino, como integrante da primeira turma de Mestrado em Direito.
A todos os parentes e amigos que acompanharam esta e outras jornadas, que sempre me ajudaram e que torceram por mim e por minha família.
PREFÁCIO
A obra "JURISDIÇÃO INDÍGENA: FUNDAMENTO DE AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL" pode ser facilmente descrita como uma ode ao respeito, à humildade e à representação; abrigando, inclusive, a representação do Direito por outras vias, produzido pelas comunidades, através da autorregulação, resultando na norma mais pura e mais legítima. Nada mais adequado poderia ser escrito, utilizando-se das lentes da construção verossímil do Direito do futuro e, mais precisamente, do presente – refletindo os prospectivos daquilo que desejamos para a evolução da ciência jurídica, porém, principalmente, contemplando a essência do que necessitamos para hoje, imediatamente.
Oportunas e justas são as normas, princípios, mecanismos e demais ferramentas jurídicas concebidas pelas pessoas e para as pessoas, que frutificam em prol do ato de servir e não do anseio de controlar, impor e oprimir. Exatamente neste sentido é talhada a presente obra, que objetiva resguardar e proteger o direito à autorregulação, à participação e à consideração. A autodeterminação aqui contemplada já em título, concebe o direito dos povos, comunidades e indivíduos de serem considerados como protagonistas de seus próprios destinos e de serem respeitados em sua autorregulação – basicamente, a garantia à personalidade jurídica de sujeito ativo no seu processo de edificação legal.
Uma obra dessa natureza e com essa intenção deve, antes de tudo, ser comemorada e exaltada, a fim de que do seu conteúdo e da sua existência irradiem mais oportunidades e possibilidades de produção acadêmico-científica a propósito. Movimentos de respeito e observação não interventivos como o desenvolvido neste trabalho, fundamentados na ponderação prudente e na autoconsciência lúcida da capacidade do Direito em causar danos, origina fluxos plenamente positivos para a ciência, sendo fonte de transformações necessárias em nossas instituições, estruturas estatais e, finalmente, na relação das autoridades públicas com o Direito.
Este esforço de pesquisa também pode ser retratado como uma busca por compreensão e não por interpretação das normas reguladoras das comunidades indígenas. Isto significa que o sujeito observador (pesquisadores, juristas e leitores) não possuirá o papel principal desta investigação, já que este configura simplesmente como um garantidor, a reafirmar, assegurar e salvaguardar o direito à existência, à aplicação e ao pleno funcionamento da jurisdição indígena. Nesse mesmo sentido, porém, não se pode negar a importância do seu papel, particularmente na apropriação de suas responsabilidades para com a proteção do direito à autorregulação.
Destarte, o leitor (e o autor), nessa perspectiva, configuram não como intérpretes, já que não há função ou razão no interpretar, mas sim, como mediadores, a contemplar, com reverência, o que é precioso, valorizado, aceito e estabelecido e não a designar o que é. A disposição à autodeterminação naturalmente nasce da necessidade de regulação normativa, da vontade de organização das estruturas e das instituições.
Isto posto, resta necessário, como condição primordial, o reconhecimento dos sujeitos legítimos para a construção do Direito, os quais podem ser identificados como todos aqueles que primariamente o necessitam, já que os usos e costumes – notadamente fontes reconhecidas – nunca pediram ou pedirão permissão para se tornarem efetivos na prática. Para tanto, a compreensão da realidade jurídica das comunidades indígenas e de seus sistemas de autorregulação, fundamentados em elementos valorativos e circunstanciais adstritos à cultura, muito contribuirá para o estabelecimento de fontes de aprimoramento, inclusive, das demais estruturas jusdiversas conhecidas.
Relevante ainda acentuar que o Direito deve se desenvolver sobre alicerces que levem em consideração sensibilidades contextuais (históricas, culturais, socioeconômicas etc.) e, a estas, considerando a presente obra, adiciona-se a sensibilidade jurídica como critério, em relação às estruturas jurídicas construídas localmente, com as quais o jurista se depara, de modo que as estruturas jusdiversas possam conviver em harmonia.
A postura simbolizada por esta investigação conduz o leitor-jurista a um posicionamento respeitoso e moderado, voltado aos debates relacionados aos pressupostos da garantização, da existência e da operacionalidade desses sistemas autônomos jusdiversos. Desse modo, o leitor-jurista ocupa a função de patrono da proteção da jusdiversidade, com o dever de lutar, persuadir e advogar pelo direito de existência dessas ordens.
Reafirma-se, aqui, o direito dos povos indígenas em exercer a própria jurisdição, embasada em seu próprio ordenamento jurídico válido, eficiente e eficaz, em pleno funcionamento. Sob uma perspectiva pluralista e igualitária, esta obra é um convite ao debate no que tange à essência da tão almejada autodeterminação dos povos indígenas, em um exercício de liberdade e regência de suas instituições, em respeito à sua identidade e aos seus valores compartilhados.
Manaus, fevereiro de 2022.
ÁDRIA SAVIANO FABRÍCIO DA SILVA
Mestranda em Direito Internacional na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Profissional Humanitária. Pesquisadora em Direito Internacional Humanitário, Grupos Armados Não-Estatais (NSAG) e Negociações Humanitárias.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
INTRODUÇÃO
1. OS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – ASPECTOS GERAIS DE ONTEM E DE HOJE
1.1 O ACHAMENTO
DO BRASIL
1.2 A CONQUISTA DO BRASIL
1.2.1 Os habitantes de Pindorama antes da invasão portuguesa
1.2.1.1 A cultura e seus aspectos conceituais e antropológicos
1.2.1.2 A riqueza cultural dos povos indígenas
1.2.1.2.1 A arte e a ocupação do território
1.2.1.2.2 Breves apontamentos sobre política, guerra e antropofagia
1.3 A AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
1.4 DA INVISIBILIDADE AO PROTAGONISMO
1.5 QUEM É INDÍGENA HOJE NO BRASIL?
1.6 QUEM É O ÍNDIO
HOJE NO BRASIL?
2. O DIREITO IMANENTE AOS POVOS INDÍGENAS
2.1 PLURALISMO JURÍDICO
2.2 A EXISTÊNCIA E A VALIDADE DE UM DIREITO INDÍGENA
2.3 O DIREITO PENAL INDÍGENA E SUA APLICAÇÃO
2.3.1 Dos delitos e das penas
2.3.2 A jurisdição indígena
2.4 A CULPABILIDADE DOS INDÍGENAS NO DIREITO ESTATAL
2.5 O LUGAR DA JURISDIÇÃO INDÍGENA
3. JURISDIÇÃO INDÍGENA NA AMÉRICA LATINA
3.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
3.2 OS CICLOS DO CONSTITUCIONALISMO PLURALISTA NA AMÉRICA LATINA
3.3 O RECONHECIMENTO DA JURISDIÇÃO INDÍGENA NA AMÉRICA LATINA
3.3.1 Guatemala
3.3.2 Nicarágua
3.3.3 Colômbia
3.3.4 México
3.3.5 Paraguai
3.3.6 Peru
3.3.7 Argentina
3.3.8 Venezuela
3.3.9 Bolívia
3.3.10 Equador
3.3.11 Brasil
3.4 ENTRE A LEI E A JURISPRUDÊNCIA: O QUE É MAIS PROMISSOR PARA A JURISDIÇÃO INDÍGENA NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL?
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
INTRODUÇÃO
Inicialmente, cabe ressaltar que a presente obra buscará, utilizando o procedimento de viés histórico, abordar alguns aspectos da temática indígena julgados relevantes para entender o tema principal ora apresentado: o direito a exercer a jurisdição indígena
, cujo termo é equivalente a justiça indígena
e que pode ser entendido como o sistema jurídico baseado em usos e costumes transmitidos oralmente por séculos dentro das sociedades indígenas, sendo enfatizado neste livro o seu viés penal.
Dessa forma, no primeiro capítulo pretende-se demonstrar, sob uma perspectiva hodierna e descolonialista, quem verdadeiramente ocupou, por primeiro e de forma legítima, o território que hoje é conhecido como o Brasil, trazendo os principais fatos relacionados ao antes
e ao depois
da chegada dos portugueses, com o objetivo de contextualizar sob o enfoque indígena, despertar o interesse da academia para a temática, relacionar os povos indígenas ao conceito de autodeterminação e desconstruir falácias históricas perpetuadas durante séculos, além de (re)descobrir o protagonismo indígena pretérito e atual, conferindo-lhe seu merecido lugar na história.
Tal abordagem se faz necessária pois desde a chegada em nosso País no século XVI, o europeu impôs seu Direito sobre os povos originários, predisposto a ocupar as terras em nome da coroa portuguesa, apropriar-se de todos os bens disponíveis (de tudo que fosse possível auferir lucro, preferencialmente metais preciosos) e, em nome da Igreja Católica, realizar a conversão ao cristianismo dos povos que aqui se encontravam, iniciando-se então, a partir do primeiro desembarque português, a violência ao indígena e à sua identidade, a qual persiste até os dias atuais.
Em seguida, o segundo capítulo abordará o pluralismo jurídico como concepção filosófica, com o objetivo de demonstrar a existência e a validade do Direito indígena e sua aplicação, trazendo relevantes aspectos de viés penal e processual indígenas para enfim situar a jurisdição indígena no ordenamento jurídico brasileiro.
Isso se faz necessário porque, nesse interregno de pouco mais de 521 anos, observa-se, em sua quase totalidade, a aplicação do Direito Indigenista
em detrimento do Direito Indígena
. Diz-se isso diante da política por vezes violenta de conversão religiosa, aculturação e integração dos povos indígenas brasileiros desde o ano de 1500 até o ano de 1988, quando finalmente a atual Constituição Federal – rompendo a tradição das Cartas políticas anteriores¹ (que tão somente impuseram o direito indigenista e visaram proteger as terras ocupadas como patrimônio da União) – instituiu formalmente direitos indígenas em seu art. 231.
Assim, pode-se constatar que até a promulgação da Constituição Federal de 1988 e da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)², os povos indígenas não passavam de mais uma propriedade do Estado brasileiro, sem consciência e sem alma
, servindo tão somente para justificar a propriedade de terras pela União sem o risco de questionamento da comunidade internacional e da sociedade majoritária brasileira. Para reforçar tal argumento, o Estado agregava a tais títulos de propriedade suas políticas públicas precárias, que, além de não contribuir para a dignidade humana desses povos, ainda lhes retirou boa parte da sua autodeterminação³.
Contudo, mesmo reconhecendo alguns avanços na efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil, verifica-se que em grande parte permanece letra morta o previsto na alínea "b) do número
2. do art. 2º da Convenção, em que se determina aos governos que:
promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições".
Por fim, por intermédio do terceiro e último capítulo, serão visitados os ordenamentos jurídicos dos países considerados diretamente envolvidos no constitucionalismo pluralista latino-americano – inaugurado nos países do Sul a partir da penúltima década do século passado – e, por sua vez, os países considerados como os principais expoentes do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, cujas conquistas representam a força motriz necessária para o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas na atualidade.
Nesse sentido, a escolha dos dez países latino-americanos como parâmetro de comparação e estudo – Guatemala, Nicarágua, Colômbia, México, Paraguai, Peru, Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador – deve-se não só ao seu contexto geográfico (como membros dos chamados países do Sul
), mas também ao seu contexto histórico, social e político, representando os territórios invadidos e os povos subjugados pela colonização europeia que agora se levantam de forma mais contundente em busca de uma total libertação, por meio de movimentos, lutas e resistências, com destaque para os esforços de inovação constitucional acima referidos.
Nesse mesmo norte, no predominante contexto latino-americano atual, não há que se admitir supressão de direitos constitucionalmente e internacionalmente previstos (ou sua não efetivação) diante da inoperância burocrática dos Estados (ou simplesmente seu desinteresse), ou ainda as interferências obscuras motivadas por interesses financeiros e/ou estatais de viés aparentemente desenvolvimentista.
Trazendo tais inferências ao contexto constitucional brasileiro, um desses direitos indígenas flagrantemente desrespeitados desde o desembarque lusitano em nosso País e intrinsecamente ligado à autodeterminação é o direito de exercer a jurisdição indígena na resolução de seus conflitos – foco principal deste livro. Assim, vislumbrando-se a