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Revenge Porn: o patriarcalismo em rede
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E-book210 páginas2 horas

Revenge Porn: o patriarcalismo em rede

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Sobre este e-book

Uma das formas de violência de gênero ocorre por meio da interação nas redes virtuais, além do compartilhamento das imagens e vídeos frente às situações que configuram a chamada revenge pornography, bem como outras violações de imagem e privacidade, cujo fator anonimato contribui para a dispersão. A exposição e a objetificação da mulher decorrem da valoração assimétrica atribuída ao que se entende como papéis de gênero.
Seriam, então, os casos de revenge pornography, enquanto manifestação do patriarcalismo no espaço virtual, violências de gênero? A conduta deveria ser criminalizada? Como fazer essa aplicação e controle? A lei penal ainda é um meio de proteção e o direito penal, um campo de exercício de poder que precisa ser ocupado.
Sendo assim, essa violência específica idealmente não existiria ou seria, ao menos, atenuada, se as normas socialmente construídas não fixassem um lugar para a sexualidade das mulheres, associado às ideias de recato e falta de direito ao prazer - e que entendem o corpo feminino como objeto/produto a ser consumido?
Tema plural, complexo e de todos nós -, o livro aborda pontos fulcrais que denotam a construção cultural da sociedade, além de como o patriarcalismo foi naturalizado. Juntamente, observa-se a maneira com que o espaço virtual possibilita que os sujeitos tenham comportamentos julgados inaceitáveis quando num espaço físico, considerando conceitos como cibercultura, ciberfeminismo, construção de identidades e privacidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de fev. de 2022
ISBN9786525228174
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    Revenge Porn - Caroline Vasconcelos Damitz

    A CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADES

    GÊNERO, MULTICULTURALISMO E O VIRTUAL

    A sociedade é formada por pluralidade, é multicultural e complexa, de maneira que os sujeitos são influenciados por símbolos que, contextualizados temporalmente, formam o imaginário social de sua comunidade. Onipresente a essa influência está o poder, que se exercita e legitima através de mecanismos que interferem na produção das subjetividades dos indivíduos, tornando-os cooperantes com o sistema em todas as relações cotidianas. Soma-se a isso a desigualdade social entre os gêneros, como um produto culturalmente universal. Assentado a esse sistema de relações cotidianas está o patriarcalismo, que no transcorrer da história impôs a subordinação do sexo feminino a seus interesses e projetos.

    Para abordar multiculturalismo é necessário situar o que se entende por cultura nesta pesquisa, tendo em vista que o cultural está sempre em um processo de criação e adaptação. A cultura, assim como o gênero, não é algo pronto, acabado e imutável. Aliás, é justamente o fato de que a cultura está em constante metamorfose que dela dinâmica e cíclica.

    A noção de cultura denota o zelo com a alma e o corpo da criança, relaciona-se com a ideia de educação infantil, que tinha como escopo a transformação dessas em cidadãos virtuosos (CHAUÍ, 2003). Nesse sentido, a cultura é o registro coletivo das práticas humanas determinadas no tempo e no espaço e, sendo assim, pode-se afirmar que de todo o ato humano se desprende certa impregnação de cultura (BITTAR, 2012, p. 106).

    Portanto, se todo ato humano é impregnado de cultura, o advento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), em um mundo que é cada vez mais global, permite que várias culturas existam e se comuniquem, gerando, assim, novas culturas. É uma configuração pluriétnica e pluricultural que congloba a diversidade étnica e cultural das populações de alguns países. Dessas múltiplas culturas que se entrecruzam, surge o que se denomina de multiculturalismo - aqui entendido de forma lato sensu, visto que tem nuances e diferentes correntes teóricas. O ser humano é dotado de razão, e, agindo com liberdade de escolha, segundo valores estabelecidos no contexto histórico, constitui-se, assim,

    uma identidade cultural. As várias identidades culturais se afirmam em si, esta é a razão de ser do multiculturalismo. Cada realidade social é composta por múltiplos tipos estruturais de comunidades, onde cada uma delas tem sua identidade cultural, que é comum a todos os indivíduos que a ela pertencem. Identidade esta que é constituída por suas tradições, suas religiões, seus costumes e seus hábitos (LIMA, 2015, p. 154).

    No entanto, o multiculturalismo não é apenas o concatenado de diversas culturas, é maior e mais complexo do que isso. O multiculturalismo também é referido como a era da migração, para autores como Castells, Haas e Muller, ou como superdiversidade, termo adotado por Vertovec (SANTOS, LUCAS, 2015). O multiculturalismo, de forma paralela às lutas sociais de minorias e hipossuficientes sociais, surgiu de toda uma teorização libertária calcada sobre a ideia de diferença que assumiu um lugar destacado nos debates contemporâneos,

    o fato é que o incremento da variedade e da diversidade na composição étnica e cultural de populações de diferentes países no mundo todo é um fenômeno que se agudizou atualmente em função da aceleração dos fluxos causados pelo desenvolvimento tecnológico, especialmente se considerarmos as últimas três ou quatro décadas. E múltiplos fatores tem atuado como elementos propulsores dessa diversidade, tais como o gênero, a sexualidade, as discapacidades, as hipossuficiências socioeconômicas (SANTOS, LUCAS, 2015, p. 30).

    A diferença é o eixo fundante do multiculturalismo. Diferentes culturas, contextos sociais, globalização de produtos, de matéria-prima e migrações, são ações possíveis em um mundo conectado, cuja diversidade é cada vez maior. A mistura de diferentes naturalidades, costumes, temperos, bebidas e crenças resulta em uma pluralidade de culturas, independentemente do local que se está no mundo. Assim, as reações e respostas a diferentes estados de violência e dominação residem, na verdade, na questão da diferença (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 31).

    Dessa forma, não existem soluções simples para as questões da igualdade e da diferença, dos direitos individuais e das identidades de grupo; ou seja, posicioná-los como conceitos opostos significa perder o ponto de suas interconexões. De acordo com Scott (2005), reconhecer e manter uma tensão necessária entre igualdade e diferença, entre direitos individuais e identidades grupais, é o que possibilita encontrarmos resultados melhores e mais democráticos.

    Os sistemas sociais são autorreferenciais porque são capazes de operar com base em suas próprias operações constituintes. Isto é, os sistemas sociais e as consciências estão em estado de interpenetração, sendo cada um condição de possibilidade do outro. Nesse sentido, é possível pensar o sistema patriarcal nessa lógica autorreferencial, visto que ele trabalha a partir da binaridade macho-não-macho ou hetero-homossexual (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 34-35).

    Dessarte, sobreleva-se a necessidade de redefinir conceitos como cidadania e democracia, relacionando-os com a afirmação e a representação, numa perspectiva intercultural que articula as várias óticas de apreciação das diversas culturas e questiona a construção histórica dos convencionalismos paradigmáticos, calcados em estereótipos e discriminações sociais. Dessa perspectiva, tem-se o multiculturalismo emancipatório, que consiste no reconhecimento da diferença e na coexistência ou construção de uma vida em comum, capaz de reconhecer e incorporar essas diferenças¹ (LIMA, 2015, p. 155/156).

    A partir da noção política de dominação, formula-se uma análise que incide, essencialmente, sobre as relações de poder, entendendo as reações e respostas como acontecimentos concretos, baseados numa razão prática de liberação de ferrolhos repressivos impostos por culturas/narrativas/formações discursivas hegemônicas invisibilizadoras de singularidades (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 34), o que torna tão desafiador o trabalho de globalizar relações entre pessoas com o mesmo sucesso com que se fez com produtos e serviços.

    Há um exercício de poder que mantém os sujeitos com essa lógica a qual vê o diferente com maus olhos e é incapaz de compreender o outro. Embora tenha-se evoluído, em termos formais, no que tange a proteção dos indivíduos, o mesmo não ocorreu em aspectos materiais, porque a positivação normativa

    de uma quantidade significativa de dispositivos voltados à proteção dos dominados e violentados, as comunicações do sistema patriarcal não foram interrompidas, continuando a atuar fortemente nos processos de dominação e violência. Há um inconsciente patriarcal diluído numa normalidade supostamente igualitária (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 36).

    Nesse sentido, em um sistema simbólico de identificações culturais, no qual a masculinidade é o referencial do mundo - sobretudo citando mercado de trabalho, renda, poder, conhecimento e ciência -, a feminilidade é associada a serviços domésticos, sexuais, na criação dos filhos e em empregos relacionados a cuidado e organização. Essas situações de dominação são amplamente objetivas [...] pois os homens como grupos exercem um fortíssimo controle sobre as possibilidades existenciais das mulheres (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 36).

    Cada grupo cultural tem seus indivíduos formados por influências, por conseguinte, as pessoas e/ou instituições que detém o monopólio dos mecanismos de poder, têm como consequência correlata o poder de produzir as subjetividades desses indivíduos, tornando-os cooperantes voluntária e tacitamente com seus interesses. Em outras palavras, a pessoa inserida em uma determinada comunidade vai reproduzir a essência do grupo,

    Seus valores, sua identidade, que moldou-se a partir do universo cultural, presente no meio ambiente social do qual faz parte. Assim, vemos que, em virtude da formação da identidade de cada ator social, moldada a partir de informações culturais, religiosa e axiomáticas, o grupo social pode, também, formar-se de sujeitos de cultura narcisista, desprovido de aceitação do multicultural (LIMA, 2015, p. 152).

    A identidade trama o modo de ser do sujeito e a constituição da identidade é um campo de poder acirradamente disputado. Disputa essa, que se tornou sinuosa nas sociedades contemporâneas, nas quais os mecanismos de poder se consolidam pela integração cooperante dos indivíduos prescritivos do sistema. Os sistemas das sociedades contemporâneas modelaram subjetividades flexíveis, por meio do adestramento do indivíduo que, no seu processo identitário, se autoafirma à medida que se adapta funcionalmente aos imperativos requeridos pelas instituições.

    Para Ruiz (2003), as identidades do indivíduo e do sujeito se diferem. De acordo com o autor, o indivíduo se sujeita flexivelmente aos referenciais externos elaborados pelo modelo social que configura sua identidade e adapta sua prática aos objetivos do sistema, sem questionar ou refletir sobre o imposto. O sujeito, por sua vez, constrói seus próprios referenciais – igualmente simbólicos – para se autodefinir como pessoa, o que lhe possibilita direcionar sua prática de modo autônomo.

    O autor (RUIZ, 2003) entende que essa diferenciação no conceito de indivíduo e sujeito é importante, pois o caminho natural de cada um é tornar-se sujeito e, dessa forma, não se moldar de forma absoluta ao poder legitimado pelos símbolos vigentes de sua época. O indivíduo é livre para escolher entre uma diversidade de opções postas para ele, mas não por ele. E, assim, o sujeito desenvolve sua personalidade e o seu modo de entender a sociedade.

    A identidade é criada, desenvolvida e consolidada por meio de elementos simbólicos e trama-se na interação do sujeito com a realidade. Ou seja, o sujeito só existe a partir do momento em que constrói sua autoconsciência de sujeito. Os mecanismos de poder contemporâneos desenvolveram formas de identidade (simbólicas) que têm como objetivo básico a identificação dos indivíduos com os princípios programáticos do sistema, que privilegiam a dimensão econômica.

    Nessa senda, Seyla Benhabib (1999) elaborou sua própria concepção de sujeito, o self narrativo, em que reflete como ser constituído por discursos, sem ser determinado por eles. Uma das primordiais tarefas da teoria feminista contemporânea é encontrar respostas para essa reflexão (CYFER, 2015, p. 50). A autora afirma que, em seu modelo narrativo, não há distinção entre self e identidade. A diferença atribuída a esses conceitos deve-se ao preconceito pós-moderno com o conceito de identidade, já que presume que essa seja uniforme e estável, enquanto o self seria fragmentado e provisório.

    Diante disso, o objetivo de Benhabib é, justamente, contestar esse preconceito, sustentando que identidades sociais, como a mulher, não são, necessariamente, a ratificação de uma essência universal feminina (BENHABIB, 1999, p. 353). A construção do self narrativo parte da premissa de que os sujeitos são constituídos de histórias em que são autores e ouvintes, de que se nasce em uma teia de relações e histórias humanas (ARENDT, 2010, p. 194). Dessa forma, as relações humanas são feitas de interações e dessas resultam histórias e experiências. Assim a identidade será constituída, de acordo com a maneira com que o sujeito reage, com as atitudes tomadas em relação a esse horizonte (BENHABIB, 1999, p. 346).

    Seria o mesmo dizer que o sujeito se torna o que é por meio das suas reações às experiências que lhe acontecem. O sujeito, portanto, não se define por um núcleo coerente e estável de significados que já está pronto antes de nascermos, mas sim pela capacidade de atribuirmos significado à nossa história de vida, à nossa capacidade de narrar (CYFER, 2015, p. 53), muito embora essa capacidade seja sempre exercida no contato intersubjetivo de um contexto em que já há vários significados socialmente validados (BENHABIB, 1999, p. 346).

    Todo significado é passível de ressignificação. Benhabib acredita que, para haver ressignificação e/ou resistência dos simbolismos, é preciso que haja comunicação entre aqueles que os interpretam. A ressignificação resulta da expressão de sua performance, que desestabiliza os padrões hegemônicos, a despeito da intenção do sujeito engajado na performance (CYFER, 2015), há de se considerar, inclusive, que o interesse daquele que interpreta sempre estará presente na nova significação.

    O indivíduo é influenciado nas interações humanas pelo dominador, por aquele que detém o poder, ainda que temporariamente. O fundamento da dominação, portanto, repousa em disposições sintonizadas com a estrutura da dominação e com o relacionamento de cumplicidade que o dominado mantém com o dominante. Esse cenário somente pode ser rompido por meio da transformação radical das condições sociais de produção daquelas disposições que conduzem os dominados a tomar para si a perspectiva dos dominantes (BURAWOY, 2010, p. 149-150).

    Entretanto, vale ressaltar que o conceito, como estabelecido pela autora, é neutro. Por esse motivo, prejudica os estudos sobre desigualdade de gênero, uma vez que negar a influência de construções como o patriarcalismo, na produção da narrativa, é simplificar as relações entre gênero e poder. Logo,

    o self narrativo constitui-se na própria ação entendida como um processo comunicativo que perdura durante toda a existência. Nesse processo, somos narradores de nossa própria história, mas isso não nos dá total domínio sobre quem somos ou seremos, pois nós não somos os únicos autores dessas narrativas, as quais são construídas em relações intersubjetivas em que nossos interlocutores interpretam nossa fala e tentam conciliar nossa história de vida com a narração de sua própria história. Isso significa que ninguém é livre para inventar a si mesmo, pois nossas narrativas afetam e condicionam as das demais pessoas e vice-versa (CYFER, 2015, p. 53-54).

    A sociedade é plural, multicultural e conectada. Dessa forma, a teia de relações e histórias humanas tem as mesmas características e a todo o momento se comunica e se modifica. Isso decorre da condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir (ARENDT, 2010, p. 16).

    Nesse sentido, o feminismo é um agente ressignificador das percepções de mundo, que encontra na Internet um importante canal de comunicação e militância. O ambiente em rede, descentralizado, diverso e horizontal, é propício para a difusão de vozes feministas. O ciberfeminismo permite a conexão de mulheres separadas territorialmente, mas protagonistas unidas na luta contra o patriarcado e discutindo a inserção da mulher profissional e consumidora de Tecnologias da Informação (GINDRI; BUDÓ, 2016, p. 15).

    Dessarte, aliada à produção de subjetividades por meio dos simbolismos, os sujeitos têm a própria capacidade de narrativa. Portanto, a identidade será construída por aqueles símbolos que perfazem o imaginário social vigente e pelas atribuições dadas pelo sujeito enquanto parte de sua narrativa. Essa própria capacidade narrativa é para Ruiz, a possibilidade de o sujeito de auto constituir-se a partir de um referencial previamente dado. Ou seja, a subjetivação de cada indivíduo influenciará suas experiências e nessa capacidade narrativa, encontra-se o que o autor chama do sem fundo humano, ou

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