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Um país chamado Brasil: A história do Brasil do descobrimento ao século XXI
Um país chamado Brasil: A história do Brasil do descobrimento ao século XXI
Um país chamado Brasil: A história do Brasil do descobrimento ao século XXI
E-book439 páginas9 horas

Um país chamado Brasil: A história do Brasil do descobrimento ao século XXI

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Sobre este e-book

Um guia para entender o nosso país
Um país chamado Brasil apresenta um amplo painel da nossa história, oferecendo uma visão da nossa formação política, econômica e cultural em sua totalidade. Marco Antonio Villa combina uma vasta bibliografia — associando autores clássicos e a moderna historiografia brasileira — com uma
apresentação sintética e precisa dos diversos momentos da nossa história. O autor não perde de vista a compreensão das transformações que ocorrem no mundo entre os séculos XVI e XXI, inter-relacionando essas modificações com o processo interno brasileiro, numa feliz combinação do particular com o geral.
Ricamente ilustrado, esta é uma leitura que vai interessar a todos os públicos, do leigo ao intelectual — sem abandonar o rigor científico de quem foi professor durante toda uma vida. Villa evita simplificações que empobrecem a compreensão dos diversos momentos da nossa história. Apresenta um Brasil plural, com suas contradições, acertos e erros. Distancia-se do anacronismo presente em análises vulgares de complexos processos históricos. Não faz concessão. Pelo contrário, tem como perspectiva analítica o entendimento dos acontecimentos e sua correlação com o movimento da história. Um livro essencial para quem quer entender o presente e pensar o futuro tendo como base como se construiu esse país chamado
Brasil.
IdiomaPortuguês
EditoraCrítica
Data de lançamento25 de nov. de 2021
ISBN9786555355550
Um país chamado Brasil: A história do Brasil do descobrimento ao século XXI

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    Livro conciso na história do Brasil, muito bom mesmo para se ter um panorama dos acontecimentos históricos no Brasil até o início do século XXI.

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Um país chamado Brasil - Marco Villa

PARTE I

Colônia

CAPÍTULO 1

Por mares nunca dantes navegados

A descoberta das terras americanas pelos europeus não foi resultado de uma aventura isolada. A Europa vinha explorando o oceano Atlântico desde o princípio do século XV. Devido a uma série de mudanças que ocorriam no Velho Mundo, os portugueses foram os primeiros a enfrentar o oceano, iniciando a expansão marítimo-comercial, que resultou na conquista da América pelos europeus. A caravela, navio de vela latina e pequeno calado, constituiu a embarcação por excelência da exploração e descoberta do Atlântico. E também o navio rápido próprio para levar e trazer informações.[2]

No início do século XV, havia um importante comércio de especiarias proveniente do Oriente (canela, cravo, pimenta, gengibre, noz moscada), que era monopolizado por Gênova e Veneza através do mar Mediterrâneo. Para romper esse domínio, um caminho possível seria buscar outra via marítima, o oceano Atlântico. As informações eram muito imprecisas a respeito da costa africana e de sua cartografia desconhecida pelos europeus.

Muito cedo, Portugal reuniu as condições para se lançar a essa epopeia. O reino nasceu em 1139, separando-se do que mais tarde seria a Espanha. No século seguinte, em 1249, os muçulmanos foram expulsos de Portugal. Desde o século XII, Lisboa e Porto eram paradas obrigatórias na rota entre o norte da Europa e o Mediterrâneo, o que logo fez surgir uma influente burguesia mercantil nessas cidades. O processo se completou em 1385, quando foi reafirmada, no campo militar, a independência portuguesa em relação ao reino de Castela e o mestre de Avis (Dom João I) assumiu o trono:

Com a revolução de 1383-1385, a grande nobreza tradicional foi, temporariamente, abatida, porque tomara o partido castelhano e fora vencida na guerra. A influência dos condes […] foi, segundo parece, substituída pelo predomínio dos burgueses interessados numa política de paz e de expansão das atividades comerciais e de juristas, imbuídos do pensamento cesarista do direito romano, e, portanto, defensores do reforço da autoridade real.[3]

Em 1415, Portugal tinha aproximadamente 1 milhão de habitantes. Destes, não chegavam a 60 mil os que moravam em Lisboa, capital e maior cidade do reino. A maior parte dos portugueses vivia da agricultura e os litorâneos dedicavam-se à pesca e à extração de sal. Dom João I, que governou Portugal de 1385 a 1433, iniciou a expansão de seu país em 1415, conquistando Ceuta, cidade do Norte da África, onde esperava obter ouro, escravos e especiarias; e também o domínio do estratégico estreito de Gibraltar, constantemente atacado por piratas árabes. Ceuta era importante, pois de lá partiam caravanas que atravessavam o Saara chegando até o Senegal para comercializar ouro.

Porém, se a conquista de Ceuta foi um êxito militar, acabou se transformando em um desastre econômico, pois os muçulmanos desviaram as rotas comerciais para outras localidades do Mediterrâneo sob seu domínio. A solução encontrada por Portugal foi a de deslocar as suas explorações comerciais, das margens do Mediterrâneo, para o oceano Atlântico. Portanto era preciso avançar pelo oceano Atlântico em busca da terra dos negros – nome pelo qual era conhecida a África subsaariana.

A exploração do Atlântico, após o fracasso de Ceuta, passou a concentrar as atenções portuguesas. Papel importante nessa iniciativa teve o infante Dom Henrique, que, em 1419, foi nomeado governador perpétuo do Algarve, no Sul de Portugal. Desde 1421, por determinação do infante, uma caravela partia anualmente para as proximidades do cabo Bojador, considerado o início do chamado Mar Tenebroso, para reconhecimento do oceano Atlântico.

Em 1434, Gil Eanes conseguiu ultrapassar o cabo e, em vez de um mar repleto de monstros, como se acreditava na época, encontrou um oceano tranquilo, de fácil navegação. Dois anos depois, Afonso Gonçalves Baldaia chegou ao que se denominou Rio do Ouro, uma região próxima à Guiné, onde obteve uma pequena quantidade de ouro em pó e dez escravos negros. Era a primeira vez que a Europa recebia cativos através do Atlântico:

Cerca de 150 mil escravos negros foram provavelmente capturados pelos portugueses no período de 1450 a 1500, e como eram frequentemente obtidos nas guerras intertribais travadas no interior, o aumento do tráfico escravista presumivelmente acentuou o estado de violência e insegurança – ou, pelo menos, não contribui para atenuá-lo. Os chefes e dirigentes africanos eram os que mais se beneficiavam do comércio com os portugueses, […] eram quase sempre sócios condescendentes do comércio escravista.[4]

Quanto mais avançavam para o sul do Atlântico, mais se preocupavam com o controle das regiões recém-encontradas, temendo a concorrência de outros reinos europeus. O papa era então considerado no Ocidente a maior e mais poderosa autoridade do mundo, e a ele os governantes portugueses recorreram diversas vezes em busca das bulas papais que confirmassem as posses de Portugal. Em 1454, o Papa Nicolau V concedeu ao reino português o direito de conquista das terras e mares da África, proibindo todos os cristãos de navegar, pescar e comerciar nessa região sem autorização da Coroa portuguesa.

Em 1443, chegaram ao arquipélago de Arguim, que se transformou em importante base de apoio à expansão. E, pela primeira vez, Portugal criou uma feitoria ultramarina, organizando o comércio, protegendo suas conquistas territoriais e impondo o monopólio real – qualquer mercadoria seria vendida ou trazida da África somente com autorização real e pagamento de imposto.

Além do reconhecimento do litoral, os portugueses iniciaram a exploração do continente utilizando-se do rio Senegal, mas encontraram a resistência dos povos nativos e tiveram de restringir seu domínio à faixa litorânea. Essas dificuldades levaram os portugueses a colonizar as ilhas atlânticas – a da Madeira e o arquipélago dos Açores –, onde iniciaram o plantio da cana-de-açúcar, além da criação de gado, e que serviram como bases para novas expedições.

A segunda fase da expansão, voltada para a busca do caminho marítimo para as Índias, foi comandada por Dom João II, chamado de Príncipe Perfeito, rei de Portugal a partir de 1481. Em 1479, negociou com o reino de Castela um acordo diplomático – o Tratado de Toledo –, obtendo a exclusividade na exploração do litoral africano em troca das ilhas Canárias.

Nesse momento, Portugal já era uma grande potência colonial, produzindo, nas ilhas atlânticas, açúcar e trigo e desenvolvendo a pecuária. O rei se transformou num grande empresário: com os lucros da expansão ampliava as explorações marítimas para além dos territórios conquistados. Portugal continuou explorando o litoral e tentando algumas incursões pelo interior do continente africano. Em 1487, partiram do reino Pero de Covilhã, em busca de um caminho terrestre para as Índias, e Bartolomeu Dias, comandando uma expedição por via marítima que, com a circum-navegação da África, pretendia alcançar o mesmo objetivo. Covilhã, que além do português dominava o castelhano e o árabe, atingiu sua meta: foi o primeiro português a chegar à Índia. Antes, ainda no Egito, enviou dois mensageiros a Dom João II com as informações sobre sua viagem.

As informações de Covilhã sobre o caminho para as Índias chegaram a Portugal quando Bartolomeu Dias já havia regressado, após ultrapassar o cabo das Tormentas, em 1488, no extremo sul da África, que, desde então, passou a se chamar cabo da Boa Esperança. Foi uma viagem de seis meses e por mais de 2 mil quilômetros pelo litoral africano.

Portugal havia aberto o caminho para o Oriente, para as fontes produtoras de especiarias e as áreas extrativas de ouro. Acredita-se que nos anos seguintes tenham ocorrido viagens exploratórias com o objetivo de encontrar uma rota mais eficiente para dobrar o cabo da Boa Esperança do que a seguida por Bartolomeu Dias, que desceu a costa sudoeste da África lutando contra os ventos alísios de sudeste. Isso explicaria por que Vasco da Gama seguiu a rota que de fato seguiu, e que foi, de modo geral, a que os navios portugueses da Carreira da Índia com destino ao Oriente seguiram durante séculos. Consistia em cruzar o equador no meridiano de Cabo Verde e apanhar os ventos constantes de oeste depois de dobrar para o sudeste na zona dos ventos favoráveis do trópico de Capricórnio. Essa nova rota era completamente diferente do curso seguido por Bartolomeu Dias em sua viagem de ida, em 1487, e só pode ter sido desenvolvida, podemos supor, a partir da experiência adquirida em outras viagens de que não temos registro.[5]

Em 8 de julho de 1497, partiu de Lisboa uma armada de quatro navios comandados pelo almirante Vasco da Gama: era filho de um funcionário régio que havia sido vedor da casa de Afonso V e depois alcaide de Sines. Era, portanto, um membro da pequena nobreza burocrática. É a primeira vez que um nobre é escolhido para comandar uma viagem marítima.[6] Ninguém sabia quanto tempo levaria a viagem, e muito menos se os navegadores regressariam. Os portugueses, que durante setenta anos desvendaram os segredos do Atlântico, agora iriam aventurar-se para além do cabo da Boa Esperança.

Em março de 1498, a expedição encontrava-se em Madagascar e, onze meses após deixar Lisboa, Vasco da Gama chegou a Calicute, na Índia. A cidade, então a maior da costa ocidental da Ásia, era um movimentado porto que centralizava o comércio de especiarias de toda a região. O soberano da cidade comercializava, havia décadas, com os árabes. Estes transportavam as mercadorias de Calicute para Ormuz, Áden e o mar Vermelho, até chegar aos portos do Mediterrâneo oriental, de onde eram levadas para a Europa pelos comerciantes italianos. O soberano indiano recebeu Vasco da Gama com frieza, pois os portugueses eram concorrentes dos árabes e não lhe interessava romper uma aliança longeva. Sem qualquer acordo comercial, após três meses de permanência, o almirante português partiu de Calicute levando uma pequena carga de especiarias.

Em 8 de setembro de 1499, Vasco da Gama chegava a Lisboa, sendo recebido por Dom Manuel, primo e sucessor de Dom João II. Dos 170 homens que haviam partido na expedição, apenas 55 voltaram vivos. A viagem, porém, foi considerada um sucesso, apesar do pequeno volume de especiarias que os sobreviventes trouxeram. Para estabelecer uma rota regular de comércio com Calicute, Portugal construiria, no caminho para a Índia, várias fortalezas que serviriam de pontos de apoio às expedições e à conquista das zonas fornecedoras de especiarias. Assim, no reinado de Dom Manuel, a transformação tinha se completado. A corte era verdadeiramente uma grande casa de negócio, e a geral aspiração consistia em haver parte, maior ou menor, nos lucros da Índia.[7]

É provável que em 1484 o genovês Cristóvão Colombo tenha apresentado a Dom João II seu plano de atingir as Índias pelo Ocidente – e não pela circum-navegação da África. Ficou aproximadamente um ano em Portugal, mas não obteve o apoio real. Anos depois, Colombo conseguiu, na Espanha,[8] recursos que possibilitaram a expedição para comprovar sua tese. Em 12 de outubro de 1492, comandando três navios, chegou à América, certo de que havia descoberto o caminho atlântico para as Índias. O reino de Castela já havia enviado expedições ao Atlântico entre 1402 e 1405, conquistando as ilhas Canárias, mas nenhum empreendimento marítimo importante antecedeu a viagem de Colombo. Ao regressar, Colombo aportou em Portugal, antes de chegar à Espanha, e comunicou ao rei português a sua descoberta. Dom João II alegou então que a Espanha desrespeitara o Tratado de Toledo, e passou a reivindicar para si as novas terras. Ao mesmo tempo, mobilizou seu exército para atacar o reino vizinho e preparou uma expedição com o intuito de chegar às terras encontradas por Colombo.

Diante da possibilidade de guerra, iniciaram-se as negociações diplomáticas entre os dois reinos. O Papa Alexandre VI resolveu o conflito mediante a bula Inter Coetera, de 3 de maio de 1493, estipulando que seriam espanholas as terras localizadas a cem léguas a oeste da ilha dos Açores ou de Cabo Verde. Embora tal divisão não afetasse o que Portugal havia conquistado, Dom João II exigiu novo acordo que garantisse a parte de sua Coroa nas terras encontradas e seu domínio sobre o Atlântico sul. Depois de nova ameaça de conflito militar na península Ibérica, Portugal e Espanha chegaram a um novo acordo, em 7 de junho de 1494, na cidade castelhana de Tordesilhas:

Determinava o Tratado de Tordesilhas que a demarcação das 370 léguas a oeste de Cabo Verde seria feita conforme resolvessem os pilotos, astrólogos e marinheiros das duas partes interessadas, que dentro dos dez meses seguintes à sua assinatura fossem àquelas ilhas, e daí partissem, em duas ou quatro caravelas, até o ponto desejado, que seria assinalado por graus de sol ou de norte, ou por singradura de léguas. Embora fossem nomeados os representantes de Portugal e Espanha que deveriam desempenhar essa missão, foi adiada a sua partida, mudado o prazo de seu cumprimento, prorrogada, e, afinal, esquecida aquela obrigação, por conveniência, sucessivamente das duas monarquias interessadas.[9]

Durante muitos anos, Portugal usou o arquipélago dos Açores como base para explorar o Atlântico sul. É provável que alguns navios tenham sido enviados ao oeste do arquipélago em missões exploratórias. Além disso, o governo português insistiu para que se ampliasse para 370 léguas o limite previsto na bula Inter Coetera, num claro sinal de que desconfiava da existência de terras para além daquela linha. A rota de Vasco da Gama e sua grande distância do litoral sul-africano podem ser indícios de que Portugal procurava terras a oeste da África.

Desde 1499, logo após o regresso de Vasco da Gama, Portugal começou a preparar uma grande armada – a mais poderosa desde o início da expansão marítima – com treze navios e 1.200 homens (marinheiros, soldados, padres, tradutores, médicos). Foram selecionados os navegadores mais experientes, construídos os navios mais resistentes, que suportassem o alto-mar, aproveitando a força dos ventos e transportando uma centena de homens e carga (armas, lenha, mantimentos, água) para um ano de viagem. O comando da expedição foi dado ao almirante Pedro Álvares Cabral, de origem nobre, considerado bom diplomata e valente militar.

Partiram em ٨ de março. No dia ٢٣, próximo ao arquipélago de Cabo Verde, um navio naufragou. Em 21 de abril, depois de quarenta e cinco dias navegando o mais distante possível do litoral africano, notaram os primeiros sinais de terra: ervas marinhas e aves aquáticas. Conta Pero Vaz de Caminha, cronista da expedição, em sua carta ao rei: Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao monte alto o capitão pôs o nome – o Monte Pascoal, e à terra – a Terra de Santa Cruz.[10]

No dia 23, pela primeira vez, os portugueses desceram à terra. Às dez horas da manhã, segundo Caminha, avistaram homens que andavam pela praia,

obra de sete ou oito […]. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. […] Traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.[11]

O contato com os indígenas foi difícil, pois os intérpretes da expedição, especialistas em idiomas asiáticos e africanos, não compreendiam a língua dos tupiniquins.

No domingo, dia 26, Frei Henrique de Coimbra rezou a primeira missa, auxiliado por oito capelães, um vigário e oito frades franciscanos. No mesmo dia, Cabral enviou um navio a Portugal com a notícia de sua chegada àquelas terras, acompanhado de um indígena:

É interessante notar que, antes mesmo da viagem de Pedro Álvares Cabral, antes, portanto, que o Brasil fosse oficialmente revelado à Europa, já os habitantes do nosso litoral eram conduzidos ao Velho Mundo. De fato, Vicente Pinzón, que tocou nas costas brasileiras em 1499, nas alturas da foz do Amazonas (que ele chamou Maranhão), levou consigo 36 índios para a Europa, dos quais chegaram, apenas vivos, vinte, tendo os outros morrido durante a travessia. Diogo de Lepe, que chega ao litoral do Brasil logo depois de Pinzón e, também, um pouco antes de Cabral, arrebanha igualmente, como escravos, vários índios e os entrega, em Sevilha, ao bispo João da Fonseca.[12]

Em 2 de maio, Cabral partiu para a Índia, chegando a Calicute em 13 de setembro. Lá permaneceu até dezembro. Teve confrontos com os habitantes da cidade. Em um deles morreu Pero Vaz Caminha. Na viagem do Brasil à Índia naufragaram outros três navios, um deles comandado por Bartolomeu Dias, justamente na passagem pelo cabo da Boa Esperança.

A volta a Lisboa era ansiosamente esperada. Dos treze navios que partiram, sete voltaram. Cinco deles estavam carregados de especiarias; dois estavam vazios; os outros seis tinham se perdido no mar. Sinos foram tocados, e procissões foram organizadas pelo país. Dentro da corte portuguesa, os vereditos a respeito da viagem de Cabral eram ambíguos. Havia um forte grupo que acreditava que o preço fora alto demais, as distâncias, muito grandes. O rei Dom Manuel tinha investido pesadamente no empreendimento, e se os navios carregados haviam promovido um belo retorno, a perda de vidas lançava uma sombra sobre ele. A descoberta de terras a oeste foi considerada interessante, mas não significativa.[13]

Portugal passava então a ter seu quinhão na América. Como designar a nova terra? Foram muitos os nomes:

Ilha de Vera Cruz (1500), Terra Nova (1501), Terra da Vera Cruz ou do Brasil (1503), Terra de Santa Cruz (1503), Ilha da Cruz (1505), Terra dos papagaios (1501), Terra do pau-brasil (1503), Terra do Brasil (1505), Terra Santa Cruz do Brasil (1527) e, pelo imperativo do mínimo esforço, simplesmente Brasil – e os nomes que andaram a figurar em mapas, cartas e atos oficiais no primeiro quartel do século XVI.[14]

Cronistas que escreveram os primeiros livros sobre a colônia portuguesa na América preferiram outra explicação para a permanência da denominação Brasil, em substituição a Santa Cruz. Seria obra do demônio, que, segundo o Frei Vicente do Salvador, trabalhou [para] que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil. Por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja.[15]

CAPÍTULO 2

Terra brasilis

A datação da ocupação humana do continente americano é um tema controverso. Acredita-se que as primeiras levas de humanos tenham atravessado o estreito de Bering – entre os continentes da Ásia e Europa – há mais de quinze mil anos. É a hipótese mais aceita. Assim, o território foi sendo povoado no sentido norte-sul. O que chamamos hoje de Brasil foi sendo ocupado de forma muito distinta entre 11.500 e 13 mil anos atrás. Por meio da arqueologia, desde o século XIX, foram realizados estudos sobre esse processo, identificando vestígios materiais que acabaram preservados e que possibilitaram encontrar informações sobre o tipo de população, e seus hábitos alimentares e suas técnicas de cultivo e domesticação de animais. E, por meio da arte rupestre, é possível analisar formas de expressão dos primeiros habitantes do Brasil. São muito conhecidas as inscrições do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato, na Serra da Capivara, no Piauí, motivo de intensas polêmicas sobre a datação dos vestígios.

No Sul e Sudeste do Brasil os sítios arqueológicos mais antigos são os sambaquis construídos com restos de moluscos. Desde o Rio de Janeiro até o litoral norte do Rio Grande do Sul, essas populações guardavam as valvas dos mariscos mais abundantes (ostra, mexilhão, berbigão), acumulando-as em plataformas sobre as quais se instalavam suas residências e sepultavam seus mortos. Enquanto muitas apresentam tamanho modesto (algumas dezenas de metros de diâmetro e poucos metros de altura), outras alcançam centenas de metros de comprimento e até mais de 30 metros de altura.[16]

Do Centro-Oeste pouco se conhece. É provável que a ocupação humana tenha ocorrido há cerca de oito mil anos. No caso do Pantanal, as especificidades da região, apesar da riqueza que facilita a agricultura, caça e pesca, dificultaram a ocupação permanente. No Nordeste é possível datar a presença humana desde nove mil anos atrás: são os caçadores e coletores. E nos últimos quatro mil anos, com a fixação mais permanente em um território desenvolvendo a horticultura e a cerâmica. Na região Norte, a ocupação ocorreu por volta de dez a onze mil anos atrás de acordo com vestígios encontrados. Destacam-se a cultura marajoara e a sua cerâmica: os marajoaras parecem ter sido um caso relativamente raro: uma sociedade complexa que quase não dependia da agricultura.[17]

Quando da chegada dos europeus, espalhava-se pelas áreas litorâneas e no interior, neste caso próximo aos rios, o grupo linguístico dominante que ficou conhecido como tupi-guarani. Desenvolviam o cultivo da terra, além da caça e pesca, utilizando-se da coivara:

Agricultura praticada em pequenas clareiras abertas na mata; a madeira cortada e seca é queimada no final da estação seca, e as cinzas servem de adubo para os solos tropicais geralmente pobres; as maiores árvores são preservadas, proporcionando sombra às plantas jovens e diminuindo o impacto das chuvas, para evitar a erosão; […] depois de três ou quatro anos, a terra se esgota, e a roça é abandonada por outra, aberta a certa distância; a mata se recupera aos poucos nas antigas roças […] a agricultura de coivara permite regenerar a mata dentro de trinta anos.[18]

As sociedades do litoral, primeira a entrar em contato com os europeus, também são as primeiras a desaparecer: bem no começo do século XVIII, já não subsiste uma única tribo tupi em toda a faixa costeira.[19]

Não há consenso sobre o total da população indígena em 1500. As estimativas variam de 1 a 5 milhões de habitantes. A polêmica se estende pelo conjunto das três Américas. Com números variando desde 8,4 milhões até 112 milhões, o que parece um exagero. Nas terras baixas da América do Sul as estimativas vão desde 1 milhão até pouco mais de 11 milhões.[20] No caso do atual território do Brasil – com a possível exceção da cultura marajoara –, as diversas civilizações indígenas estavam muito distantes do desenvolvimento das forças produtivas e do aparelho estatal e seus correlatos do que os espanhóis encontraram no México e Peru. Basta recordar que a capital asteca, Tenochtitlán, em 1521, a maior cidade da América antiga, no momento da conquista corteziana, tinha uma população estimada entre 80 mil e 200 mil habitantes – sem incluir as zonas adjacentes, pois neste caso atingia 700 mil –, isto quando somente quatro cidades europeias passavam de pouco mais de 100 mil moradores, como Paris, Nápoles, Veneza e Milão, e a maior cidade espanhola, Sevilha, alcançava 45 mil habitantes.[21]

Desde 1500 é possível encontrar referências à exploração do pau-brasil, a primeira atividade econômica desenvolvida pelos europeus no território. Gaspar de Lemos, que participou da viagem de Cabral, ao retornar a Portugal noticiando a Dom Manuel a descoberta das terras na América, levou um pequeno carregamento da madeira. Chamado Ibirapitanga (madeira vermelha) pelos indígenas, o pau-brasil era usado pelos nativos para tingir penas e fazer arcos para flechas. Conhecido dos europeus desde a Idade Média, era comercializado pelos árabes, que o traziam do Oriente, e era usado no tingimento de lã, seda e algodão, já com o nome pau-brasil. O corante era extraído do pó das toras que, após ser misturado com água, ficava fermentando durante algumas semanas. Tornava possível tingir os tecidos com cores que variavam desde o marrom, púrpura e o castanho até rosa.

Na ausência de pedras e metais preciosos ou de especiarias, restou aos portugueses explorar o pau-brasil. A exploração era realizada por meio de uma concessão real. O comerciante alugava ou comprava um navio, contratava marinheiros e partia para uma viagem de vários meses. Uma vez no litoral, utilizava-se a mão de obra indígena, que, armada de machados e foices, derrubava as árvores de pau-brasil e retirava sua casca, aproveitando somente o miolo onde se concentrava o corante natural. Os índios cortavam toras de aproximadamente 2,20 metros de comprimento, as amontoavam e as transportavam para a praia, pois não havia animais de carga (bois ou cavalos). Era um processo lento. Em 1503, Américo Vespúcio chegou até provavelmente o Cabo Frio onde foi levantada uma fortaleza, um dos primeiros estabelecimentos portugueses na Terra da Santa Cruz. Aí levaram os expedicionários cinco meses, carregando as naus de pau-brasil.[22]

A madeira era depositada nas feitorias (armazéns fortificados) que se espalharam pela costa. Em pagamento pelo trabalho, os nativos recebiam produtos europeus numa transação comercial chamada escambo – ou seja, não se usava dinheiro, mas mercadorias para comprar outras mercadorias. É o que conta o viajante francês Jean de Léry, calvinista, que esteve por aqui no século XVI:

Os selvagens, em troca de algumas roupas, camisas de linho, chapéus, facas, machados, cunhas de ferro e demais ferramentas trazidas por franceses e outros europeus, cortam, serram, racham, atoram e desbastam o pau-brasil, transportando-o nos ombros nus às vezes de duas ou três léguas de distância, por montes e sítios escabrosos até a costa junto aos navios ancorados, onde os marinheiros os recebem. Em verdade só cortam o pau-brasil depois que os franceses e portugueses começaram a frequentar o país.[23]

Com o tempo, os próprios nativos foram se acostumando a aceitar mercadorias europeias, muitas das quais passaram a fazer parte do seu dia a dia, não sabendo mais viver sem elas. Tanto que um viajante, ao se aproximar da costa, encontrou vários indígenas que vieram nadando até o navio perguntando se estava interessado em comprar o Ibirapitanga.

A devastação das matas de pau-brasil no litoral – entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Norte – acabou obrigando os portugueses a obtê-lo no interior, fazendo com que o carregamento de um navio demorasse várias semanas ou até meses. Aproveitando essa parada, além da madeira, levavam indígenas como escravos, peles de onça e até papagaios, que os comerciantes franceses vendiam na Europa.

A procura dos europeus pelo pau-brasil se devia ao crescimento da indústria de tecidos em Flandres e na Itália, que consumia grande quantidade do corante. Como a procura era grande, outros comerciantes europeus, especialmente franceses, vieram buscar o pau-brasil na América. A intensidade do contrabando – por aqueles que não reconheciam a posse de Portugal sobre terras na América – acabou levando Portugal a organizar expedições para afugentar franceses do litoral.

Em 1527, Cristóvão Jacques comandou uma expedição que aprisionou vários navios franceses e mais de trezentos marinheiros. A pressão francesa obrigou Portugal a ocupar mais firmemente o território, armando várias expedições chamadas guarda-costas. A ameaça estrangeira motivou Portugal a se preocupar com a colonização da América. Além disso, o comércio de especiarias do Oriente já não rendia o suficiente para o governo português saldar suas dívidas externas.

Pedro Álvares Cabral, ao partir para a Índia, deixou dois degredados portugueses – condenados pela justiça portuguesa – nas novas terras americanas para que aprendessem a língua dos nativos. Permaneceram por quase dois anos, sendo encontrados por Fernando de Noronha, comerciante português, que os levou de volta a Portugal. Em 1507, em Cananeia, no litoral sul do atual estado de São Paulo, apareceu um branco apelidado de Bacharel, não se sabendo se era um degredado ou um náufrago. Viveu no mínimo vinte anos na região, convivendo pacificamente com um grupo de indígenas.

Diogo Álvares, o Caramuru, apelido dado pelos indígenas e nome de um peixe muito comum no litoral, viveu mais de quarenta anos na Bahia, depois de sobreviver a um naufrágio por volta de 1510. Logo estabeleceu relações com os nativos, uniu-se com a índia Paraguaçu e terminou por se integrar aos costumes indígenas. Onde se fixou acabou por fundar um pequeno povoado. Diferentemente de outros portugueses, não tentou escravizar os indígenas, optando pela vida sedentária, junto aos seus treze filhos. Por causa do contato com os franceses que vinham em busca do pau-brasil, teria viajado à França em companhia de Jacques Cartier. Em Saint-Malo, porto da Bretanha, que comerciava com o Brasil, Paraguaçu teria sido batizada recebendo o nome cristão de Catarina, em homenagem à esposa de Cartier. Posteriormente, segundo a tradição, foi efetuado o casamento religioso.

Vale destacar que as relações da França com a terra brasilis foi intensa durante boa parte do século XVI. Ficou célebre a festa brasileira, denominação pela qual ficou conhecida a celebração em Rouen, em outubro de 1550, reunindo cinquenta índios tupinambás

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