Os Legítimos Representantes do Povo: Câmaras Municipais e Oligarquias Locais na Construção do Império Liberal
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Os Legítimos Representantes do Povo - Pablo de Oliveira Andrade
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
À pessoa que sempre me encheu de alegria,
mas que também me deu as lágrimas da mais doce saudade,
de uma saudade repleta de amor e esperança.
À senhora, minha mãe,
por ter me dado tudo o que tive e tenho.
AGRADECIMENTOS
Muitas vezes me questionei sobre o que é a história, por que sempre senti uma atração incontrolável por saber a respeito dela, por estudá-la, por pesquisá-la. Nunca havia conseguido uma resposta, até que um dia a minha companheira de mestrado, Mel, mostrou-me um texto maravilhoso escrito por Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Nesse texto, ele expõe que a história é unida intrinsecamente a dois elementos: a política e a amizade. A frase completa do autor consta mais adiante na epígrafe deste livro, nunca encontrei uma explicação tão perfeita para o meu sentimento com relação à história. A política sempre me fascinou e tudo o que produzi sobre história está intimamente relacionado a ela, inclusive esta pesquisa. Já a amizade tem, para mim, um intercâmbio tão perfeito com a história que não sei dizer quem depende de quem, qual vem primeiro. Só sei dizer que foi esse intercâmbio que permitiu a existência do trabalho que vocês verão mais adiante. Por isso, a amizade merece ser consagrada nessas poucas linhas que posso dedicar a agradecer aos meus amigos. Elas são poucas demais para tantos amigos, mas vou tentar...
Vou começar por uma pessoa que, desde os tempos da minha graduação, mostrou-se uma grande companheira pelas estradas de terra e pedra da Mariana oitocentista: Andréa Lisly Gonçalves. Foi uma companheira porque não só orientou a minha pesquisa de mestrado como também me guiou quando me perdia nas trilhas, e ainda respeitou quando eu quis andar por outros caminhos, parar para descansar, sacudir a poeira da viagem. Muito obrigado, Andréa, pelo respeito, pelo carinho, pela paciência, pela amizade e por saber conciliar tudo isso com um profissionalismo ímpar!
Tive a sorte também de contar com outros profissionais ao longo desse caminho. Sei que corro o risco de esquecer alguém, mas preciso falar de algumas pessoas. Este livro não existiria sem a acolhida especial e os ensinamentos acadêmicos e de vida que recebi de alguns mestres: Marco Antonio Silveira e Marcus Joaquim Maciel de Carvalho, os quais contribuíram muito para esse livro ao estarem na minha banca de defesa do mestrado; Álvaro de Araújo Antunes, que faz parte de um grupo maior de amigos, os quais se reúnem sob o manto do núcleo Justiça, Administração e Luta Social
(Jals) e que foi fundamental nesta pesquisa; Cláudia Maria das Graças Chaves, pelos ensinamentos de orientadora na graduação; Celso Taveira e Isis Pimentel de Castro, pela amizade sem igual. Por meio desses mestres, gostaria de agradecer a todos os outros que colaboraram de alguma forma para a minha formação, bem como à Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), por ter me proporcionado no sempre mágico Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) a oportunidade de encontrar o par inseparável história e amizade
, além, é claro, de ter patrocinado a pesquisa que originou este livro.
Também foram companheiros nessa jornada os funcionários dos arquivos em que pesquisei. Sempre que possível, eles procuraram atender as minhas solicitações e se esforçaram muitas vezes para isso. Meu muito obrigado a vocês que tornam possível o trabalho do historiador!
Outras pessoas também se mostraram fundamentais nessa jornada, apesar de não se envolverem profissionalmente com ela. Compuseram esta história pela amizade. Na minha família, foram muitos os que sacrificaram dinheiro e tempo para que eu realizasse este sonho. Seria injusto citar apenas alguns, porque muitos me apoiaram por meios imateriais. A todos agradeço o apoio incondicional e torço para que também realizem os seus sonhos!
Sobre os amigos, é até difícil falar. Não seria nada sem eles. Com quem compartilhar as alegrias, as tristezas, o cansaço da viagem, senão com eles? Até quando achamos que já não suportam mais o nosso peso ou nada mais têm que revelar, eles nos surpreendem com demonstrações de amizade indescritíveis. Por isso, agradeço a todos, do passado e do presente, em especial aos meus companheiros da eterna República Cangaço, onde moro de alma e coração!
Nesses seus longos caminhos, a vida às vezes nos surpreende com pedras preciosas. Na minha jornada, encontrei uma linda joia que me incentivou o tempo todo para que transformasse a minha dissertação de mestrado neste livro. Sem ela nada disso existiria. Muito obrigado, Gesy, pelo seu companheirismo, pela sua amizade, pela sua fé em mim, pela sua dedicação e paciência, pelo seu amor! Espero também ser um bom companheiro em todos os seus sonhos.
Por fim, não poderia deixar de lembrar a pessoa que originou tudo isso, que me colocou na história do mundo, que me deu uma história de vida, que me dedicou a mais profunda e sincera amizade. Sinto as lágrimas correrem no meu rosto, são lágrimas de amizade, de dedicação, de agradecimento. Se este livro existe, é graças a ela, ao seu esforço sobre-humano, à sua dedicação incondicional em realizar os seus sonhos e os de outras pessoas. Eternamente, muito obrigado, minha mãe, por ter me ensinado que o amar caminha de mãos dadas com o sonhar!
Desculpe a todos se me alonguei demais, porém, como disse no início, são muitos amigos a agradecer. Para mim, a amizade muitas vezes fez a história!
A amizade é política e uma e outra são elementos intrínsecos do fazer História,
seja como escrita, seja como prática.
(Durval Muniz de Albuquerque Júnior)
APRESENTAÇÃO
A construção do Estado Nacional brasileiro foi permeada de continuidades e descontinuidades, permanências e rupturas, em relação ao passado colonial. Efetivada em um momento de grandes transformações no Ocidente, sobretudo de mudanças políticas e econômicas difundidas mundo afora com a doutrina do liberalismo, muitas coisas que parecem ter sido novidade não o eram tanto assim! Pensar o amálgama entre o velho e o novo, característico da nossa construção nacional, é algo bastante complexo. Talvez as únicas certezas que se tenha sobre esse processo sejam a escolha pela construção de uma unidade que congregasse todas as partes da América
de colonização portuguesa e a manutenção do sistema escravista. De resto, temos indícios de como essas duas escolhas se processaram, sabemos de opções feitas, mas temos dúvidas a respeito dos motivos que levaram os homens daquela época, em meio a tantas opções políticas, econômicas e sociais, a elegê-las. Temos muitas perguntas a fazer aos homens das décadas de 1810 a 1850.
Já encontramos muitas respostas também, algumas contraditórias, mas ao menos as temos. Contudo acredito que, antes de perguntarmos para os homens do século XIX sobre suas escolhas, temos que nos inteirar acerca do que os homens do século XVIII, e até antes, fizeram, ou seja, que opções deixaram para os oitocentistas. A construção era inédita, mas muitos tijolos já estavam estocados no armazém há muito tempo. Foi atrás desses tijolos que procurei ir. Para isso, segui uma dica da professora Maria Odila Leite da Silva Dias:
Pode-se imaginar outras coordenadas com as quais trabalhar o problema da construção do Estado no Brasil, tais como a das pressões externas, no sentido de integração do país no liberalismo ocidental, após 1822, ou da importação das instituições políticas do colonialismo europeu. No entanto, uma das trilhas mais importantes a serem exploradas continua a ser o estudo dos momentos de cooptação do mandonismo local pelo poder central, [...]¹
As câmaras municipais e as oligarquias locais tiveram uma participação fundamental em todo o processo de constituição do Estado e da unidade nacionais. Foi por meio dessas instituições que esses grupos negociaram as suas respectivas adesões ao projeto nacional encabeçado pelos políticos estabelecidos no Rio de Janeiro. Para o caso mineiro – que me interessa mais de perto nesta pesquisa –, foi com as câmaras municipais que D. Pedro precisou negociar na sua visita à província entre março e abril de 1822. Nessa negociação, D. Pedro, em troca da adesão das oligarquias locais mineiras ao seu projeto de constituição de um Império do Brasil – primeiro unido ao Reino de Portugal e alguns meses depois
independente –, garantiu que preservaria os modos consagrados de exercício do poder local, instituindo um novo ‘pacto político’ interno
².
Assim sendo, o Império do Brasil nasceu de uma aliança entre o monarca e as oligarquias locais – uma aliança estabelecida em bases liberais, ao contrário do que afirma a historiografia. No caso mineiro, todos aqueles que pactuaram com
D. Pedro entre março e abril de 1822 sabiam que mudanças na forma de organização do poder iriam ocorrer com a adoção de uma monarquia constitucional e da ordem liberal; eles sabiam porque conviviam com essas transformações desde o final do século XVIII.
Neste livro, busco comprovar que essa aliança, ao levar em conta a manutenção das formas consagradas de exercício do mando local e a barganha de benesses políticas, econômicas e sociais, tanto para a cidade de Mariana quanto para a sua elite social e política, tinha como base o ideário liberal. Era um amálgama de tradições do Antigo Regime com as propostas do liberalismo político. Para isso, analisarei a constituição e a ação da oligarquia marianense nesses primeiros anos do Império independente.
Desejo a você, leitor, uma boa leitura, e que este livro o ajude a responder as suas perguntas sobre o início da construção do Estado Nacional brasileiro e, mais do que isso, que ele te inspire a fazer novas perguntas!
O autor
PREFÁCIO
Em entrevista ao jornal El País, por ocasião do lançamento do seu livro Down to Earth. Politics in the New Climatic Regime (2019), o filósofo Bruno Latour afirmou que a emergência climática tinha colocado duas opções
aos povos da Terra³. Para uma diminuta elite, aquela que aufere lucros incomensuráveis com a internet das coisas
, com a economia de plataforma, em tempos de trabalho precarizado, a saída seria o abandono do planeta, um projeto pós-humano
, rumo a Marte, com base na inteligência artificial. Aos simples mortais, a alternativa acalentada seria o retorno ao Estado-nação
, a exemplo de experiências como a do Brexit, que levou à retirada da Grã-Bretanha da comunidade europeia.
O mais alarmante seria, ainda de acordo com o filósofo, que ambas as alternativas, e não apenas a busca de soluções fora do planeta, mostram-se inviáveis. Mesmo que a tarefa de muitos historiadores que se dedicaram ao tema dos estados nacionais, desde, pelo menos, o clássico de Benedict Anderson, Comunidades imaginadas⁴, tenha sido a de desnaturalizar a sua existência, apontando-o como um fenômeno histórico datado do século XIX, destacando a sua artificialidade, nem por isso eles deixaram de ter existência concreta. Os projetos que lhe deram sustentação acabaram resultando em arranjos baseados na emergência de entidades políticas e étnicas, em um território delimitado, dotado de soberania mais ou menos frágil a depender do lugar ocupado pelo país no concerto internacional de nações. Os mesmos estados nacionais, porém, vão experimentar, a partir da década de 1980, uma crise sem retorno, como expressou Bruno Latour. E será nesse contexto de crise que se renovarão os estudos acerca da temática, entre os quais se destaca o trabalho de Pablo Andrade, que ora se apresenta ao leitor, e que tive o prazer de orientar.
Em termos mais gerais, talvez a maior qualidade do texto seja a de apontar os caminhos para a resolução de impasses que se colocaram por muito tempo à historiografia brasileira, sobretudo nas décadas finais do século passado. Àquela altura, por motivos que não é possível detalhar aqui, parece ter havido uma clara opção pelos estudos verticalizados, os quais davam especial atenção às fontes documentais. O processo parecia corresponder ao esgotamento de trabalhos mais ensaísticos, das grandes sínteses, em favor da sistematização de volumosas massas de documentos, do emprego de metodologias acuradas para o tratamento do material empírico, muitas vezes sem uma atenção maior à explicação, à interpretação, à teorização.
Sem dúvida, tais estudos foram imprescindíveis para o desenvolvimento da historiografia brasileira nos anos que lhes seguiram e permitiram a emergência de trabalhos como os de Pablo Andrade, que conjugam uma densa reflexão teórica e utilização de fontes. Disso resulta que, apesar de o título sugerir que se trata de mais uma investigação – sempre bem-vinda, aliás – de história regional, o que se tem é que o local não é entendido como uma unidade limitada, mas sim relacionado às outras circunscrições, sem dúvida mais abrangentes, como o Império português, mas nem por isso secundária. Afinal, fora a Câmara Municipal a instância máxima de poder na América portuguesa, correspondendo a sua realidade menos a um recorte regional do que a formas de organização política que relacionavam, diretamente, metrópole e colônia. Foram as câmaras, juntamente das milícias e das Santas Casas de Misericórdia, que estabeleceram a unidade de um império colonial tão vasto como o fora o português. Ainda mais, quando se trata de uma Câmara Municipal situada na principal porção do Império português no século XVIII, as Minas Gerais, a única cidade da capitania no setecentos, a sede religiosa que, se não se igualava à capital, Vila Rica, sucedia-lhe em importância.
A abordagem é feita por Pablo Andrade em intenso diálogo com a historiografia internacional, principalmente a portuguesa, algo incomum em uma dissertação de mestrado em que os prazos para a execução do trabalho são notoriamente curtos. Diálogo que deve ser entendido em seu sentido mais pleno, já que não se trata da incorporação da historiografia portuguesa ao estudo da Câmara de Mariana, mas sim da formulação de críticas a concepções consagradas de autores que, legitimamente, destacam-se como os mais renomados historiadores do Portugal contemporâneo. O resultado é o avanço da interpretação sobre o espaço colonial e, ainda que em menor medida, o do próprio centro da monarquia portuguesa.
No segundo capítulo, Os grupos políticos locais nos impérios português e brasileiro
, confirma-se o apreço do autor pelo debate teórico, especialmente quando aponta os limites do emprego da categoria elite para a caracterização dos grupos que exerceram o poder, fosse no contexto da América portuguesa, fosse, sobretudo, no daqueles que ocuparam cargos de mando nas primeiras décadas que se seguiram à Nação independente – os anos que dão início à construção do Estado Nacional brasileiro. No seu lugar, defende a utilização do conceito de oligarquia e argumenta, com muita propriedade, que o termo oligarquia, além de evitar a polissemia, inevitável no emprego do vocábulo elite, serve melhor à caracterização dos grupos que ocuparam, principalmente, o poder local, mas também, já no Brasil independente, o provincial. O que se relaciona ao fato de que oligarquia, além de circunscrever um grupo propriamente político – não se confundindo com outras categorias que se prestam melhor a explicar a estratificação social do período –, tem a vantagem de explicar o porquê da permanência de determinados personagens, por várias legislaturas
, resistindo, inclusive, à verdadeira revolução da passagem do antigo regime para o Estado liberal. Como mostra o autor, apesar de o conceito muitas vezes sugerir a imobilidade de seus membros, é o contrário que se apresenta na dinâmica das câmaras naquele momento. Com base na prática da cooptação, o poder de as oligarquias se renovarem assegura a sua adaptabilidade às mudanças aceleradas das primeiras décadas do século XIX.
Será, portanto, sob o signo da mudança e da permanência que o autor se empenhará em apresentar as mudanças ocorridas na edilidade – para o que a Câmara da Leal Cidade de Mariana é um exemplo ímpar – na passagem do antigo regime para o constitucionalismo e o liberalismo. Consoante com a historiografia sobre o tema, ele extrai todas as consequências da legislação de 1828, a qual modificou o funcionamento das câmaras, impondo-lhe a divisão de poderes, impensável nos séculos precedentes, cerceando suas funções políticas e limitando sua atuação às tarefas administrativas. No entanto, o faz também de maneira original, principalmente porque procura se ater aos efeitos concretos da lei, e não à sua letra.
Por fim, e até para deixar ao leitor o gosto de novas descobertas, Pablo mostra, de modo convincente, que a adesão dos principais grupos locais, mais especificamente das oligarquias marianenses, ao liberalismo deu-se sem resistência ao novo arranjo, sem qualquer forma de apego
a modos de poder que se identificassem ao absolutismo. Segundo ele, seria descabido interpretar os conflitos que marcaram a província de Minas pela oposição entre liberais e restauradores ou caramurus. A explicação para os embates que se registraram, como a Revolta do Ano da Fumaça
, de 1833, residira, sobretudo, nas disputas interoligárquicas
, e não em uma suposta defesa de retorno à antiga ordem. Um trabalho que, sem dúvida, vem se somar à intensa produção que se avizinha a partir da efeméride dos 200 anos da nossa independência política.
Professora titular