Imagem e Semelhança: a Antropologia de Gregório de Nissa no De hominis opificio
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Sobre este e-book
Imagem e Semelhança aborda o tema central do De hominis opificio, chamado de "problema antropológico", que trata do seguinte dilema: Deus é eterno, simples, imutável, e sem forma humana, ao passo que nos seres humanos engendrados há composição, mudança e diferenças sexuais. Assim, como poderia o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gênesis 1, 27-28)? Surge assim, uma angustiosa questão oriunda da tradição filosófica grega: "o que é o homem?".
O presente livro esclarece o modo como Gregório de Nissa resolve essa dificuldade, quando, em primeiro lugar, faz referência às características únicas da alma humana em nosso mundo, que são a razão e a imortalidade, as quais permitem somente ao ser humano ser plasmado à imagem e semelhança do Ser Supremo.
A seguir, a ontologia humana é classificada como meio-limítrofe (mésoV-meqórioV) entre as realidades sensível e inteligível. Surge assim, explicada na parte final do livro, a teoria da "dupla criação" do homem, intemporal e histórica ao mesmo tempo, mediada pela natureza totalmente divina e humana do Cristo-lógos, considerado como a perfeita imagem de Deus-Pai.
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Imagem e Semelhança - Rogério de Paula e Silva
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO HISTÓRICA AO TRATADO
O comentário antropológico ao Gênesis 1, 26: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança […]
e o discurso cosmológico de Gregório mostram o influxo do Timeu nessa obra¹. Além de Platão, muitos autores relataram como fontes do De hominis opificio os estoicos, Aristóteles, Fílon de Alexandria, Plotino, Porfírio e Orígenes. O De opificio mundi de Fílon e o De principiis de Orígenes também foram importantes para o desenvolvimento da antropologia do Nisseno, ao passo que, em se tratando de ciências naturais, Gregório foi influenciado por Aristóteles, os estoicos Posidônio e Cícero, e o médico Galeno².
Ao inserir, no De hominis opificio, a criação do homem (cf. Gênesis 1, 26-27) no debate filosófico sobre a natureza humana, afirmando sua relação com o cosmos, as questões relativas ao corpo, à alma e a suas relações, segundo as diferentes teorias de sua época, Gregório procurou definir a vida e a morte em função da fé na ressurreição, descrevendo a fisiologia e as faculdades do intelecto, a vida segundo o corpo e a vida espiritual, as paixões e as virtudes. O Capadócio contribuiu assim com um saber enciclopédico, realizando uma síntese das concepções filosóficas em seu desejo de articular numa língua teológica o saber científico (ejpísthmi), a sabedoria dos filósofos (sofía) e a fé cristã (pístiV). Assim, esse tratado poderia ser considerado uma obra mista constituída de: uma antropogênese, baseada no modelo de uma cosmogênese; um comentário do relato bíblico da criação; e um tratado científico
, por possuir elementos de fisiologia, psicologia e noética³. Entretanto, diante de posições distintas tais como a bíblica, a platônica-neoplatônica e a estoica, a Sagrada Escritura é certamente a fonte principal de Gregório, e na convivência dessas fontes tão diversas se reconhece a originalidade do De hominis opificio⁴.
Foram elaboradas várias traduções antigas do tratato gregoriano, tais como a síria (século VI ou VIII), a árabe (século VIII), a georgiana (tradução do árabe nos séculos VIII e IX) e também uma versão armênia⁵. No período medieval (século XIV), surgiu no Monte Atos (atual Grécia) uma versão eslava (sérvia) cujo tradutor é desconhecido. As versões mais antigas do latim são a de Dionysius Exigiuus (ca. 450-540), conhecido como Dionísio, o Pequeno, sob o título de De conditione hominis⁶, e a do teólogo irlandês carolíngio John Scot Eriugena (João Escoto Erígena) entre 862 e 864, com o título de De imagine, Sermo de imagine ou Liber de imagine⁷. Não é certo que Erígena teve em mãos a primeira tradução latina do Capadócio. Vasiliu supõe que ele poderia ter traduzido a obra de Gregório justamente porque ignorava a existência da primeira tradução. No entanto, a autora cita Édouard Jeauneau, historiógrafo e editor da obra erigeniana, que parece inclinar-se para a tese contrária, ou seja, João Escoto teria decidido retraduzir o tratado de Gregório do qual ele se serviria amplamente em sua obra, o Periphyseon⁸. No século XVI, mais duas edições latinas foram publicadas: uma de Johannes Levenclavius (ou Löwenklau, 1541-1590), com a tradução de Ambrosius Ferrarius de Milão (1553), e a outra de Colônia (1537), a mais antiga a conter o texto de Dionysius Exigiuus. Contudo, a partir do momento em que uma edição bilíngue (Basileia, 1567) começou a ser publicada, a versão de Levenclavius passou a ser mais difundida. É o caso do De hominis opificio ou Peri; kataskeuh~V ajnqr´wpou (o título mais comum é em latim) da edição de Migne (Patrologia Grega)⁹.
A partir da primeira metade do século XIX, excertos do De hominis opificio foram traduzidos para as línguas modernas, no início principalmente o francês. A primeira tradução completa foi realizada na segunda metade desse mesmo século em alemão (Abhandlung über die Ausstattung des Menschen, Kempten, 1851, 1874 e Von der Erschaffung des Menschen, Leipzig, 1859). Seguiram as traduções em inglês (On the Making of Man, Moore & Wilson, 1893); francês (La création de l’homme, Sources Chrétiennes, 1943), que teve como base a edição de Migne; e italiano (L’uomo, Città Nuova, 1982). Também foram realizadas no século XIX duas traduções para o russo da obra completa de Gregório de Nissa. A primeira (1826, 1830-31, 1842 e 1847) e a segunda (1861 e 1872), em oito volumes, também foram baseadas na edição de Migne¹⁰. A tradução para o português (A criação do homem, Paulus, 2011) foi realizada por Bento Silva Santos a partir da edição francesa.
1 Além deste trecho bíblico, o Gênesis 1, 27 também é muito citado nas reflexões de Gregório a respeito do homem, criado à imagem de Deus. Segundo Bento Silva SANTOS (Introdução. In: GREGÓRIO DE NISSA, Santo. A criação do homem; A alma e a ressurreição; A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011, p. 23), a propósito do termo eijk´wn (imagem), S. Gregório cita em seu tratado 15 vezes Gênesis (1, 26) e 17 vezes Gênesis (1, 27).
2 SELS, Lara. Introduction. In: GREGORY OF NYSSA. De hominis opificio. The Fourteenth-Century Slavonic Translation. Köln: Böhlau Verlag, 2009, p. 4-6.
3 VASILIU, Anca. Eikôn: l’image dans le discours des trois Cappadociens. Paris: Presses Universitaires de France, 2010, p. 111-113.
4 SALMONA, Bruno. In: Introduzione. Gregorio di Nissa. L’uomo. Roma: Città Nuova: 2000, p. 10.
5 SELS, op. cit., p. 10.
6 Ibid.
7 VASILIU, op. cit., p. 113.
8 Ibid., p. 114.
9 SELS, op. cit., p. 10-11.
10 Ibid., p. 10-12.
CAPÍTULO II - A ESTRUTURA E O CONTEÚDO DO DE HOMINIS OPIFICIO
O raciocínio desenvolvido por Gregório de Nissa em seu tratado é sutil, claro e lógico. Sua frase é límpida e seu vocabulário preciso. Contudo, seu pensamento não segue uma linha reta¹¹. Da mesma forma, Vasiliu afirmou que essa obra não deve ser analisada de forma linear, dentro de uma sequência cronológica, embora ela tenha as características de uma narração, mas sim entendida do mesmo modo que Gregório interpretou a criação humana conforme o Gênesis (1, 26), quer dizer, o homem universal na primeira criação
recebeu uma semelhança, uma imagem, de modo a-histórico, intemporal¹².
De acordo com Laplace, a unidade da especulação dessa obra decorre de um misterioso centro, do qual a presença se revela pouco a pouco à alma do leitor, ou seja, a marcha dos seus escritos é concêntrica
, de forma que, tateando
, aproximamo-nos da luz. Os circuitos
de pensamento do De hominis opificio parecem primeiramente longos, suas digressões e divagações inúteis. Contudo, após muitos rodeios, eles voltam-se repentinamente para o centro¹³. É como um excursionista na montanha. A cada volta do caminho ele revê as mesmas paisagens e encontra as mesmas ladeiras. Porém, na medida em que ele sobe, o ar se torna mais puro e o horizonte é descoberto. Aquele que anda em linha reta permanece no fundo do vale e não consegue alcançar com o olhar nenhum cume. Em contrapartida, quem sobe a montanha de forma concêntrica e ascendente (em espiral) percorre longos caminhos, mas, no fim, vislumbra com um só olhar todos os cumes vizinhos. Aquele que percorre pela primeira vez o caminho com Gregório se pergunta aonde ele vai, porém, quando sua passada acompanha o ritmo do seu guia, ele se abandona à caminhada, e do alto ele revê o caminho percorrido¹⁴.
O fato de a articulação temática no De hominis opificio não ser linear fez com que se tornasse uma ocorrência comum no estilo literário de Gregório retomar assuntos que ele já havia abordado anteriormente. É o caso, por exemplo, de referências diretas ao problema antropológico (capítulos VI, XI e XVI), da participação (capítulos IV, V, IX e XVI), das potências da alma e de sua unidade com o corpo (capítulos VIII, IX, XII e XIII), da presciência divina (capítulos XVI, XVII e XXII) e do pleroma humano (capítulos XVI e XXII).
Antes de iniciar propriamente seu tratado, Gregório de Nissa apresenta um breve prefácio para expor seu tema e o motivo que o levou a escrever, antecipando algumas características da importância que dará ao homem¹⁵. Nesse prólogo, o Capadócio apresenta um grande problema, que é a limitação do discurso (lógoV) a respeito dos dois
homens criados: o universal e o histórico, o qual permanece muito aquém do alcance da argumentação. Dessa forma, o Nisseno admite a imposição e a transcendência do mistério da criação para além das capacidades racionais humanas, já que para ele os argumentos a respeito da natureza do homem, cujo princípio e fim se encontram em Deus, não parecem ter uma necessária concatenação lógica (diá tinoV ajnagkaíaV ajkolouqíaV¹⁶). De fato, a afirmação de que voltaremos a conhecer o paraíso e recuperaremos a imagem e a condição do início torna-se um grande problema para Gregório de Nissa, porque a esperança de outro reino permanece na impossibilidade de descrever, devido τὴν τῶν ἀνθρωπίνων λογισμῶν ἀτονίαν
(à fragilidade de nossos raciocínios)¹⁷. Devemos deixar de lado todos aqueles que se fundam na filosofia
ou em uma lógica vã para rejeitar a fé em sua simplicidade, afirma o Nisseno no seu discurso a respeito da ressurreição¹⁸.
Assim, a solução dada por Gregório se fundamenta na fé, ou seja, para as coisas às quais não se descortina uma saída deve existir a confiança na potência divina que transcende a compreensão humana¹⁹. A grandeza da condição humana sobre todas as coisas é apresentada no prefácio do tratado, no qual é relatado que somente a alma do homem foi criada à imagem do Criador. Assim, para o Nisseno, mesmo qualquer maravilha do cosmos se torna pequena, de interesse secundário, pois οὐδὲν ἕτερον Θεῷ ἐκ τῶν ὄντων ὡμοίωται, πλὴν τῆς κατὰ τὸν ἄνθρωπον κτίσεως
(nenhuma outra coisa é semelhante a Deus, exceto a criação do homem)²⁰.
Gregório de Nissa inicia o capítulo I de seu tratado citando a Escritura (Gênesis 2, 4): Au{th hJ bíbloV genésewV oujranou kai; gh~V
(Este é o livro da gênese do céu e da terra)²¹. O autor pretende com isso fazer preliminarmente uma análise a respeito da formação do universo para posteriormente, no capítulo seguinte, apresentar a criação do homem. O Capadócio demonstra assim alguns objetivos bem definidos: 1) demonstrar uma ordem na criação na qual o mundo foi preparado para a vinda do homem; 2) distinguir as diferenças entre a natureza divina (eterna e imutável) e a estrutura ontológica do kósmoV (criada e mutável) para que os homens não julgassem tomar a criação por Deus; e 3) preparar os fundamentos da comparação que será feita posteriormente entre a cosmogênese e a antropogênese, a fim de