Violência psicológica nas relações conjugais: Pesquisa e intervenção clínica
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Violência psicológica nas relações conjugais - Adelma Pimentel
Sumário
Travessias
Parte I – O campo: caracterização da violência psicológica
1. Cenários para o feminino
2. Cenários para o masculino
3. Relacionamentos conjugais
4. Pensamento gestáltico sobre violência
5. Uma mulher casada em psicoterapia
6. Um homem descasado em psicoterapia
7. Enfrentamento da violência psicológica
Parte II – O fundo
8. Nutrição psicológica, autoconceito e prevenção da violência
9. Para compreender e criar, é necessário pesquisar
10. Os casais se expressam
Parte III – A Gestalt
11. Desconstruções e reconstruções
Referências bibliográficas
Apêndices – Indicativos para pesquisa
Travessias
Em 2002, na Universidade Federal do Pará (UFPA), fui interpelada a compreender e enfrentar a violência psicológica. O contato com adolescentes, pais e familiares que experimentaram o sofrimento gerado pela ação abusiva das pessoas próximas foi o mote do chamado e da escuta.
Minha trajetória de pesquisadora tem sido dedicada a investigar alguns eixos: a) Psicodiagnóstico, que contribui para identificar a queixa e orientar a intervenção clínico-qualitativa; b) Nutrição psicológica, categoria que ajuda a compreender o autoconceito e a autonomia dos atores que atendo; c) Violências privadas; d) Éticas do cuidado e de gêneros, premissas que transcendem a perspectiva normativa e factual que a regra moral carrega para vivenciar e disseminar uma atitude ontológica que favorece a revalidação do humano como referência prioritária da vida.
Durante meu doutoramento em psicologia clínica, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em um curso de filosofia com Dulce Critelli, mulher doce e de paciência inabalável para explicar Ser e tempo, obra heideggeriana, ouvi uma asserção sobre a escolha do problema de pesquisa. Ela dizia: somente estudamos o que tem sentido em nossa vida.
Ao trazê-la para o cenário de elaboração deste livro, confirmo-a. Ainda assim, perguntei-me inúmeras vezes, no início de minhas incursões no tema da violência conjugal, quais eram minhas motivações para esse tipo de estudo, eu que repudio todas as modalidades de violência.
Algumas respostas foram surgindo, à semelhança do dia que clareia com o amanhecer. Rememorei a vivência de situações em que a violência psicológica esteve circundando.
Quando tinha 6 anos, após o banho, minha mãe queria limpar meus ouvidos. Eu não queria e tentava impedi-la segurando sua mão, até que ela, irritada, dizia: vai embora. Eu saía correndo, satisfeita por vencer esse primeiro embate. Entretanto, também perdi vários, já que ela usava a força física para me aprisionar entre suas pernas. De nada adiantava chorar ou espernear. Ela não era sensível
a meu choro, afinal, como mulher, ela entendia as artimanhas do choro feminino.
Famílias são organizações complexas, dialéticas e ambíguas; campo de diversos choques, ódios e de trânsito voraz de rápidas, variadas e múltiplas emoções que podem coexistir no mesmo dia, conforme os atores e seus atos. Dentro delas, os embates atravessados pela violência psicológica podem contribuir para forjar casamentos precipitados, uniões estáveis e até mesmo namoros que perpetuam o círculo vicioso de aprisionamento dos sujeitos.
Em minha família de origem, a violência psicológica adquiriu uma feição árida por intermédio da figura paterna. Um homem incrivelmente dual, capaz de gestos largos de doação material e de outros, estreitos, em que cobrava de todos, filhos e esposa, respeito
incondicional, silêncio e submissão. Típico representante da cultura patriarcal machista, para quem o casamento formalmente instituído não estabelecia limites para os desejos e o jugo masculino. Minha mãe, por sua vez, era a representante feminina da mesma cultura.
O modelo feminino de passividade em algumas questões impostas pelo patriarca
, e o masculino, de pai-machista-patriarca, impeliam o crescimento de minha rebeldia, que se expandia de várias formas.
Para fugir das imposições paternas, enfrentava-o em embate verbal, desafiando-o e, ao mesmo tempo, afirmando-me como mulher valente que buscava se libertar de qualquer opressão e exercer o direito e o desejo de vivenciar minha plenitude existencial. Diante da passividade
materna, tornava-me autoritária, incisiva, refratária às chantagens emocionais.
De acordo com Agacinski (1999, p. 6), até hoje a diferença dos sexos, sempre e em toda a parte, assumiu o sentido de uma hierarquia: o masculino é sempre superior ao feminino, sejam quais forem as aplicações das duas categorias. Trata-se daquilo que Françoise Héritier chama a ‘valência diferencial dos sexos’
.
Embora a perspectiva das autoras apresente a ideia de que a diferença
entre os sexos se evidencia na estrutura social, os papéis de gênero mudam e é possível haver expressões inversas respectivamente, isto é: homens assumindo posturas menos ativas e mulheres mais ativas. Eu sou uma delas. Escapei aos desmandos paternos e maternos. Alcei voo. Estudei, edifiquei uma profissão e faço escolhas. Deixei de lado o autoritarismo e exerço a autoridade instituída pelo autoconhecimento e legitimada pela instrução, e, no plano institucional, pelo respeito de meus pares.
Acredito no casamento, nas uniões estáveis e no combate da violência psicológica expressa nos relacionamentos, do silêncio punitivo e da palavra ofensiva revestida de estilo e figuras de linguagem, expressas entre casais instruídos
ou pessoas esclarecidas
que não vivenciam o embate físico e sim o psicológico, danoso e voraz.
Às vezes a violência se manifesta pelo silêncio. Silêncio que, utilizado inicialmente como recurso temporário de evitação ao confronto, logo se transforma em arreio que emudece e imobiliza o corpo. Outras vezes, a violência está na impossibilidade de silenciar, de abdicar da ânsia de tudo dizer – não importando as consequências que isso tenha. (Souza, 2000, p. 69)
Acredito no amor entre humanos. Na magia que reescreve as regras convencionadas para os relacionamentos cronológicos. Hoje em dia, estão abertas as possibilidades de formar pares de mulheres mais velhas e homens mais jovens. Ainda que à semelhança da agulha no palheiro, creio que seja plausível compor uma relação autêntica, não de exploração, mas de consentimento mútuo.
Compreendo a importância da religiosidade na vida dos casais. Entretanto, sou absolutamente contra as falácias ideológicas manipuladas por qualquer organização ou sistema religioso que institui dízimos, regras, hierarquias entre papéis funcionais na organização das igrejas (pastores, bispos, padres, freiras, irmãos e irmãs...), na medida em que a fé dispensa mediadores seculares.
Para mim, a fé é um encontro entre cada um e o simbólico transcendente que se revela no outro próximo e no outro distante, no vizinho, no aluno, no membro da família que vive na mesma casa, na desconhecida por quem passamos e fingimos não ver, evitando ser alvo de suas demandas.
Recuso-me a aceitar maniqueísmos: isto é bom, aquilo é mau. Não frequento templos, problematizar Deus não é minha preocupação cotidiana. O sentido da existência, para mim, é claro. Gosto de proferir, no silêncio, por volta das cinco da manhã, quando acordo, a Ave-Maria de forma poética, em português e francês, que fica belíssima: Eu te saúdo, Maria, tu que és cheia de graça. Tu que és bendita entre as mulheres. Ou: Je vous salue, Marie, pleine de grâce. Vous êtes bénie entre toutes les femmes.
Aprecio a oração derivada do creio em Deus criador do céu e da terra
. Não compactuo com a aprendizagem imposta pelos pais e representantes das igrejas de que Deus é homem, representante de uma hierarquia, que vive espiando e tolhendo em vez de orientar e, portanto, temos de ser bonzinhos. Esta apreciação da alocução não me faz crer na tese do criacionismo do mundo.
Gosto de sentir a amorosidade do pai e da mãe nossos de cada dia, que estão em casa, na terra, no ar, no mar, nos campos, nas montanhas do Douro e das Gerais, na Mariz e Barros, no pão de cada dia, na caipirinha, no vinho e na água.
Eu me esqueço de rezar, contudo, quando o faço, é para agradecer. Nada peço. Não faço comércio com a fé: se me der isso, dou aquilo. Não me enxergo contraditória por me sentir sem religião, tampouco me imponho nomear uma fé com os códigos conhecidos.
Aprendo muito com os casais que atendo e com as vivências conjugais que já experienciei. Acertos e erros confirmam meu entendimento de que a abertura, o destemor, o respeito à singularidade, admiração mútua, confiança, intimidade, composição de um projeto para o casal e para cada um dos cônjuges são requisitos básicos à conjugalidade. Sem abertura para o outro e sem capacidade de enraizamento não há como estabelecer relações significativas. Esse é um paradoxo de nosso tempo, e nos conscientizarmos dele nos dá a chance de alcançar um novo estado de consciência que nos permite criar vínculos afetivos e amorosos
(Cardella, 2009).
Além disso, compreendo que o diálogo é o nutriente imprescindível de uma relação afetiva amorosa. Ele é mediador do fortalecimento dos vínculos e do não enraizamento das violências privadas, sobretudo a psicológica.
Vivencio e procuro disseminar a proposta de romper com a cidadania passiva caracterizada por não assumir sua função soberana, mas apenas de súdita
(Manzini-Covre, 1996, p. 20); favorecendo o exercício da cidadania ativa, centrada no agir, para compor um existir
(Ibidem, p. 21).
Sou favorável à vivência da conjugalidade sem fórmulas, uso exploratório, querer se dar bem
a custa do sofrimento do outro, prescrições, busca da metade
que falta, ideia absurda que sugere lacunas em alguém. Sou adepta da perspectiva do encontro amoroso entre subjetividade e alteridade.
Não valido o amor romântico, criação moderna que enclausura e oprime os sujeitos por meio de diferentes formas de controle de algumas mulheres, a quem essa ideologia impôs suas premissas (morrerei se você me deixar) por meio do domínio institucional exercido por família, igreja, escolas, estado; e de alguns homens, através da prescrição da expressão restritiva dos sentimentos (eu não sei dizer que amo você. Precisa dizer? Você não sente?).
Retomo Agacinski (1999, p. 99):
A diferença sexual bem pode ser universal, mas nada nos diz do que se fará com ela na organização prática das relações humanas. Não implica em si própria qualquer instituição particular, qualquer segregação, qualquer hierarquia seja de que ordem for. Não deveríamos, pelo menos, dizer que os dois sexos são naturalmente iguais? Sem dúvida, na condição de precisarmos o que se deve entender por naturalmente
e de sublinharmos, portanto, o caráter político da ideia de igualdade... Cujo valor político não se assenta na ideia clássica de verdade... Dizer que os homens e as mulheres são iguais não significa que sejam idênticos: o princípio de igualdade não exclui, portanto, o reconhecimento da diferença.
A violência psicológica que ocorre no interior das uniões estáveis ou dos casamentos é o tema deste livro. Diferenciar os signos meio e entre converge com o pensamento buberiano. O entre é onde o encontro acontece. Nele, a violência psicológica não ocorre. Porém, encontros somente ocorrem quando um escuta e responde ao outro de modo autêntico. Encontros são intrapessoais e interpessoais, e quando ocorrem são libertadores. A cada dia aprofundo o encontro comigo mesma esclarecendo minhas necessidades, o que posso oferecer e o que desejo do companheiro.
A violência psicológica é uma modalidade de agressão de grande incidência nas relações conjugais e aparece sem que, usualmente, seja reconhecida pelos cônjuges, sobretudo pela mulher.
A Delegacia da Mulher e a clínica-escola da Universidade Federal do Pará foram os espaços institucionais de produção deste livro. O objetivo primeiro e último deste trabalho é cooperar com os esforços coletivos para atualizar e renovar nossa humanidade, tão fragilizada pela supressão de valores éticos. Esses são alguns dos sentidos sociais do trabalho de nosso grupo.
A chacota, o deboche, a desqualificação, o desrespeito, a humilhação e o isolamento são configurações da violência psicológica que nos preocupam.
A pesquisa clínico-qualitativa realizada por meio da psicoterapia