Sertão, sertões: Repensando contradições, reconstruindo veredas
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Sobre este e-book
Joana Barros
Professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo. Doutora (2012) e mestre em Sociologia; graduada em Arquitetura e urbanismo (1998), todos pela USP. Compõe a coordenação do Centro de Memória Urbana (CMUrb/Unifesp). É pesquisadora do Laboratório de Narrativas Urbanas (IC/Unifesp) e do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (EPPEN/Unifesp). Seu trabalho interdisciplinar concentra-se nas áreas de sociologia política e urbana, formação e pensamento social brasileiro, movimentos sociais e participação popular, políticas públicas e direitos sociais.
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Sertão, sertões - Editora Elefante
Apresentação
um caminho até Canudos
Canudos resiste. Resistem os malditos, antes e agora, contra o extermínio e a violência como fundamento da formação da terra, do homem e da luta brasileira. Canudos é expressão concreta da ação política dos pobres e dos camponeses e das disputas pelo sentido da existência das classes populares na produção da nação. As lutas ocorridas no sertão da Bahia entre 1896 e 1897 são nomeadas como guerra
. A fotografia de Flávio de Barros intitulada 400 jagunços prisioneiros é a alegoria do massacre em ato. Mulheres e crianças, em sua maioria, sentadas, ajoelhadas ou acocoradas, com expressões dramáticas no limiar da condição humana. Por detrás, em semicírculo, os militares que as aprisionam. A lente da câmera completa o cercamento, confinando os sobreviventes. Pouco tempo depois, seriam executados. O fogo já havia ardido Canudos. Fuzilamentos e degolas a jusante e a montante da imagem são justificadas pela captação técnica da imagem como representação da realidade e da verdade sobre o episódio: o triunfo dos vencedores sobre a tradição dos oprimidos.
Os sertões, escrito por Euclides da Cunha anos depois de suas reportagens como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, se apresenta como figuração real, fidedigna e poética da suposta guerra. Por pelo menos cinquenta anos, a obra foi considerada um documento definitivo sobre a história de Canudos, naturalizando e tomando como verdade inequívoca a versão dos vencedores. A arma usada pelo autor—a narrativa—é de um calibre poderoso: uma faca ainda mais amolada, servindo de instrumento propagandístico e documento-testemunho de força frente à produção de ideologias insurgentes. O Exército e as classes dominantes, aliançadas no domínio do butim terra e capital, buscavam na opinião pública a justificativa do autoritarismo e a resolução completa das disjunções entre sociedade e Estado. A equação positivista seria resolvida no combate ao povo.
Canudos questiona o lugar do latifúndio na formação territorial brasileira e do pacto político republicano do cativeiro da terra; mobiliza a problemática dos sertões no pensamento social e político; institui a reflexão acerca dos massacres, do extermínio e da violência como fundamento do projeto tornado nacional. Arraial maldito
, anunciava Euclides da Cunha. Maldito povo que teima em imaginar outras saídas políticas frente ao consenso da República que prometia civilização, progresso, tecnologia. Maldito povo que não cede às campanhas militares de extermínio, demandando terra, trabalho e pão. Maldito povo que, vencido na história, clama, do alto do Morro da Favela, a tradição dos oprimidos.
O extermínio de Canudos reproduz alegoricamente as tentativas de apagamento da memória das lutas dos de baixo, da redução dos costumes e da rebeldia dos pobres ao folclore, ao atraso e ao romantismo conservador. O sertão é o Outro constitutivo do desenvolvimento civilizatório. A narrativa da luta de classes sertaneja enseja a produção de uma história sem processo: a utopia de uma satisfação pessoal sem imaginação política. Faltaria cultura à barbárie. O sertanejo—antes de tudo, um forte. Da sua fortaleza bestial emergiria um dos inimigos do desenvolvimento e da aliança terra e capital operada como coronelismo, clientelismo e mandonismo. A terra ensanguentada é parte de um capítulo para consolidar, nos trópicos, a razão última do progresso de um país de passado dito errático: o futuro; nossa saída é o futuro.
O incêndio e o genocídio operados pelo Exército brasileiro no arraial do Belo Monte—a primeira Canudos, a Canudos conselheirista—são uma das expressões da barbárie moderna proporcionada pelo projeto republicano do final do século xix, iniciado com um golpe de Estado e pactuado entre grandes proprietários de terra e militares. Da mesma maneira, as águas que alagaram a segunda Canudos, reconstruída dos escombros, não dizem respeito apenas à construção do Açude Cocorobó para combater a seca e a fome, na crença de que obras de engenharia podem mais que a redistribuição de terras.
Canudos—sua gente, seu chão, suas lutas, seus dissensos instauradores—continua em disputa. Se Canudos e os conselheiristas foram feitos inimigos da República, do progresso e do desenvolvimento, seus sobreviventes espalharam-se como sementes de resistência.
Por isso, voltamos a Canudos. Não para reconstruir o tempo de Antonio Conselheiro como monumento imóvel e petrificado. Trata-se de reconhecer, lá e aqui, o esforço de reavivar as centelhas da esperança
acesas pela tradição de rebeldia dos pobres, dos trabalhadores, dos oprimidos, que, ao escavar a própria história, vão construindo um modo de ser e de existir que permita romper com as dominações. Voltamos a Canudos, disputando e contrarrestando os significados impostos desde fora como monumento-barbárie que consolidaram a visão dicotômica e dual entre o sertão e o Brasil. Se o sertão virou o Outro do Brasil, estamos somados a muitas outras Canudos no esforço de ressignificar e renomear o próprio Brasil.
Nosso convite para este percurso pelos sertões da Bahia começa, então, com a consideração do livro icônico de Euclides da Cunha. Partimos dele não para lhe render homenagens, mas para, caminhando pelas brechas e ranhuras da história dos vencedores, encontrar as ideias que constituem a formação social brasileira: um longo processo marcado pelo conflito e pela disputa dos sentidos de pertencimento e de constituição do mundo comum, de regulação do mando privado e das formas heterônomas de existência social e dominação. Trata-se de uma disputa operada pelos sertanejos que ainda hoje se consideram conselheiristas lá em Canudos—e em outros lugares, sertões afora.
Este livro é resultado de um momento de diálogo entre pesquisadores e interessados nas coisas do sertão
ocorrido em julho de 2018, em Salvador, durante o seminário também chamado Sertão, sertões, fruto da colaboração entre a Universidade Federal de São Paulo e a Universidade Federal da Bahia no âmbito do projeto de pesquisa Contradições Brasileiras. O evento contou com a participação de pesquisadores, professores e estudantes da Universidade de São Paulo, da Universidade Estadual da Bahia, da Universidade de Brasília e do Instituto Federal de Brasília.
Em um diálogo-provocação com a estrutura d’Os sertões, nos aventuramos em três tempos-espaços. O primeiro deles toma em questão a fortuna crítica sobre a obra de Euclides da Cunha e o próprio sentido de sertão. Abrindo essa vereda dialética, trouxemos ao debate uma carta-preciosidade de Antonio Candido, relacionando as disputas retratadas n’Os sertões à luta contemporânea contra o latifúndio, empreendida pelos sem-terra. Seguimos pela trilha para pensar as imagens e narrativas hegemônicas sobre o processo de modernização brasileira e seus sujeitos, nos fios emaranhados puxados por Joana Barros; e para entender a guerra contra Canudos como momento fundante da República brasileira, na conformação da nossa estrutura agrária, nas pegadas de Gustavo Prieto. Tomando como central a produção de narrativas em torno da categoria sertão
, dialogamos sobre os sentidos do termo fora do Nordeste com Marco Tomasoni—e sobre a dinâmica nacional-regional, nas articulações litoral-sertão trazidas por Clímaco Dias.
Em um segundo momento, referência a contrapelo à primeira parte d’Os sertões, A terra
, consideramos o sertão e sua natureza, que tanto impressionaram as pessoas que ali chegaram, desnaturalizando-a. Aqui estamos em companhia do geógrafo Aziz Ab’Saber, cujo texto aborda as categorias descritivas e classificatórias através das quais lemos o semiárido brasileiro como construções sociais e em diálogo com as estruturas socioeconômicas. Com Grace Bungenstab Alves, entendemos a paisagem sertaneja como resultado de um manejo, em longa duração, das condições biofísicas e geográficas do sertão. E, a partir dos dados sobre seca, que parecem constituir a condição per se do sertão-semiárido, o regime de chuvas e estiagens emerge, no texto de Paulo Zangalli Junior, como uma fina articulação entre condições do lugar e ação humana.
No terceiro momento de nosso diálogo rebelde, o homem
e a luta
—em diálogo com a segunda e a terceira partes d’Os sertões—surgem completamente misturados, assim como na vida. Os homens e as mulheres aqui trazidos estão em luta na terra, ou melhor, por sua terra, por suas formas de vida, por si mesmos. Nessa caminhada, com Felipe Estrela, seguimos os passos dos camponeses-sindicalistas do sertão, em suas formas de ação coletiva que encontram as brechas por onde se fazer, como as águas do Opará—nome originário do Rio São Francisco. Cloves dos Santos Araújo nos revela os enfrentamentos levados a cabo pelos sertanejos para seguirem comunitariamente na terra, como nos fundos e fechos de pasto. A resistência cotidiana que, hoje, reinventa a tradição conselheirista é narrada por João Batista, descendente dos canudenses daquela época. Elisa Verdi, Caio Marinho e Gabriela Carvalho escrevem sobre o deslumbre-vislumbre da atualidade das contradições do sertão-Brasil.
Este livro se pretende parte do diálogo e da disputa. E é também uma aposta: somente a tradição dos oprimidos, repensando contradições e reconstruindo veredas, será capaz de despertar as centelhas da esperança por uma vida vivida como construção compartilhada da utopia. Canudos resiste, lá e aqui.
Os organizadores
Maio de 2019
Parte 1
No chão
d’Os sertões e suas veredas
Martírio e redenção
Antonio Candido
Às vezes penso de que maneira pode ser lido hoje, cem anos depois, o clássico final da primeira parte d’Os sertões, de Euclides da Cunha:
O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida.
Nasce do martírio secular da Terra…
Em nossos dias o martírio da terra não é apenas a seca do Nordeste. É a devastação predatória de todo o país e é a subordinação da posse do solo à sede imoderada de lucro. Se aquela agride a integridade da Natureza, fonte de vida, esta impede que o trabalhador rural tenha condições de manter com dignidade a sua família e de produzir de maneira compensadora para o mercado. Hoje, o martírio do homem rural é a espoliação que o sufoca.
Como consequência, tanto o martírio da terra (ecológico e econômico) quanto o martírio do homem (econômico e social) só podem ser remidos por meio de uma redefinição das relações do homem com a terra, objetivo real do mst. Por isso, ele é iniciativa de redenção humana e promessa de uma era nova, na qual o homem do campo possa desempenhar com plenitude e eficiência o grande papel que lhe cabe na vida social e econômica, porque as lides da lavoura são componente essencial de toda economia saudável em nosso país. Por se ter empenhado nessa grande luta com desprendimento, bravura e êxito, o mst merece todo o apoio e a gratidão de todos. Nele palpita o coração do Brasil.
Carta escrita em abril de 2001.
Acervo familiar. Publicada com o consentimento dos gestores do acervo do autor.
Desenvolvimento e
narrativas do atraso:
a campanha contra Canudos e as veredas da resistência
Joana Barros
De que há lembrança? De quem é a memória?
— Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento
Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.
— Walter Benjamin, A imagem de Proust
Este texto nasce de uma inquietação: entender a figuração do sertanejo presente na obra icônica de Euclides da Cunha, Os sertões, e tomado como alegoria para pensar a figuração da pobreza e do trabalho, dos pobres e dos trabalhadores durante a formação brasileira recente. Além disso, busco tematizar a disputa em torno do aparecimento desses sujeitos ao longo de nossa história, a encenação pública que fazem de sua condição e a disputa do sensível
que empreendem.
Essa inquietação colocada em texto é certamente alguma loucura,¹ uma tentativa de expor um lampejo da leitura fragmentada e nada sistemática d’Os sertões e um convite a caminhar por uma pequena vereda. Através dela, poderemos compreender como se constrói um discurso uníssono em torno do desenvolvimento e do progresso, lá e aqui—discurso que necessita, por sua vez, da construção do seu inteiramente Outro, no caso, o atraso, encarnado, nesse tipo de discurso, por muitos sertanejos, pobres e trabalhadores.
Todo documento de cultura é um documento de barbárie.
É sob a perspectiva trazida por Walter Benjamin (1994) que ouvimos os dois relatos sobre Canudos produzidos por Euclides da Cunha: as reportagens, escritas durante a Expedição Moreira César e publicadas no jornal O Estado de S. Paulo, e o livro Os sertões. Considero a campanha contra Canudos não apenas como uma grande obra de barbárie: a construção de um discurso sobre o que se passou ali no final do século xix também traz em si as contradições que constituem a modernização e o desenvolvimento. O esforço de contar, informar, explicar e, portanto, estabelecer alguma legibilidade ao que se viu e viveu nessa marcha contra o suposto atraso de Canudos, de Antonio Conselheiro e dos sertanejos rebelados é lido, aqui, a partir da articulação entre seus dois tempos de escritura—o das reportagens, feitas no calor da guerra de Canudos, e o do livro, escrito pelo autor anos depois.
A tarefa deste artigo está longe de ser uma crítica genética ou uma leitura exaustiva do texto que imortalizou Euclides da Cunha—e, em certa medida, a própria campanha contra Canudos. Busco trazer alguns elementos que ajudem a abrir uma vereda por onde caminhar, um lugar a partir do qual pensar o desenvolvimento e as narrativas do atraso que o estruturam e que são constantemente reatualizadas conforme a modernização brasileira avança pelos anos.
Os sertões e seu campo de
debates para além da literatura
Os sertões se tornou uma marca impossível de ser ignorada nos estudos literários. O livro é lido e pesquisado tanto em si mesmo, como obra de literatura, na sua cadência interna, quanto como documento da investida sobre Canudos, mostrando a força política² que tal empreendimento discursivo teve e tem até hoje. Desse ponto de vista, Os sertões é um elemento vivo e em disputa, embora parte substantiva da empresa operada pelo autor e pela própria obra tenha sido paradoxalmente a de petrificar e congelar no tempo o episódio que narra e seus sujeitos.
Reconhecemos, como Walnice Nogueira Galvão, o movimento pendular da análise, que ora privilegia a guerra de Canudos, ora se destina ao livro em si. A autora nos mostra os três grandes momentos desse campo literário-político. Entre 1902, quando é publicado Os sertões, e a metade do século xx, constitui-se um primeiro momento, marcado pela presença e pelos efeitos do lançamento da obra, na esteira da própria trajetória de Euclides da Cunha, que, em 1903, logo depois da publicação, se tornaria um imortal da Academia Brasileira de Letras.
Em 1950, a mais importante guinada
de tal análise é conduzida pelo lançamento de O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro.³ A tese de José Calasans não só voltou o olhar diretamente para aspectos específicos da guerra de Canudos, mas trouxe ao centro do debate novas perspectivas sobre a vida e a morte do arraial, tornando "obsoleta a hipótese de uma loucura coletiva que se apoderara de Antonio Conselheiro e contagiara seus adeptos, interpretação que predominara durante bom tempo, inclusive em Os sertões (Galvão, 2016, p. 612). A partir de então, leituras que tomavam Canudos como um acontecimento patológico cederam lugar a abordagens que assinalavam o
esforço [dos canudenses] de inventar novas formas de vida em comum" (ibidem). Importa sublinhar o uso das histórias de vida, da história oral e do registro da memória dos conselheiristas, que passam a ser elementos fundamentais na construção de uma perspectiva renovada sobre a história de Canudos. Esse é um momento potente de estudos sobre Os sertões, dado o diálogo entre as ciências sociais e o campo mais sistemático da crítica literária.
A partir da década de 1980, inaugura-se um terceiro momento, configurado pelas novas tendências trazidas pelos textos de Antônio Houaiss, Luis Carlos Lima e Roberto Ventura, que explicitam a importância de Euclides da Cunha e d’Os sertões em sua formação intelectual.
Essa periodização em três momentos mostra bem a luta em torno dos sentidos de Canudos, d’Os sertões e das apropriações de seus legados, e revela ainda a maneira como essa obra-monumento inscreveu uma forma de ler e pensar Canudos e o próprio campo literário—forma que é, sobretudo, política.
Evidentemente, não há uma cessão de lugar para as leituras renovadas, como por vezes pode parecer em qualquer periodização, e sim uma disputa em torno de como se relacionar com um mesmo momento da história, em torno das formas pelas quais o presente se dirige ao passado, e uma construção constante do passado através da memória, que, a partir do agora, se dirige ao antes em um movimento de despertar no passado as centelhas da esperança
, como diria Benjamin (1994, p. 224). Aí reside a importância de retornar aos sertões do Brasil e a Os sertões. E, nesse movimento, escovar a história a contrapelo
(idem, p. 225), entendendo que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer
(idem, p. 224).⁴
Por outro lado, a periodização de Walnice Nogueira Galvão opera um corte entre aquilo que foi produzido por Euclides da Cunha antes da publicação do livro (as reportagens de guerra) e o próprio livro. Reconhecendo que as reportagens subsidiam A luta
, parte final d’Os sertões, Galvão (2016, p. 621) argumenta que a obra é "o maior mea culpa da literatura brasileira", em um contexto de desconstrução de uma imagem erigida pela República—através de uma disputa pública nos jornais e em outros textos da época—do inimigo nacional frente às atrocidades cometidas pelo Exército brasileiro no massacre de Canudos. Onde Galvão lê ruptura, porém, eu vejo continuidade e articulação. Aqui reside um dos pontos do argumento que busco desenvolver. Para tanto, é importante revisitar alguns elementos da própria guerra de Canudos. Nesse caminho, vamos buscando as veredas necessárias à análise.
■
A guerra de Canudos, que teve fim em 5 outubro de 1897, é como ficou conhecido o enfrentamento e a dizimação de Canudos pela Expedição Moreira César, a quarta arremetida do Exército brasileiro à região com o intuito de derrotar Antonio Conselheiro e seus seguidores.
Um bando itinerante de crentes liderados por um pregador leigo, Antonio Conselheiro, depois de perseguido muitos anos por toda parte no interior dos estados do Nordeste, acaba por se refugiar numa fazenda abandonada, no fundo do sertão da Bahia, numa localidade chamada Canudos. Pequenos contingentes de tropas, enviados contra eles em mais de uma ocasião, foram rechaçados. Preparou-se então uma expedição maior, que passaria para a história como a terceira expedição, sob o comando do coronel Moreira César. Esse militar se distinguira na repressão à Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, já no período republicano, tornando-se conhecido pelo apelido de Corta-Pescoço. A expedição dirige-se a Canudos e, no primeiro ataque, bate em retirada com pesadas perdas, inclusive a de seu comandante, numa debandada geral, deixando cair peças de roupa, mochilas, armas e munições. (Galvão, 2016, p. 619)
A Expedição Moreira César, então, batizada em homenagem ao comandante caído, constituiu-se após três enfrentamentos maiores e o alarme nacional diante do fracasso da terceira expedição. Canudos foi a primeira revolta popular enfrentada pelo Exército da República, nos primeiros anos do novo regime. A quarta expedição foi formada por duas colunas: a primeira foi emboscada pelos conselheiristas no que ficou conhecido como Vale da Morte, e a segunda foi responsável pelo massacre de Canudos, dias após ter socorrido o que sobrara da primeira coluna.
Euclides da Cunha foi membro do Exército—parte fundamental naquele momento de constituição do Estado brasileiro—, além de republicano e positivista. As marcas do militarismo, tanto na formação do autor quanto da própria República brasileira, são visíveis e desempenham papel importante na construção da nacionalidade. Tais marcas também influenciaram a própria maneira como os inimigos
da República foram tratados desde sua instauração—e, embora não seja o objeto deste texto, a articulação entre a construção da colônia, do país monárquico e, finalmente, da República, também são importantes.
O fato de Euclides ter feito seus estudos completos na Escola Militar do Rio de Janeiro, de onde saiu apto para se profissionalizar como engenheiro militar, pesa poderosamente em seus escritos. Essa era uma escola de ponta que, produzindo vanguardas, constituiria um foco modernizador e teria atuação marcante na política brasileira, sobretudo na década em parte da qual Euclides foi aluno. (Idem, p. 618)
As marcas do militarismo e sua relação não só com a constituição da República no Brasil, mas com a própria constituição da modernidade latino-americana estão presentes na tensão apontada por Ángel Rama, que sublinha em tal relação a produção de obras literárias sobre as revoltas de populações rurais em toda a América Latina por parte de militares ou autores vinculados aos exércitos nacionais.
Não por coincidência, várias obras que registram os protestos rurais foram escritas por militares ou escritores vinculados ao Exército. A explicação é óbvia: quem levou a cabo a repressão em todo o continente foi o Exército, seja porque exercia diretamente o poder Executivo (caso de México, Uruguai e Colômbia), seja porque foi a sustentação principal dos governos civis (como na Argentina e no Brasil). Em qualquer dos casos, quem levou adiante o projeto modernizador e pôde viabilizá-lo foi o Exército, o que é possível considerar de outra maneira: somente a força repressiva de que dispunha o Exército era capaz de impor o modelo modernizador, já que implicava uma reestruturação econômica e social que castigaria ingentes populações rurais, forçando-as a uma rebelião despreparada. (Ángel Rama, em Galvão, 2016, p. 617, livre tradução)
O apontamento de Rama sublinha parte de minha impressão sobre o lugar muito particular e