Judicialização da Saúde: saúde pública e outras questões
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Sobre este e-book
O alcance de sua importância é ilimitado e afeta, direta ou indiretamente, a vida de TODOS os brasileiros, que dependem, em maior ou menor medida, dos serviços públicos de saúde. É necessário, assim, debruçar-se sobre as demandas de saúde com um olhar mais atento, técnico e holístico, centrado numa compreensão adequada do direito previsto na Constituição, que é garantido mediante políticas sociais e econômicas que observem a universalidade e a igualdade.
Nesse contexto, a obra trata, detalhadamente, das principais questões materiais e processuais presentes no âmbito da judicialização da saúde.
Escrito por advogados públicos, o livro foi escrito para fomentar debates importantes e, também, para auxiliar de forma prática os operadores do Direito que atuam nas demandas, com capítulos temáticos de consulta direta.
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Judicialização da Saúde - Cynthia Pereira de Araújo
Aos pacientes, os que são e os que hão de se tornar,
razão última desta obra. Aos pacientes, os que são e os que hão de se tornar, razão última desta obra.
AGRADECIMENTOS
Para resolvermos um problema, precisamos, antes, reconhecer que ele existe. Nossos sinceros agradecimentos a todos que lutam para que a judicialização da saúde seja reconhecida como um problema.
Agradecemos aos Desembargadores João Pedro Gebran Neto e Renato Luís Dresch, pelo empenho com que se dedicam à otimização na judicialização da saúde, bem como por nos honrarem com seus prefácios.
Agradecemos aos grandiosos colegas da Advocacia-Geral da União e aos membros do Comitê de Saúde de Minas Gerais, que, apesar de todas as adversidades, fazem-se diariamente maiores que o problema.
Ao Dr. José Luiz Nogueira e ao Dr. Alexandre Ribas, agradecemos a disponibilidade e generosidade em auxiliar os operadores do Direito a entender um pouco de Medicina.
E ao servidor da Advocacia-Geral da União Diego de Matos Vieira e aos estagiários Ana Thereza Chaves Barcellos da Motta, Felipe Etchalus Thadeu, Henrique Frasca Grillo e Nadine Schröder Pfeifer, agradecemos o auxílio na compilação de material e dados estatísticos.
Todo o meu amor ao Daniel, a meus pais e minha irmã, que são corresponsáveis por tudo que me proponho a fazer.
E minha gratidão aos amigos Éder e Silvana, pela parceria fácil e otimista.
Cynthia Pereira de Araújo
A Adriana, Gabriela e Davi, pelo amor que trazem a nossa pequena família.
À Advocacia-Geral da União, pela vivência e inquietação que impulsiona o estudo, e àqueles que lutam diariamente pelo seu fortalecimento como instituição de Estado.
Éder Maurício Pezzi López
Aos meus pais, Antônio e Maria Cândida, com quem aprendi os valores que realmente importam e que, apesar da ausência física, são a presença mais constante em mim.
Ao meu marido, João Sílvio, cujo amor e incentivo me fazem prosseguir.
Aos amigos Cynthia e Éder, por me acolherem nessa parceria.
Silvana Regina Santos Junqueira
Table of Contents
Capa
Folha de Rosto
Créditos
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
PREFÁCIOS À PRIMEIRA EDIÇÃO
PREFÁCIO I
PREFÁCIO II
1. INTRODUÇÃO
2. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
2.1 - ANTECEDENTES DA CRIAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS
2.2 - O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE PRECONIZADO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SUA CONFORMAÇÃO LEGAL
2.3 - PRINCÍPIOS E DIRETRIZES DO SUS
2.3.1 - Universalidade
2.3.2 - Igualdade
2.3.3 - Integralidade
2.3.4 - Descentralização, regionalização e hierarquização das ações
2.3.5 - Gestão compartilhada e participação social
2.3.6 - Outros princípios
3. PANORAMA DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
3.1 - EVOLUÇÃO DO QUANTITATIVO NACIONAL DE AJUIZAMENTO DE NOVAS DEMANDAS
3.2 - EVOLUÇÃO DO QUANTITATIVO DE AJUIZAMENTOS SEGUNDO A PRESTAÇÃO E O RITO PROCESSUAL
3.3 - MEDICAMENTOS MAIS PLEITEADOS
4. RACIONALIDADE DAS DECISÕES E JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
4.1 - MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS (MBE) E AVALIAÇÃO DE TECNOLOGIAS EM SAÚDE - ATS
4.2 - (IN)QUESTIONABILIDADE DO LAUDO MÉDICO
4.3 - A PERÍCIA JUDICIAL E O ASSESSORAMENTO ADEQUADO DO JULGADOR
4.4 - INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS EM SAÚDE NO ÂMBITO DO SUS
4.4.1 - A Avaliação de Tecnologias em Saúde
4.4.2 - O papel da Conitec
4.4.3 - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas
5. A RESPONSABILIDADE DOS ENTES FEDERATIVOS NAS DEMANDAS DE SAÚDE: LEGITIMIDADE, SOLIDARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE
5.1 - PANORAMA GERAL E SITUAÇÃO ATUAL
5.1.1 - A solidariedade e as dificuldades que o entendimento jurisprudencial fixado acarreta46
5.1.2 - A constitucionalização do direito civil e a necessidade de interpretar eventual solidariedade em consonância com o arcabouço constitucional vigente49
5.2 - O SISTEMA CONSTITUCIONAL DE REPARTIÇÃO FEDERATIVA DA PRESTAÇÃO DE SAÚDE PÚBLICA
5.2.1 - Modelos de repartição de competências federativas e a opção brasileira de 1988
5.2.2 - A competência comum para a prestação do serviço de saúde não implica solidariedade irrestrita para a sua execução concreta
5.2.3 - A subsidiariedade como critério de divisão de atribuições na prestação da saúde58
5.2.4 - Panorama atual das políticas de prestação da saúde pública no âmbito do SUS
5.2.4.1 - Atenção básica, média e alta complexidade
5.2.4.2 - Política de assistência farmacêutica
5.3 - PELA CONSTRUÇÃO DE UM MODELO JUDICIAL CONSTITUCIONALIZADO, COM RESPEITO ÀS NORMAS SISTÊMICAS DO SUS
5.3.1 - O direcionamento da obrigação ao ente federativo pertinente – eficiência e atenção ao melhor interesse do paciente65
5.3.2 - A repartição do ônus financeiro da prestação objeto de condenação judicial
6. POLÍTICAS DE SAÚDE E REQUISITOS DE ACESSO
6.1 - NECESSIDADE DE RECEITA DETALHADA. ADOÇÃO DA DENOMINAÇÃO COMUM BRASILEIRA. POTENCIAL OFENSA AO ART. 3º DA LEI Nº 9.787/99
6.2 - DEMANDA CONTRA O PODER PÚBLICO E TRATAMENTO FORA DO SUS
6.3 - POLÍTICA DE ATENÇÃO ONCOLÓGICA
6.4 - POLÍTICA DE ATENÇÃO A PESSOAS COM DOENÇAS RARAS
6.5 - A AUSÊNCIA DE REGISTRO OU AUTORIZAÇÃO PELA ANVISA
6.6 - A HIPOSSUFICIÊNCIA DA PARTE AUTORA COMO REQUISITO PARA A CONCESSÃO JUDICIAL DE PRESTAÇÕES DE SAÚDE CONTRA O PODER PÚBLICO
6.6.1 - Parte autora com plano de saúde em demanda contra o Poder Público
6.7 - BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS
6.8 - FORMAS DE CUMPRIMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS E CONTRACAUTELAS
7. OUTRAS QUESTÕES SUSCITADAS NO ÂMBITO JUDICIAL
7.1 - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
7.2 - COBRANÇA POSTERIOR POR TRATAMENTO REALIZADO FORA DO SUS
7.3 - RESSARCIMENTO POR PARTE DAS OPERADORAS DE PLANOS DE SAÚDE AO SUS
7.4 - PROIBIÇÃO DE DIFERENÇA DE CLASSES NO SUS
7.5 - IRREGULARIDADES EM PROCESSOS JUDICIAIS CONTRA O PODER PÚBLICO
7.6 - RESPONSABILIDADE DOS LABORATÓRIOS
7.6.1 - Questões processuais envolvendo a responsabilização da indústria farmacêutica
7.7 - PENALIZAÇÃO DE ADVOGADOS PÚBLICOS
7.8 - LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E AÇÃO COLETIVA COM EFEITOS ERGA OMNES
REFERÊNCIAS:
ANEXO I: COMPILAÇÃO SUMÁRIA DE SUBSÍDIOS DO SUS SOBRE AS PRESTAÇÕES MAIS PLEITEADAS
ANEXO II: QUESITOS IMPORTANTES NA REALIZAÇÃO DE PERÍCIAS MÉDICAS
ANEXO III: ENUNCIADOS APROVADOS NAS I, II E III JORNADAS DE SAÚDE DO CNJ
ANEXO IV: LISTA DOS PROTOCOLOS CLÍNICOS DO SUS
ANEXO V: DECISÕES SOBRE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS TOMADAS PELA COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS – CONITEC
ANEXO VI:ARTIGO DE OPINIÃO: QUAL A MINHA RESPONSABILIDADE NA PRESCRIÇÃO DE TRATAMENTOS EM TESTE PARA COVID-19?
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
Em 2016, lançamos a primeira edição desta obra, que rapidamente se esgotou.
Dada a velocidade com que as normas e julgamentos referentes a matérias de saúde se alteram, resolvemos não reeditar a obra, mas promover uma revisão e atualização completas.
Essa missão tornou-se especialmente difícil, diante das importantes decisões proferidas pelos Tribunais Superiores nos últimos anos, algumas sem a publicação de acórdão mais de um ano depois de sua prolação. Além disso, dados relevantes vêm sendo produzidos e quisemos abordá-los, a fim de que esta obra fosse tão completa quanto possível.
O assunto, no entanto, continua sendo dinâmico e é necessário encerrar este ciclo, mesmo cientes do fato, não incomum em obras jurídicas, de que a atualização absoluta é uma quimera.
Assim, apresentamos a nossa contribuição a esta matéria tão sensível e ainda tão carente de pesquisas aprofundadas no mercado editorial brasileiro.
Dezembro de 2020
Cynthia Pereira de Araújo e Silvana Regina Santos Junqueira
PREFÁCIOS À PRIMEIRA EDIÇÃO
PREFÁCIO I
PREFÁCIO I
(...)
Eu tô sem segurança, sem transporte, sem trabalho, sem lazer
Eu num tenho educação, mas saúde eu quero ter
Já paguei minha promessa, não sei o que fazer!
Já paguei os meus impostos, não sei pra quê?
Eles sempre dão a mesma desculpa esfarrapada:
A saúde pública está sem verba
E eu num tenho condições de correr pra privada
(trecho da música SEM SAÚDE, de Gabriel O Pensador)
Com grande alegria recebi o convite para prefaciar esta obra sobre direito à saúde. Para além da honra do convite, fiquei extremamente feliz em compartilhar esta tarefa com o Desembargador Renato Dresch, um dos maiores conhecedores do tema no Brasil, tanto do ponto de vista acadêmico e jurisdicional, quanto dos problemas que assolam o sistema brasileiro de saúde. Também foi motivo de satisfação constatar que os autores, a despeito da posição profissional que ocupam, trataram da matéria com grande isenção, problematizando as questões e apresentando soluções adequadas, trazendo dados estatísticos e propondo a verticalização da discussão quanto ao mérito daquilo que pode ser devido aos indivíduos na saúde.
O direito sanitário é um grande desafio para a administração pública, para o Poder Judiciário e, principalmente, para aqueles que se dedicam a estudá-lo com profundidade e seriedade.
Tratando-se de questões relacionadas à saúde, as variáveis são quase infinitas e os recursos escassos. O vivenciado pelo Brasil em 2016 está a confirmar a volatilidade dos temas e a ausência de dinheiro. As crescentes epidemias de dengue, chikungunya e zika vírus são exemplos de como a saúde pública pode ser afetada pela realidade, inclusive ganhando dimensão mundial em curto tempo. A crise orçamentária (juntamente com a política, administrativa, financeira, e porque não moral) que assola o país impôs corte de recursos na já subfinanciada saúde pública.
Estes dados acarretaram efeitos explosivos. Os recursos que eram escassos diminuíram. Não há dinheiro sequer para custear aquilo que o Estado se comprometeu a prestar na saúde pública. Haverá decréscimo no número de leitos disponíveis no SUS, não serão contratados novos profissionais de saúde (sequer para repor os cargos que vagarem) e não haverá recursos suficientes para exames e equipamentos (sequer para adquirir os medicamentos previstos na lista RENAME). De outro norte, é imperioso o dispêndio de valores para fazer frente à epidemia, tanto na prevenção quanto no tratamento dos milhares de enfermos. Isto sem falar do sem-número de crianças que nascerão com sua saúde comprometida, possivelmente pela contaminação da gestante pelo Zika vírus.
O cenário é caótico e real.
Para enfrentá-lo será necessária uma adequada compreensão dos problemas, um enorme esforço nacional para manter o custeio da saúde pública e uma ativa participação social, porque não se combatem essas mazelas apenas com iniciativas do poder público, mas com envolvimento de toda a sociedade.
Todavia, em momentos de crise abrem-se janelas de oportunidades para reflexão sobre o que se deseja, sobre as políticas vigentes e, especialmente, sobre o que é necessário mudar para atingir as metas.
Dentro da Judicialização da Saúde, este pode ser um momento para viragem paradigmática da hermenêutica. É preciso ultrapassar a concepção de um direito à saúde ilimitado, resultado de baixíssimo senso crítico quanto às consequências das decisões judiciais. Também deve ser superada a interpretação simplista do artigo 196 da Constituição Federal, limitada à expressão saúde é direito de todos e dever do Estado
, ignorando que o preceito constitucional é mais extenso que esta primeira parte. É urgente que se faça uma compreensão mais dilargada e profunda, verificando as possibilidades fáticas e jurídicas do direito à saúde, sabendo-se que a interpretação de qualquer preceito constitucional há que tomar os dados da realidade (âmbito normativo) como um dos seus pressupostos, como defendido por Friedrich Muller¹, para se obter a norma de decisão.
Neste contexto se insere este qualificado trabalho, que suplanta a literalidade constitucional e os discursos demagógicos sobre um suposto super direito à vida
para aprofundar a discussão.
A compreensão holística dos problemas da saúde apresentada pelos autores, iniciando com a história e desenvolvimento das políticas públicas de saúde, bem demonstra que um longo caminho foi percorrido até a criação do Sistema Único de Saúde. E muito há para ser feito.
A utilização dos princípios que norteiam o SUS, como fio condutor da obra, é opção adequada para conclusões sobre o sopesamento entre os direitos fundamentais e as políticas públicas.
Também merece realce o apontamento da Medicina Baseada em Evidência como ferramenta essencial para diferenciar tratamentos (e/ou procedimentos) com qualificado amparo científico de prescrições que ainda não tenham o mesmo suporte. Esta ferramenta, e isto merece ser destacado, é criação feita por médicos e para médicos para auxiliar na pesquisa quanto às melhores, mais eficazes e mais reconhecidas soluções para área da saúde. São diversos os meios de pesquisas quanto às evidências, bem como diversos graus de evidências, que auxiliam a prática da medicina e, via de consequência, podem ajudar na racionalidade do Poder Judiciário. O sítio eletrônico do Centro Cochrane do Brasil (www.centrocochrane.com.br) ou a PUBMED (www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/) são exemplos de locais de pesquisas na rede mundial de computadores. Há também bibliografia específica, para médicos e para leigos, que fornecem poderoso auxílio. Dentre tantos, cito um com nome muito sugestivo: Medicina Baseada em Evidências – seguindo os passos de Sherlock Holmes², no qual o autor sueco traz ilustrativos exemplos de pesquisa para demonstração de evidências.
Os autores ainda colacionam os enunciados aprovados nas duas Jornadas da Saúde promovidas pelo Fórum do Judiciário para a Saúde do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. A evocação deve ser festejada, porque indicativa da racionalidade empregada pelos autores na busca por soluções dentro das balizas legais e com fundamento nas melhores práticas desenvolvidas.
Assim, o desenvolvimento destas premissas permitiu aos autores apontarem e enfrentarem com profundidade os mais tortuosos temas do direito à saúde, como a responsabilidade dos entes federativos no cumprimento de decisões judiciais; a compreensão da solidariedade no âmbito do SUS; a hipossuficiência como requisito para concessão judicial de prestação de saúde contra o Poder Público; o bloqueio judicial de verbas públicas; a cobrança judicial de despesas realizadas pelo indivíduo junto à saúde suplementar; o ressarcimento ao SUS pelas operadoras de planos de saúde, entre tantos objetos espinhosos.
No desfecho da obra, trazem anexos sobre as pretensões que são mais comumente demandadas para os custosos tratamentos oncológicos e outros dispendiosos tratamentos não-oncológicos, além de modelos de quesitos para perícias.
Este sumário, por si só, é indiciário da importância, pertinência e abrangência do estudo, que desde logo se torna imprescindível para quem busca trabalhar com o direito à saúde.
Os autores se propuseram o desafio de enfrentar complexas questões relacionadas ao direito à saúde e se houveram com êxito, trazendo importantes reflexões e soluções muito adequadas. Não são – e nem poderiam ser – respostas definitivas sobre intrincados problemas, mas são proposições que auxiliam na qualificação do debate, propugnando por processos judiciais que enfrentem com propriedade e profundidade a questão de fundo.
João Pedro Gebran Neto
Desembargador Federal do TRF4
Membro do Comitê Executivo Estadual da Saúde do Paraná
1 - MULLER, Friedrich. Interpretação e Concepções Atuais dos Direitos do Homem
, in Anais da XV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, p. 540 e s.
2 - Nordenstrom, Jorgen, Editora Artmed, Porto Alegre, 2008.
PREFÁCIO II
A Constituição brasileira de 1988 consagrou o acesso à saúde como um direito humano fundamental social, reconhecendo-a como um direito de todos e dever do Estado, ao qual cabe assegurar o acesso universal e igualitário, orientado pela diretriz de integralidade.
A Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), que regula as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes
, reafirma e especifica a garantia constitucional, e institui algumas regras de repartição da competência entre os gestores, além de definir os critérios que devem ser observados para a incorporação de novas tecnologias, porque o Brasil adotou o direito à medicina baseada em evidência.
As dificuldades do Estado brasileiro para instituir as políticas públicas que assegurem o acesso universal e o atendimento integral à saúde despertaram na população a necessidade de buscar amparo no Poder Judiciário, produzindo o fenômeno da judicialização da saúde. A partir do ano de 2005 houve um exponencial crescimento no número de demandas para a garantia de acesso a produtos e serviços de saúde, tanto para o acesso às tecnologias já incorporadas nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas – PCDT, mas não disponibilizadas nos serviços de saúde, quanto para as inovações tecnológicas ainda não incorporadas.
Dentre as questões indutoras da judicialização da saúde, pode ser apontada a dificuldade do SUS em garantir o atendimento integral, com a disponibilização para a população em geral das tecnologias já incorporadas pelo SUS bem como a dificuldade para a rápida incorporação das inovações tecnológicas da ciência médica.
Apesar dos esforços que vêm sendo desenvolvidos para a qualificação jurídica dos magistrados, o Poder Judiciário ainda não está suficientemente preparado para a complexidade das demandas de saúde, que envolvem tanto o lobby da indústria farmacêutica como a desesperada tentativa de preservação da vida a qualquer custo. Com isso, é produzida uma avalanche de ordens judiciais determinando o acesso a produtos e serviços de saúde que muitas vezes não estão substanciados tecnicamente na medicina baseada em evidência, causando impacto nos orçamentos públicos e tumultuando ainda mais a gestão do SUS.
No ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal se apercebeu da complexidade que envolve a judicialização da saúde, quando o Ministro Gilmar Mendes convocou a Audiência Pública nº 04, na qual foram ouvidos 50 especialistas em saúde, entre os quais advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde, para subsidiar a decisão, pelo seu Plenário, da Suspensão de Tutela Antecipada nº 175-CE.
Apercebendo-se da importância do tema, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 31/2010, sugerindo diversas medidas que pudessem contribuir para qualificar as decisões do Poder Judiciário e posteriormente instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, com a finalidade de aprofundar as discussões e estudos sobre o tema.
Verifica-se que a presente obra, desenvolvida pelos Advogados da AGU Cynthia Pereira de Araújo, Éder Mauricio Pezzi López e Silvana Regina Santos Junqueira, é fruto da angústia vivida na atuação profissional dos autores com demandas de saúde. Analisam a matéria e evidenciam a busca de soluções para alguns dos problemas que envolvem a judicialização da saúde. Há uma interpretação fidedigna da normatização e regulação do direito à saúde, com a análise de alguns precedentes jurisprudenciais, abordando de forma clara os principais problemas e as dificuldades que a intervenção judicial pode causar na gestão do sistema, especialmente quando as decisões são destituídas de critérios técnicos.
Na análise de precedentes jurisprudenciais, os autores deixam evidenciado que uma grande parcela das decisões judiciais fica às margens da regulação infraconstitucional da saúde, acabando por endossar equívocos das partes, deferindo, às expensas do poder público, o acesso a produtos e serviços sem evidência científica, e, por conseguinte, impondo o dispêndio desnecessário de valores substanciosos que são muito caros para o erário, causando um impacto negativo nas contas públicas, em detrimento da coletividade.
Ao utilizarem a sua larga experiência como profissionais jurídicos na área da saúde, associado a um estudo da regulação desse direito, os autores conseguiram revelar alguns dos principais efeitos negativos causados pela judicialização desmedida.
O protagonismo responsável do Poder Judiciário é de grande importância para o aperfeiçoamento do Poder Público porque lhe impõe a adoção de medidas para dar efetividade à garantia constitucional de acesso universal e atendimento integral à saúde.
Os autores analisam o impacto da judicialização e suas nuances, indicando soluções que podem ser úteis para o amadurecimento e aperfeiçoamento técnico das demandas de saúde. Constatam a necessidade de uma atuação compartilhada da esfera jurídica com os profissionais da saúde para a qualificação das decisões judiciais, a fim de que não se tumultue ainda mais o acesso universal da população à saúde.
Os anexos da obra constituem importante instrumento de pesquisa, sobretudo quando compilam pareceres, protocolos e decisões técnicas envolvendo tecnologias em saúde.
Enfim, trata-se de obra de grande utilidade, tanto para aqueles que iniciam o estudo do direito à saúde como para os profissionais experientes que já atuam nessa temática. Mesmo para aqueles que não adiram às teses defendidas pelos autores, o contexto da obra, construída com base em aspectos legais, doutrinários e empíricos, será muito útil para todos, porque traz uma importante contribuição para a construção de novas teorias jurídicas na construção de um sistema de saúde brasileiro mais efetivo.
Renato Luís Dresch
Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Membro do Comitê Executivo Nacional da Saúde do CNJ
Coordenador do Comitê Executivo Estadual da Saúde de Minas Gerais até 2019
1. INTRODUÇÃO
A judicialização da saúde é um tema que tem sido cada vez mais corrente, não apenas nos foros do Judiciário brasileiro, mas também na mídia e na sociedade, proporcionando inúmeras discussões a respeito do papel de um Estado social no contexto de um país de dimensões continentais. O movimento sanitarista, intensificado nos anos 80, culminou com a criação do Sistema Único de Saúde pela Constituição de 1988, a qual positivou os seus princípios basilares de acesso universal, integralidade no atendimento, atendimento em redes regionalizadas e descentralizadas, dentre outros, implícita e explicitamente considerados.
Assim, do ponto de vista normativo, o Brasil é um dos países mais avançados do mundo em matéria de saúde, prevendo – ainda que executando muito menos do que se espera – uma rara universalidade e integralidade de atendimento. Essa constatação, no entanto, leva a um inevitável paradoxo. Quanto mais um sistema pretende fornecer, mais chances ele tem de falhar. Além disso, ao preconizar um tratamento amplamente universal e integral, que vai da consulta até o fornecimento de medicamentos, passando por exames e procedimentos cirúrgicos, o sistema público é diariamente confrontado por pleitos de novas prestações, sejam elas realmente inovadoras ou simplesmente opções melhores
às já existentes. É posto em questionamento, assim, qual o alcance essa integralidade
referida pela Constituição efetivamente possui.
Em relação à judicialização, pode-se dizer que o número de processos foi bastante reduzido na primeira década após a Constituição, observando-se ultimamente um incremento expressivo, tanto na Justiça Estadual quanto, em particular, na Justiça Federal. Por conta de restrições financeiras dos Estados e Municípios, dentre outras causas, bem como pela preponderância do entendimento da solidariedade irrestrita entre todos os entes, a União tem passado a integrar cada vez mais o polo passivo das demandas de saúde, trazendo muitos feitos para processamento no foro federal (CRFB/88, art. 109, I).
Apenas para ilustrar a questão, veja-se o gráfico abaixo, que demonstra o número de novos ajuizamentos por ano na Justiça Federal no Brasil³:
De 450 novas demandas em 2005, houve um salto para 9.402 novos processos em 2014, representando um incremento de cerca de 2.000% em quase uma década. Mais do que isso, o gráfico revela uma nítida tendência de aumento, baseado nos números dos últimos anos.
Paralelamente a isso, o impacto financeiro para os cofres públicos tem acompanhado essa tendência de alta, de forma muito significativa, impulsionado por novas – e caríssimas – tecnologias de exames, procedimentos e medicamentos. Conforme dados consolidados por Schulze (2019), com base nos Relatórios Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça, o número de demandas de saúde em curso chegou a mais de dois milhões em 2019. Em 2011, era pouco mais de duzentos e quarenta mil.
Além disso, ao menos desde 2015, os gastos com a judicialização da saúde superam um bilhão ao ano, apenas pelo Ministério da Saúde (UFBA, 2018). Estudos realizados pelo Tribunal de Contas da União e divulgados em 2017 (BRASIL, 2017) demonstraram que, no período de 2010 a 2015, mais da metade desses gastos corresponderam a apenas três medicamentos, não padronizados, sendo que um deles nem sequer possuía registro na Anvisa. Apurou-se, ainda que, em relação aos estados, São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina gastaram, juntos, entre 2013 e 2014, mais do que a União. No total de despesas com judicialização, 80% correspondem a medicamentos. Nove desses fármacos ainda não foram incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS)
.
A proporção tomada pela judicialização da saúde tem forçado o Judiciário e todos os operadores do direito a apreciarem as demandas não apenas sob a ótica de aspectos formais do ordenamento jurídico, mas mediante análise detalhada dos dados científicos sobre as tecnologias requeridas e impactos de diversas ordens no sistema de saúde⁴.
Nesse contexto, a presente obra foi escrita de modo a esmiuçar as principais questões que são tratadas nas demandas de saúde, incluindo não apenas discussões de direito material, mas também aspectos processuais, acrescentando-se elementos atinentes à Medicina Baseada em Evidências e avaliação de tecnologias em saúde, assim como dados ilustrativos referentes às prestações mais frequentes. Não se trata, diga-se, de uma obra restritiva do direito à saúde; o que se apregoa é que as demandas de saúde sejam olhadas mais de perto, com a devida atenção a pontos que as alegações genéricas do risco de morte
e do único tratamento possível
podem ofuscar.
Tendo em vista que, historicamente, a procedência dos pedidos em demandas de saúde se afigura como regra, os questionamentos trazidos por esta obra possuem um caráter limitador ao deferimento de toda e qualquer pretensão, demonstrando o equívoco de muitas decisões judiciais. Mas não se trata de incentivar uma restrição ao direito à saúde, e sim de abordar de forma detalhada o maior número de elementos que permitam o dimensionamento correto deste direito. Além disso, busca-se demonstrar que um olhar mais apurado pode mostrar que nem sempre o fornecimento do medicamento pleiteado pela parte, por exemplo, é o que vai melhor atender a sua necessidade.
Embora o foco desta obra seja a judicialização da saúde pública, ela é igualmente útil para a discussão que envolve a saúde privada, uma vez que, ressalvados aspectos pontuais do SUS, as matérias tratadas lhe são igualmente aplicáveis. Mais do que isso, há importantes relações entre a saúde privada e o SUS, sendo comum o anseio geral pela melhor consagração do direito constitucional à saúde.
Não se buscou desenvolver de forma extensa a parte dogmática do direito à saúde e seus consectários, para o que se remete o leitor a excelentes obras citadas nas referências do presente livro. Pretendeu-se, especialmente, discutir as questões mais importantes no âmbito da judicialização da saúde.
Inicialmente, tratou-se do SUS e de seus principais princípios (capítulo 2), apresentando-se em seguida o contexto da judicialização (capítulo 3). Posteriormente, foram abordados o assessoramento técnico adequado do julgador, com enfoque na Medicina Baseada em Evidências, e matérias específicas da saúde pública (capítulo 4). Em seguida, é tratada a repartição de atribuições do SUS entre os entes federativos, incluída a discussão a respeito da solidariedade entre eles (capítulo 5). Elencam-se, no capítulo 6, importantes questões presentes na apreciação judicial das demandas de saúde, especialmente em relação aos pressupostos para o seu trâmite, deixando-se para o último capítulo questões menos prevalentes, mas também relevantes. Ao final, manteve-se o anexo com subsídios gerais a respeito das prestações mais demandadas, atualizado, nesta segunda edição, em relação a novos medicamentos com impacto relevante no orçamento público. Além disso, apresenta-se um rol geral de quesitos para perícia, os enunciados publicados pelo CNJ por ocasião de suas três Jornadas de Saúde (2014/2015/2019), lista dos protocolos clínicos do SUS, relação das decisões sobre incorporação de tecnologias tomadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec e o artigo de opinião Qual a minha responsabilidade na prescrição de tratamentos em teste para COVID-19?
, de autoria de Cynthia Pereira de Araújo.
3 Dados obtidos a partir do Sistema Integrado de Controle das Ações da União – SICAU, sistema de gerência de processos da Advocacia-Geral da União (AGU) até 2017.
4 Não se pode desconsiderar o atual cenário de dificuldade financeira pelo qual passa a União e, em particular, diversos Estados da federação, como o Rio Grande do Sul, por exemplo, o qual tem sido historicamente maior detentor de demandas envolvendo a judicialização da saúde.
2. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
2.1 - ANTECEDENTES DA CRIAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS
A Constituição de 1988 incluiu, no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, os direitos sociais previstos em seu artigo 6º, dentre os quais a saúde. No capítulo sobre a ordem social, o artigo 196 dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O art. 198, a seu turno, prevê que as ações e serviços públicos de saúde serão organizados em uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único de saúde, de acordo com as seguintes diretrizes: o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; a descentralização, com direção única em cada esfera de governo, e a participação comunitária. Entretanto, até atingir o patamar de direito de todos e dever do Estado, a trajetória histórica do tema da saúde mostra que ele teve diversa abordagem na legislação brasileira.
As primeiras iniciativas de organização e implementação de medidas de saúde pública no Brasil deram-se de forma mais concreta no início do século XX, a partir de medidas de segurança sanitárias implementadas sob iniciativa de Oswaldo Cruz, o qual foi nomeado Diretor-geral da Saúde Pública pelo Governo Federal em 1903. Nesse sentido, tais medidas centravam-se na desinfecção e remoção de construções que apresentassem riscos sanitários, necessidade de notificação de casos de doenças infecciosas e obrigatoriedade de vacinação, as quais geraram movimentos populares contrários no Rio de Janeiro, em especial a revolta da vacina
.
Posteriormente, por iniciativa do deputado Eloy Chaves⁵, buscou-se a criação de Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs). Inicialmente implementadas para os ferroviários, foram paulatinamente ampliadas para outras categorias, sendo as CAPs geridas e financiadas pelas empresas e seus empregados, e oferecendo serviços médicos e proteção previdenciária. Já no governo Vargas, as CAPs foram substituídas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), os quais tinham status de autarquias federais e eram estruturados não mais por empresas, mas por categorias laborais.
Na seara constitucional, a Carta de 1824 não trouxe previsão expressa sobre a saúde, sendo a primeira previsão inscrita na Constituição de 1891, esta apenas mencionando em seu artigo 175 que a aposentadoria poderia ser dada aos funcionários públicos em caso de invalidez nos serviços da Nação
.
Inovando na matéria, a Constituição de 1934 previu:
I- competência concorrente da União e dos Estados para cuidar da saúde e assistência públicas
(art. 10, II);
II- assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte (art. 121, § 1º, alínea h);
III- incumbência da União, dos Estados e dos Municípios, nos termos das leis respectivas, de adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis (art. 138, alíneas f e g); e
IV- competência da União para organizar o serviço nacional de combate às grandes endemias do País, cabendo-lhe o custeio, a direção técnica e administrativa nas zonas onde a execução do mesmo exceder as possibilidades dos governos locais
(art. 140).
Em seguida, a Constituição de 1937, no art. 16, XXVII, previu competência legislativa privativa da União para legislar sobre normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança. Cabe destacar que a criação do Ministério da Saúde ocorreu em 1953, pela Lei nº 1.920, de 25.7.1953, regulamentada pelo Decreto nº 34.596, de 16 de novembro de 1953.
A Constituição de 1967, a seu turno, reafirma a competência da União para estabelecer planos nacionais de educação e de saúde (art. 8º, XIV) e legislar sobre normas gerais de seguro e previdência social e de defesa e proteção da saúde (art. 158, inc. XVII). Mantém-se ainda o vínculo entre a assistência à saúde e a condição de trabalhador, como direito desse, assegurando-se a ele assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva, além de previdência social, esta mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, para seguro-desemprego, proteção da maternidade e nos casos de doença, velhice, invalidez e morte.
Destaca-se, por outro lado, a preocupação com o custeio da assistência à saúde, conforme parágrafo único do art. 158, prevendo que nenhuma prestação de serviço de assistência ou de benefício compreendidos na previdência social será criada, majorada ou estendida, sem a correspondente fonte de custeio total
.
O teor desses dispositivos foi mantido pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, em seu artigo 165, que ao dispor sobre a Ordem Econômica e Social, assegurava aos trabalhadores a assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva
e amparo previdenciário nos casos de doença, velhice e invalidez. Houve, aí, preocupação com o custeio, com previsão da necessária fonte de custeio total
para a criação ou majoração de benefício. A assistência médica tinha natureza curativa e individual, com supremacia dos serviços médico-hospitalares supervisionados pelo extinto Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Os programas de caráter coletivo ficavam a cargo do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais.
Dallari (2008, p. 10) resume o tratamento constitucional do tema:
O direito à saúde não foi tema das constituições brasileiras anteriores a 1988, a não ser acidentalmente. Com efeito, em toda a história constitucional apenas o texto da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, sugere sua possibilidade ao conferir competência concorrente à União e aos estados para cuidar da saúde (art. 10, II). Ele assinalava, especialmente, às três esferas de governo a incumbência de adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de higiene social que impeçam a propagação das doenças transmissíveis
; e de cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais
(art. 138, f e g). Essa mesma Constituição, de efêmera duração (1), tratando da ordem econômica e social incluía entre os preceitos a serem observados pela legislação trabalhista a assistência médica e sanitária (art. 121, h). Os demais textos constitucionais se limitaram a atribuir competência à União para planejar sistemas nacionais de saúde, conferindo-lhe a exclusividade da legislação sobre normas gerais de proteção e defesa da saúde e mantiveram a necessidade de obediência ao princípio que garantia aos trabalhadores assistência médica e sanitária.
No que se refere à legislação infraconstitucional, a Lei nº 2.312, de 1954, estabeleceu normas gerais sobre a defesa e proteção da saúde, trazendo a primeira previsão legal, em seu artigo 1º, de que É dever do Estado, bem como da família, defender e proteger a saúde do indivíduo
. O Decreto nº 49.974-A/1961 regulamentou a Lei 2.312/54, sob a denominação de Código Nacional de Saúde.
A Lei nº 6.229, de 1975, dispôs sobre a organização do Sistema Nacional de Saúde, constituído, conforme seu artigo 1º, por um complexo de serviços, do setor público e do setor privado, voltados para ações de interesse da saúde, abrangendo as atividades que visem à promoção, proteção e recuperação da saúde e prevendo competências distintas para os Ministérios, para os Estados, Territórios, Distrito Federal e Municípios. Entretanto, sob a Lei nº 6.229/75, a municipalização não prosperou.
Em 1977, o governo criou o SINPAS - Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social através da Lei nº 6.439/77, composto por várias instituições, entre elas o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS e a Central de Medicamentos - CEME. O Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) foi criado para atender os trabalhadores com vínculos formais, isto é, que tivessem Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada.
Apesar de a Lei nº 6.229/75 visar à regulamentação do Sistema Nacional de Saúde, na verdade não havia propriamente um sistema, pois, as ações de saúde eram desenvolvidas de maneira fragmentada e sem nenhuma integração. A saúde coletiva era considerada um direito de todos, mas a assistência médica hospitalar individualizada era direito apenas dos trabalhadores contribuintes do Sistema Nacional de Previdência Social (PAULUS JÚNIOR; CORDONI JÚNIOR, 2006, p. 16). Vê-se que, nesse período, o sistema público de prestação de saúde era eminentemente contributivo, sendo restrito aos trabalhadores formais, os portadores de carteirinha
(MIRANDA, 2013, p. 15).
Os serviços de saúde eram administrados de forma centralizada, e prestados primordialmente por instituições privadas, que vendiam serviços ao poder público. O sistema, dessa forma, era focado na tríade paciente-médico-hospital, considerando a prestação de saúde de forma individualística (MIRANDA, 2013, p. 17), e boa parte da população não tinha acesso a ele.
A partir dessas questões, iniciou-se um profundo debate acerca do papel a ser efetivamente desempenhado por um sistema público de saúde, enfatizando-se não apenas o tratamento do indivíduo, mas também a população coletivamente considerada, de forma universal. O modelo médico assistencial privatista de atenção à saúde evoluiu lentamente para um modelo que tendia à universalização.
Nesse contexto, surgiu o chamado Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (por vezes chamado simplesmente de movimento sanitário ou sanitarista), que teve como ápice a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, a qual delineou os contornos do que seria um sistema universal e descentralizado de saúde pública.
Assim, mesmo antes da Constituição de 1988, algumas das medidas preconizadas já começavam a ser implementadas, tais como o projeto de Ações Integradas de Saúde – AIS (que delegavam algumas atribuições da União aos Estados e Municípios) e o Sistema Único Descentralizado de Saúde (SUDS), de 1987, que representou a desconcentração das atividades do INAMPS para as Secretarias Estaduais de Saúde. Passou-se a atender aos desempregados e rurícolas. Houve projetos de interiorização e de reforma ensaiados pela VIII Conferência Nacional de Saúde, com a desconcentração dos serviços (TESSLER, 2010, p. 12).
As discussões da VIII Conferência Nacional da Saúde resultaram na formalização das propostas do movimento sanitarista, cuja mobilização social se iniciara em 1976, fundadas no direito universal à saúde, acesso igualitário, descentralização e participação da sociedade, além de apontar para a municipalização como forma de implementar a descentralização. A conferência, que contou com mais de cinco mil participantes e produziu um relatório que subsidiou decisivamente a CRFB/88 nos assuntos de saúde, lançou as bases do sistema atual, o SUS. Este movimento, embora não homogêneo, produziu um amplo consenso em torno de princípios básicos que deveriam nortear a atuação do Estado na saúde, a começar pela inequívoca afirmação de que a saúde deveria ser considerada como um direito de todos e um dever do Estado, seguindo por uma compreensão bastante ampliada da saúde e de seus determinantes sociais, bem como das responsabilidades do Estado para com a saúde. Também formulou os princípios que deveriam nortear a construção de um sistema de saúde, sendo estes os elementos centrais comumente chamados de princípios e diretrizes do SUS (MATTOS, 2009, p.771).
Menicucci (2007, p. 186-187), referindo-se à Assembleia Nacional Constituinte convocada para a elaboração da CRFB/88, aduz que
esse relatório foi a base para as discussões que se travaram na Constituinte e cujo resultado final foi a incorporação constitucional de alguns dos princípios básicos defendidos e difundidos pelo movimento sanitário, sintetizados na definição de que saúde é um direito de todos e um dever do Estado.
Assim, precedida de um amplo processo de discussão realizado em vários fóruns coletivos, a exemplo da VIII Conferência Nacional de Saúde e da Comissão Nacional de Reforma Sanitária, a CRFB/88 estabeleceu um novo modelo para a saúde no Brasil, incluindo, no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, os direitos sociais previstos em seu artigo 6º, dentre os quais a saúde.
Na análise de Asensi (2010, p.35):
Deste modo, com a Constituição de 1988 e as intensas reivindicações de uma pluralidade de grupos, a saúde tomou seu lugar como um direito fundamental, cujo imperativo é a prestação positiva do Estado no sentido de concretizá-la e ampliá-la a todos os cidadãos. Em seu artigo 196, observa-se que a saúde é um direito de todos e dever do Estado
(BRASIL, 1998), o que denota a pretensão universalizante deste direito. Aqui, a saúde é caracterizada como um direito fundamental e dever do Estado, o que denota uma dupla-dimensão (direito-dever) em sua natureza.
A CRFB/88, portanto, considera a saúde como um direito fundamental, atraindo o valor e as garantias atribuídos aos direitos dessa natureza.
2.2 - O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE PRECONIZADO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E SUA CONFORMAÇÃO LEGAL
O arcabouço constitucional do Sistema Único de Saúde encontra-se, como visto, especificamente nos artigos 196 e 198 da CRFB/88, nos quais se consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado, a ser garantido por meio de políticas sociais e econômicas. Ali também se apontam os fundamentos do sistema e a sua organização.
A saúde, que antes era apenas obrigação da União, e ainda assim só para o trabalhador segurado, passou a ser dever constitucional de todas as esferas de governo. O conceito de saúde foi ampliado e vinculado às políticas sociais e econômicas e a assistência concebida de forma integral (preventiva e curativa). Definiu-se a gestão participativa como importante inovação, assim como comando e fundos financeiros únicos para cada esfera de governo (PAULUS JÚNIOR; CORDONI JÚNIOR, 2006, p. 16).
Santos e Andrade (2009, p.203-204) expõem essa nova perspectiva do direito à saúde: