A mão e a luva
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Sobre este e-book
Joaquim Maria Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) is widely regarded as among the greatest Brazilian writers of all time. The grandson of freed slaves, he was born to a poor family in Rio de Janeiro and, with little formal education, took work as a typographer's apprentice and began to write and publish at age 15. Machado went on to a successful career as a government bureaucrat and writer of romantic fiction. From the late 1870s his style became more complex and ironic, and he went onto write the ground-breaking stories and novels that would permanently charge the course of Brazilian letters, among them Don Casmurro, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas and 'The Alienist'.
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A mão e a luva - Joaquim Maria Machado de Assis
Esta é uma publicação Principis, selo exclusivo da Ciranda Cultural
© 2020 Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.
Texto
Machado de Assis
Revisão
Fernanda R. Braga Simon
Produção editorial e projeto gráfico
Ciranda Cultural
Ebook
Jarbas C. Cerino
Imagens
Anabela88/Shutterstock.com;
maxstockphoto/Shutterstock.com;
Michal Sanca/Shutterstock.com;
alex74/Shutterstock.com;
iconohek/Shutterstock.com
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
A848m Assis, Machado de
A mão e a luva [recurso eletrônico] / Machado de Assis. - Jandira, SP : Principis, 2021.
128 p. ; ePUB ; 795 KB. - (Clássicos da literatura)
Inclui índice. ISBN: 978-65-5552-339-3 (Ebook)
1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título. II. Série.
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura brasileira : Romance 869.89923
2. Literatura brasileira : Romance 821.134.3(81)-31
1a edição em 2020
www.cirandacultural.com.br
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O fim da carta
– Mas que pretendes fazer agora?
– Morrer.
– Morrer? Que ideia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco...
– Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi profundo, e o meu coração é pusilânime; por mais aborrecível que pareça a ideia da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah! Tu não sabes o que isto é?
– Sei: um namoro gorado...
– Luís!
– ... e se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o gênero humano, e Malthus perderia o latim. Anda, sobe.
Estêvão meteu a mão nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís Alves, à Rua da Constituição – que então se chamava dos Ciganos –; então, isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste, crua e desconsolada experiência.
Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justamente na ocasião em que Estêvão o ia procurar; encontraram-se à porta. Ali mesmo lhe confiou Estêvão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas histórias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu. Os dois amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os vencer, se a Luís não ocorresse uma transação.
– Pois sim – disse ele –, convenho em que deves morrer, mas há de ser amanhã. Cede da tua parte, e vem passar a noite comigo. Nestas últimas horas que tens de viver na terra dar-me-ás uma lição de amor, que eu te pagarei com outra de filosofia.
Dizendo isto, Luís Alves travou do braço de Estêvão, que não resistiu dessa vez, ou porque a ideia da morte não se lhe houvesse entranhado deveras no cérebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que é mais provável, por esses dois motivos juntos.
Vamos nós com eles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luís foi beijar a mão de sua mãe.
– Mamãe – disse ele –, há de fazer-me o favor de mandar o chá ao meu quarto; o Estêvão passa a noite comigo.
Estêvão murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram fúnebres como um cipreste. Luís viu-lhe, então, à luz das estearinas, alguma vermelhidão nos olhos, e adivinhou – não era difícil – que houvesse chorado. Pobre rapaz!
, suspirou ele mentalmente. Dali foram os dois para o quarto, que era uma vasta sala, com três camas, cadeiras de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretária – vindo a ser, ao mesmo tempo, alcova e gabinete de estudo.
O chá subiu daí a pouco. Estêvão, a muito rogo do hóspede, bebeu dois goles; acendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, enquanto Luís Alves, preferindo um charuto e um sofá, acendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre o ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem se não gorou nenhum namoro. O silêncio não era completo; ouvia-se o rodar de carros que passavam fora; no aposento, porém, o único rumor era dos botins de Estêvão na palhinha do chão.
Cursavam estes dois moços a academia de São Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e Estêvão, no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-lo dois espíritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estêvão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela bondade varonil, que é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara.
Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se não era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e, sobretudo, guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
Estêvão referira ao amigo, desde tempos, toda a história do amor, agora malogrado, suas esperanças, desalentos e glórias, e, enfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o capítulo mais delicioso do romance – no sentir dele –, caiu de toda a altura das ilusões na mais dura, prosaica e miserável realidade.
A namorada de Estêvão – é tempo de dizer alguma coisa dela – era uma moça de 17 anos, e, por ora, simples aluna-professora no colégio de uma tia do nosso estudante, à Rua dos Inválidos. Estêvão tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiu-se preso por ela, até a morte
, disse ele ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de tão estirado prazo. Qualquer que ele fosse, porém, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade é que Estêvão no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida – amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela? Estêvão dizia que sim, e devia crê-lo; alguns olhares ternos, meia dúzia de apertos de mão significativos, embora a largos intervalos, davam a entender que o coração de Guiomar – chamava-se Guiomar – não era surdo à paixão do acadêmico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.
O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.
– Faz-me um favor? – disse um dia Estêvão, apontando para a flor que ela trazia nos cabelos. – Esta flor está murcha, e, naturalmente, vai deitá-la fora ao despentear-se; eu desejava que ma desse.
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e deu-lha; Estêvão recebeu-a com igual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do céu. Além da flor, e para suprir as cartas, que não havia, nada mais obtivera Estêvão durante aqueles seis compridos meses, a não serem os tais olhares, que afinal são olhares, e vão-se com os olhos donde vieram. Era aquilo amor, capricho, passatempo ou que outra coisa era?
Naquela tarde, a tarde fatal, estando ambos a sós, o que era raro e difícil, disse-lhe ele que em breve ia voltar para São Paulo, levando consigo a imagem dela, e pedindo-lhe em câmbio, que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nele o seu magnífico par de olhos castanhos, com tanta irritação e dignidade, que o pobre rapaz ficou atônito e perplexo. Imagina-se a angústia dele diante do silêncio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que se não imagina é a dor que o prostrou – a dor e o espanto – quando ela, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo:
– Esqueça-se disso.
– Pois quanto a mim – disse Luís Alves ouvindo pela terceira vez a narração de tão cru desenlace –, quanto a mim, obedecia-lhe pontualmente; esquecia-me disso e ia curar-me em cima dos compêndios; Direito Romano e Filosofia, não conheço remédio melhor para tais achaques.
Estêvão não ouvia as palavras do amigo; estava então assentado na cama, com os cotovelos fincados nas pernas, e a cabeça metida nas mãos, parecendo que chorava. A princípio chorou em silêncio; mas não tardou que Luís Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saíam do peito, a puxar os cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d’alma tudo aquilo, tão lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e não houve remédio senão dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consolação veio a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a pouco, e as lágrimas estancaram, ao menos por algum tempo.
– Sei que tudo isto há de parecer-te ridículo – disse Estêvão sentando-se na cama –, mas que queres tu? Eu vivia na persuasão de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo não entendo o que se passou hoje. Ou o que eu supunha ser amor, não passava talvez de passatempo ou zombaria...
– Talvez, talvez – interrompeu Luís Alves, compreendendo que o melhor meio de o curar do amor era meter-lhe em brios o amor-próprio.
Estêvão ficou alguns instantes pensativo.
– Não, não é possível – contestou ele. – Tu não a conheces. É uma grave e nobre criatura, incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel.
– As mulheres...
– Já pensei se aquilo de hoje não seria uma maneira de experimentar-me, de ver até que ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Luís; eu nada afirmo; digo que pode ser. Não admira que ela fizesse esse cálculo, um bom cálculo, nesse caso, todo filho do coração...
A imaginação de Estêvão desceu por este declívio de floridas conjecturas, e Luís Alves entendeu que era de bom aviso não espantar-lhe os cavalos.
Ela foi, foi, por ali abaixo, rédea frouxa e riso nos lábios. Boa viagem!
, exclamou mentalmente o colega voltando a estirar-se no sofá. A viagem não foi longa, mas produziu efeito salutar no ânimo do namorado, adoçando-lhe as penas, circunstância que Luís Alves aproveitou para lhe falar de cem coisas alheias ao coração e diverti-lo do pensamento que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, porque fez com que o colega risse, a princípio de um riso amargo e dúbio, depois de um riso jovial e franco incompatível com intuitos trágicos. Mas, ai triste! a dor dele era uma espécie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa às vezes, às vezes mais fraca, mas