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Dom Casmurro: O filme
Dom Casmurro: O filme
Dom Casmurro: O filme
E-book168 páginas3 horas

Dom Casmurro: O filme

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Sobre este e-book

Neko Butros está decidido a produzir um filme com base no seu livro de cabeceira, Dom Casmurro. O publicitário se alia à talentosa produtora Hannah Schwartz e, juntos, eles escolhem um roteirista impaciente e começam a seleção do elenco. Tom Guerra, ator de teatro, é escalado para viver Bentinho, enquanto o galã português Guel Porto chega diretamente de Lisboa para viver Escobar. Encontrar uma intérprete para Capitu, uma das personagens mais enigmáticas da literatura brasileira, se torna um dos grandes desafi os da equipe.
Quando as gravações começam, o cenário – um casarão que parece ter saído das páginas do romance de Machado de Assis – se mostra tão misterioso quanto lindo. As cenas são gravadas em meio a uma aura de mistério que envolve a tudo e a todos. E, como se não bastasse, o talentoso trio de atores reproduz, sem que se deem conta, o tempestuoso triângulo amoroso do clássico do Bruxo do Cosme Velho.
Nesta história cheia de metalinguagem e que abarca múltiplos gêneros, além de referências ao mundo pop contemporâneo, o leitor vai enxergar o lado obscuro e surpreendente do romance, revelado na vida e na arte, como quase sempre pode acontecer...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de jan. de 2021
ISBN9786555392364
Dom Casmurro: O filme

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    Dom Casmurro - Toni Brandão

    Capa Editora Melhoramentos apresenta Dom Casmuro O Filme De Toni Brandão Baseado na obra-prima de Machado de Assis Logo da Editora MelhoramentosDom Casmuro O Filme

    TONI BRANDÃO

    Logo da Editora Melhoramentos

    SUMÁRIO

    O amigo do rei...

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Evoé, Dom Casmurro!

    Agradecimentos

    Créditos

    …PARA BETTE DAVIS, JOAN CRAWFORD, VIVIEN LEIGH, MARLON BRANDO... E ROBERTO TALMA.

    O AMIGO DO REI…

    Cut!

    Uma das traduções para cut! é corta!; no sentido de parar de rodar uma cena de cinema. É a tradução que está valendo para Hannah Schwartz quando ela mentaliza essa palavra, como se fosse uma advertência, um escudo de proteção.

    (Sempre que houver várias traduções e sentidos para palavras ou ideias, a que valerá para Hannah Schwartz será a mais cinematográfica.)

    Hannah Schwartz é produtora de cinema. Uma das mais arrojadas do momento, diga-se de passagem. E ela é esperta o suficiente para saber que precisa se defender.

    Mesmo usando todo o seu arsenal de autodefesa, está difícil para Hannah não se encantar com a euforia do pavão conectado que está sentado à sua frente…

    Quanta arrogância!

    …em um desses restaurantes da moda, onde vão pessoas que estão na moda e onde se discutem os principais assuntos da moda e que bombam nas redes sociais, como #influencers; #topmodels; #seriados; #empoderamento; #encaretamento; #osbarracosenvolvendoavidadosfamosos; #etc.

    Fica esperta!

    Mesmo atento à conversa como ele está, o pavão conectado não desgruda das telas dos três celulares, os quais assim que chegou (atrasado uns dez minutos!), pediu licença para deixar em cima da mesa.

    – …eu não acho muito educado fazer isso, Hannah. Mil desculpas. Mas eu estou com três equipes de filmagem na rua, aguardando a aprovação de dois orçamentos e esperando minha filha caçula chegar com a babá da fisioterapia. Ela torceu o tornozelo no balé.

    – Tudo bem, Neko.

    Desde que Neko Butros disse a primeira palavra, quando chegou, Hannah Schwartz entendeu que tudo o que ele fala é para mostrar o quanto é poderoso, responsável, mais poderoso, afetivo (pai preocupado!), e mais poderoso ainda.

    Neko Butros é um jovem diretor de publicidade premiado em Cannes; bancado pelos pais, bem-vestido por si mesmo e perfumado.

    Foi durante o festival de cinema de Cannes, na França, que Neko Butros e Hannah Schwartz se encontraram pela primeira vez e combinaram de se ver de novo para falar de business.

    Ela estava apresentando (e tentando vender para o mundo) um filme de baixo orçamento, mas com grande potencial para prêmios em festival. Neko Butros estava só a passeio. O festival de publicidade é separado do festival de cinema.

    Na verdade, Neko Butros nunca está em nenhum lugar a passeio. O cara estará sempre atrás de novos clientes e possibilidades para a agência de publicidade que herdou do pai.

    Uma agência, na época, quase falida; mas que ele brilhantemente adaptou aos novos tempos da comunicação mundial focando os negócios em mídias digitais.

    – …hoje a agência cuida das campanhas nas redes sociais de algumas das principais marcas do mundo; graças a mim e ao fato de eu acreditar que seria capaz de virar o jogo.

    Nem precisava Neko Butros ter começado a conversa com esse papo currículo. Para se preparar para a reunião, Hannah Schwartz já tinha vasculhado a vida e a agência dele nas redes sociais.

    – Mas não foi pra ficar me exibindo que eu chamei você para almoçar.

    – Tem certeza?

    Neko Butros sorri para Hannah Schwartz. A ironia dela soa como uma brincadeira para ele. E o cara tem o ego inflado demais para se deixar abater por ironias…

    – Atualmente, não dá pra se ter certeza de mais nada.

    – Eu nunca tive.

    O olhar arregalado que Neko Butros joga para Hannah Schwartz é de quem quer saber mais. Hannah acha que já falou o suficiente. E Neko continua…

    – Foi pra falar sobre Dom Casmurro!

    Agora quem arregala os olhos é Hannah Schwartz.

    – O livro de Machado de Assis?

    Quando tem certeza de que a bateria da curiosidade que move Hannah Schwartz está com carga total, Neko Butros começa a dizer a que veio.

    – Nós vamos fazer um filme sobre o livro Dom Casmurro. E vamos fazer o Bruxo do Cosme Velho vender mais de dez milhões de ingressos, com sua história mais intrigante.

    Hannah Schwartz não consegue camuflar a surpresa que está sentindo. Ela não esperava que o projeto sobre o qual Neko Butros quer falar com ela fosse um dos livros mais enigmáticos da literatura brasileira.

    – Você deve estar se perguntado, Hannah: quem esse moleque pensa que é? Só trabalhou com publicidade, nunca dirigiu um longa-metragem e quer começar pela obra-prima do Machado de Assis?

    Ela ainda não tinha tido tempo para pensar nisso tudo (nem achou que Neko tenha mais idade para ser reconhecido como um moleque); mas certamente pensaria, sim.

    Tem algo intrigando Hannah Schwartz mais do que a aparente arrogância de Neko Butros: mesmo sendo um "geração Y-

    ZZ

    ", um cara da era digital, em que as redes sociais é que dão a voz e o tom para tudo, ele se refere às suas ambições em um molde tido como antigo: um projeto cinematográfico.

    – Se você confiar em mim, nós vamos parar o país com esse filme.

    É o terceiro diretor, só neste mês, que diz a Hannah Schwartz uma frase parecida com essa.

    – Ninguém mais para o país com filmes para as telonas, cara. Tá todo mundo conectado nas telinhas para ver as coisas onde e quando quiser.

    – Você não precisa me ensinar o que ajudei a inventar, Hannah.

    – Ajudou a inventar?

    – Eu passo as trinta e duas horas do meu dia explorando as melhores formas de produzir conteúdo digital e tentando chamar a atenção… e o consumo!!!… para as marcas dos meus clientes.

    – Então você deveria saber que o cinema não está mais nesse lugar de tanto poder. A não ser as franquias de super-heróis e alguns dos filmes das grandes estrelas que ainda levam público relevante aos cinemas. Se bem que a maioria dessas estrelas está atuando nas produções de super-heróis ou seriados.

    Depois de Neko Butros pensar um pouco sobre o que ele acabou de ouvir…

    – Você não deveria falar mal do cinema.

    Agora é a vez de Hannah Schwartz achar graça…

    – Eu não estou falando mal de nada. E se estivesse, seria dessa sua… com todo o respeito… arrogância quase juvenil.

    O tom de Hannah Schwartz não tem nada de superioridade. Ela fala mais como alguém que está ajudando um outro alguém a diagnosticar alguma coisa.

    – Euforia…

    É com bastante segurança que Neko Butros começa a falar. Hannah Schwartz não entendeu muito bem o que ele disse.

    – …tem gente que entende como arrogância; ou ansiedade. Mas se trata de euforia. Um sentimento absolutamente saudável, transformador, e que faz a roda girar.

    – Eu não quis ofender você.

    É verdade. Hannah Schwartz não quer ofender Neko Butros. Ela está gostando cada vez mais da maneira solar como Neko está conduzindo a conversa.

    – Não é assim que eu me ofendo, Hannah. Tô acostumado. Eu passo praticamente umas 18 horas do meu dia mostrando para as pessoas que eu sou um cara que sabe muito bem como materializar seus sonhos.

    Não vai cair na conversa desse cara, Hannah Schwartz! Você tem muitas contas para pagar, em vez de entrar no sonho de mais um diretor que quer parar o país.

    Neko Butros já percebeu que Hannah Schwartz ainda não se deixou encantar. Só que a resistência alheia às suas ideias nunca foi um problema para ele…

    – Desde que eu li Dom Casmurro no colégio, essa história entrou no meu imaginário e eu nunca mais consegui sair desse abismo.

    – Machado de Assis domina as palavras como ninguém.

    Antes de falar, Neko Butros dá uma risadinha com o canto esquerdo dos lábios, minimizando o que acabou de ouvir.

    – Ele domina muito mais do que as palavras, Hannah. O cara disseca e denuncia o que nós somos.

    Hannah Schwartz jamais esperava ouvir isso de Neko Butros.

    Hannaaah! Tô te avisaaaando, esse cara é perigoooso.

    – No colégio, eu tirei a nota mais baixa na prova sobre a leitura do livro.

    – Ah… entendi. Você quer se vingar do Machado de Assis.

    – Não. Eu quero mostrar para o mundo… observa que eu falei para o mundo… eu quero mostrar para o mundo o quanto o conteúdo desse livro é atual.

    Faz muitos anos que Hannah Schwartz leu Dom Casmurro. Ela mal se lembra da trama da história. O que ficou mais marcado para ela é a dúvida se Capitu traiu ou não traiu Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar.

    – Atual?

    – O mundo bem-sucedido segue sendo dominado pelo homem branco, burguês, dominador… e patrimonializado… o tal macho social… Quem ainda dá as cartas é a testosterona… é sobre isso que eu quero falar.

    Mesmo com a camada tóxico-machista do que acaba de ouvir, Hannah percebe que Neko não pode ser reduzido só a esse repugnante papel; ali dentro tem vestígios de um cara legal. E ela está cada vez mais encantada com o olhar de Neko Butros para o filme que ele quer fazer.

    Uma dúvida passa pela cabeça de Hannah…

    – Espera um pouco: você quer criticar tudo isso, certo?

    Neko Butros procura as melhores palavras para responder sem responder, como ele está acostumado a fazer em momentos delicados.

    – Eu quero intrigar. Perturbar.

    Claro que Hannah Schwartz entende a tentativa de Neko Butros de escapar de uma resposta mais objetiva. Ela jamais se envolveria em um projeto que reforçasse algo que achasse retrógrado, preconceituoso ou promovesse valores em que não acredita.

    Mas, por enquanto, Hannah Schwartz ainda quer ver aonde essa conversa pode chegar…

    – Produzir um longa, Neko, não é igual a produzir filme de publicidade.

    – Eu sei. É por isso que eu estou chamando a melhor produtora do mercado audiovisual de ficção.

    – A melhor produtora do mercado está muito ocupada.

    A cada fala, o tom de Neko Butros é mais seguro e objetivo.

    – Mas jamais deixaria escapar uma boa ideia. Afinal, ela é a melhor.

    – É sério, cara. Eu estou ocupada pelos próximos dois anos.

    – Eu tenho três equipes de produção para te ajudar. Eu preciso de você para dar o start, para colocar o projeto pra rodar. E vamos nos ajustando.

    – Eu custo caro, Neko Butros.

    – Estranho seria se você não custasse.

    – Dá muito trabalho qualificar um filme: orçar, montar projeto, colocá-lo nas leis de incentivo, realizar as rodadas de negócios… bater em mil portas para abrir uma… e…

    – Desculpe te interromper, mas eu já sei de tudo isso. E sei também que, nessa primeira fase, trabalha-se muito, até o dinheiro entrar. Eu não estou chamando você para entrar de graça no meu sonho. Eu vou pagar do meu bolso, do meu dinheiro pessoal, o seu cachê para me ajudar a fazer esse business existir, até que entrem os patrocínios para o filme. Ah… patrocínios que eu vou ajudar a levantar.

    Mesmo com as garantias, Hannah Schwartz ainda está fazendo todo o esforço possível para pular fora.

    – Isso pode demorar a acontecer.

    – Não vai demorar a acontecer.

    É achando graça que Hannah Schwartz pergunta…

    – Quem você pensa que é, rapaz?

    E, como quem tem certeza absoluta do que dirá, Neko Butros responde…

    – Eu sou amigo do Rei.

    1

    Era para ser só um lanche entre dois amigos de infância no final da tarde. Mas…

    – …e se os caras vierem atrás de mim?

    A… a conversa está virando um papo sério entre um ator e um bailarino em uma lanchonete barulhenta no centro da cidade.

    O pop rock que sai das caixas deixa a lanchonete ainda mais barulhenta.

    O bailarino é um cara negro, alto, careca e obviamente sarado. Tom Guerra, um ator boa-pinta e de olhar inquieto; cabelos premeditadamente selvagens cor de mel, barbicha de seriado de fantasia e uma expressão atormentada que o deixa ainda mais charmoso.

    – Se liga, Tom. Eles já vieram.

    Tem razão o amigo bailarino: os caras do aplicativo já se comunicaram com Tom, pediram explicação e ele explicou.

    Houve o registro de alguma interação, digamos, caliente demais entre Tom e uma garota que ele conheceu na balada, no carro chamado pelo aplicativo na conta dele.

    Tom parece estar ao mesmo tempo injuriado e assombrado com o episódio inédito em sua vida (ter sua liberdade vigiada).

    – Tô achando que eles estão muito quietos. E se eu receber um processo?

    Depois de dizer isso, Tom confere (pela milésima vez!) no celular o aplicativo sobre o qual está falando. Em seguida, vasculha a caixa de mensagens do e-mail, as contas nas redes sociais… tudo para conferir se a bomba

    chegou.

    – Deixa de paranoia, Tom. Eles não estão quietos. O assunto tá encerrado. Os caras têm um zilhão de usuários pra cuidar. Te deram uma bronca,

    OK

    . Você respondeu e tá tudo certo. Você fez como eu te falei?

    Por você fez o que eu te falei entenda-se: você já tentou usar o aplicativo de novo?

    – Fiz.

    Mas, pela forma de falar de Tom, ter utilizado o aplicativo depois da bronca que recebeu e ter conseguido fazer isso sem problemas não o aliviou em nada.

    Mesmo conhecendo o amigo há muito tempo, o bailarino está ficando injuriado com a ideia fixa de Tom. Parece que, para além do sofrimento, tem um certo prazer em estar sofrendo.

    – O medo é para o travesseiro dos ricos, cara.

    Tom gosta do que ouve, mas não é o suficiente para relaxá-lo.

    – Pisei na bola.

    – Só com a ponta dos dedos, Tom. Foi só um errinho. Essas empresas costumam ser muito rigorosas nos protocolos de controle. O mundo tá assim: tudo rigorosamente controlado, tá ligado? Relaxa.

    – Muito cedo pra relaxar.

    Chegam os sanduíches. O amigo bailarino pediu um super-vegan (pasta de gergelim com berinjela e rúcula no pão integral); Tom, um double-x-burguer-mega-plus (seja lá o que isso queira dizer!).

    A garçonete de cabelos cor de abóbora é bem simpática e trouxe também os sucos verdes. Os caras devolvem os canudinhos ao mesmo tempo. Ela aplaude, pega os canudinhos, pisca para o amigo bailarino, dá meia-volta e os deixa sozinhos novamente.

    O pop rock continua comendo solto nas caixas.

    – A… a mina gravou uns trechos, fez umas fotos, publicou no perfil dela… a Paola acabou vendo…

    Paola também é atriz; e é (ou era?) a garota com quem Tom está (estava?) tentando engrenar um romance. Eles estão trabalhando juntos no teatro.

    O romance está difícil de engrenar. Diferenças demais, intolerâncias, caprichos…

    – Sua mina viu?

    – Ex-mina. Deu Perda Total, sem seguro. A Paola não quer mais saber de mim.

    – Mas você disse que estava ruim com ela…

    – Pior sem ela.

    Tom confere mais uma vez no celular as mensagens, o e-mail e as redes sociais.

    – Joga fora esse chicotinho, Tom.

    Mais uma vez Tom faz cara de quem não entende a frase do amigo bailarino.

    – Para de se flagelar.

    Tom ignora o que acaba de ouvir. O amigo bailarino continua…

    – Um cara boa-pinta, inteligente, sensível… bom ator pra caramba… Aliás, acho que é essa sua sensibilidade de ator que te perturba.

    – Como assim?

    – Lembra do filme do Pedro Almodóvar?

    – Qual filme?

    Tudo sobre Minha Mãe.

    – Maravilhoso!

    Tom assistiu a esse filme várias vezes (como fez com todos os filmes do Almodóvar, aliás!); mas não está juntando as pontas do raciocínio do amigo. O cara está lento demais, com a razão e a sensibilidade tomadas por seus fantasmas.

    O amigo bailarino tenta explicar…

    – Na primeira cena, spoiler!, antes do garoto morrer, a mãe dele lê um trecho do livro do Truman Capote, onde o cara fala sobre ter recebido um chicote junto com o talento.

    Está fazendo muito bem à vaidade de Tom as associações que o amigo está construindo entre Pedro Almodóvar, Truman Capote e a triste condição fantasmagórica em que ele se sente aprisionado.

    Afinal, são dois criadores que mergulharam fundo no que se pode chamar de abismática condição humana.

    – Você, Tom, tá muito refém da sua sensibilidade. Eu sei que ser um cara à flor da pele te ajuda a criar personagens com mais potência…

    Tom está em cartaz na cena alternativa da cidade, em uma montagem disfuncional (e badalada!) de Hamlet, o primeiro homem moderno.

    – ...mas tenta usar esse talento só pra trabalhar, cara, pra espalhar arte e ganhar grana.

    As palavras do amigo estão começando a surtir algum efeito sobre a angústia de Tom. Ele sorri, antes de dizer…

    – Almodóvar, Truman Capote… só feras! Valeu, bróder, por elevar tanto o nível das minhas dores. Fico te devendo essa.

    O celular de Tom em cima da mesa começa a tocar. Tanto ele quanto o amigo bailarino se assustam. Ninguém mais liga (faz chamada de voz) para ninguém.

    Quem será? Os advogados do aplicativo? A justiça que se faz de cega para alguns? A Lei que insiste em ter razões que a própria razão desconhece?

    É um tanto quanto aflito que Tom, com o coração saindo pela boca, atende antes que o celular toque pela segunda vez, mesmo sem ter reconhecido o número.

    – Alô?

    – Cadê você, Tom?

    De cara, Tom não reconhece a voz, mas começa a realizar que a Justiça, a Lei e os advogados não começariam uma intimação perguntando Cadê você, Tom?.

    – Quem é?

    Enquanto pergunta, passado um pouco o susto, o próprio Tom reconhece a voz rouca que ele tem ouvido dar vida a Ofélia ao seu lado, no palco; e que parou de dizer que o ama na vida real.

    – Paola?

    – Mudei de número. Clonaram meu celular

    Em nenhum momento passou pela cabeça de Tom que Paola esteja ligando para reatar o romance. A voz dela está bem brava.

    você tá atrasado, cara.

    Só ao ouvir a palavra atrasado, Tom se lembra.

    – Putz! Hoje tem duas sessões da peça. Tô chegando em quinze minutos.

    Tom se despede do amigo às pressas…

    – Valeu, cara!

    – Vê se joga fora esse chicote.

    …deixa sobre a mesa sua parte da conta, aciona o cartão de crédito, libera uma das bikes estacionadas na calçada e sai pedalando.

    Já não é mais o mesmo Tom quem está agindo e sentindo sobre a bike. No percurso ele vai se conectando a Hamlet. Emprestando ao atormentado e temperamental príncipe da Dinamarca suas emoções, seus próprios tormentos, seu corpo e sua voz.

    Enquanto faz essa conexão, Tom realiza com mais nitidez uma das ideias de seu amigo bailarino: tentar usar sua potência criativa para trabalhar, espalhar arte e ganhar o dinheiro de que ele tanto precisa para continuar existindo.

    Essa reflexão o conecta à realidade e, de alguma forma, Tom torna-se novamente senhor da sua exuberância criativa, do seu carisma e do contexto em que está sua vida: um cara um pouco carente e sensível demais, que foi abandonado pela namorada, e não um criminoso refém de seu chicote fantasmagórico.

    – São alunos da faculdade de economia mesmo, tio?

    Essa pergunta Tom faz ao ator grisalho, com o dobro de sua idade, com quem ele divide o camarim. O ator faz o papel do inescrupuloso Tio Claudius, que mata seu pai e se casa com sua mãe na trama do espetáculo.

    Eles estão no camarim terminando de se preparar para atuar. Ouve-se o primeiro dos três sinais que antecedem o

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