Formação de educadores sexuais: adiar não é mais possível
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Formação de educadores sexuais - Mary Neide Damico Figueiró
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Vice-Reitor
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Diretor
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Conselho Editorial
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Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello (Presidente)
Marcia Regina Gabardo Camara
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Otávio Goes de Andrade
Renata Grossi
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A Eduel é afiliada à
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Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Bibliotecária: Solange Gara Portello – CRB-9/1520
F475f Figueiró, Mary Neide Damico.
Formação de educadores sexuais [livro eletrônico] : adiar não é mais possível / Mary Neide Damico Figueiró. – 2. ed. rev., atual. e ampl. – Londrina : Eduel, 2020.
1 Livro digital.
Inclui bibliografia.
Disponível em: http://www.eduel.com.br
ISBN 978-65-5832-016-6
1. Educadores sexuais – Formação. 2. Educação sexual. I. Título.
CDU 316.83:37
Direitos da tradução em Língua Portuguesa reservados à
Editora da Universidade Estadual de Londrina
Campus Universitário
Caixa Postal 10.011
86057-970 Londrina – PR
Fone/Fax: 43 3371 4673
e-mail: [email protected]
www.eduel.com.br
Sumário
CAPÍTULO 1
Educação Sexual
CAPÍTULO 2
A Formação de Educadores Sexuais
CAPÍTULO 3
A formação continuada dos professores
CAPÍTULO 4
As professoras e o professor como atores e suas trajetórias
CAPÍTULO 5
Diálogo com as professoras e o professor integrantes do Mutirão Orientador
CAPÍTULO 6
Discussão e conclusões
POSFÁCIO
GEES/ESCOLA:
a criação de rede de formadores
Referências
APÊNDICE
Dedico este trabalho
Ao meu esposo Adalberto,
e a meus filhos Lilian,
Isabela,
Beatriz
e Evandro.
Aos educadores e educadoras que participaram dos estudos sobre sexualidade e que demonstraram boa vontade
em abraçar
a Educação Sexual.
Quanta bravura ao tentar despir-se de seus
preconceitos, de seus dogmas e de seus tabus!
Quanta coragem para repensar seus valores!
Quanta disposição em rever suas ações e seu modo de educar!
Por tudo isso e muito mais, devo a eles e elas os frutos colhidos.
Agradecimentos
A Deus, por estar comigo em todos os momentos.
Ao meu orientador, Professor Dr. Celestino Alves da Silva Júnior, por acolher-me de maneira tão afetuosa, pelo seu estímulo e pela orientação recebida.
À Prof.ª Dra. Sonia M. Martins de Melo, de quem obtive sábias orientações, valiosas sugestões e apoio amigo.
À Prof.ª Dra. Isaura Guimarães, pelas contribuições e amizade e, por mais uma vez, valorizar meu trabalho.
À Prof.ª Solange Ferreira, pela leitura cuidadosa e pelas ótimas sugestões para o aprimoramento final do livro.
Aos meus pais, João e Oneide (in memoriam), pela presença afetuosa e fortalecedora.
Ao meu esposo, Adalberto, com quem descobri a riqueza da vivência da sexualidade e que, com o passar dos muitos anos de vida a dois, ajudou-me a ver que a sexualidade, juntamente com o amor, pode continuar sendo a grande seiva fortalecedora de um viver juntos e apaixonados.
Aos meus filhos, por compreenderem e valorizarem meu trabalho e, ainda, por serem minha grande fonte de estímulo. Em especial, à Lilian, pelo acompanhamento sempre próximo e fortalecedor durante os momentos bons e difíceis desta caminhada.
A todos os psicólogos, então estagiários que, por ocasião do trabalho, ajudaram-me na formação dos educadores sexuais no período de 1995 a 1998. Desse conjunto de psicólogos, destaco o agradecimento aos que coordenaram os Grupos de Estudos de 1997: Fabiana Tutida, Karen Andrea Maluf Gomiero, Osvaldo Castagna Filho, Pe. José Fernando Bonini, Sara Gladyz Toninato e Uedinei Alves de Carvalho. Um agradecimento especial, também, aos que trabalharam no Mutirão Orientador de 1998: Elaine Buchala Gascez Silveira, Elaine Cristina Perez, Márcio Alves Silveira e Paula da Cruz Moscão.
Agradeço ainda às psicólogas Letícia Figueiró Anami e Nayra Borges de Almeida, ao psicólogo Márcio Neman do Nascimento e ao professor e pedagogo Ricardo Desidério, que atuaram no GEES/Escola como supervisores.
A todos os professores e professoras que participaram dos Grupos de Estudos, especialmente, aos 11 que, dispondo-se a caminhar mais, tornaram-se coautores deste livro.
Será que a educação do educador
não se deve fazer mais pelo
conhecimento de si próprio do que
pelo conhecimento
da disciplina que ensina?
Laborit
Prefácio
Os processos educativos formais e não formais, que buscam contribuir com uma formação emancipatória de professores, devem certamente lembrar e incorporar como fazer prioritário aquele cuja finalidade seja um "ensinar a repensar o pensamento, a des-saber ‘o sabido’ e a duvidar da própria dúvida; esta é a única maneira de começarmos a acreditar em alguma coisa", como nos diz Mairena, ilustrando a obra de Morin (2000, p. 23).
Nessa abordagem insere-se a caminhada de Mary Neide com sua contribuição inestimável ao processo de formação continuada intencional do educador também como um educador sexual, pois ele sempre o é, mesmo que na maioria das vezes não tenha consciência disso. Todo o criativo processo de formação continuada vivenciado, e aqui descrito pela autora, lembra-nos que a educação é processo permanente de humanização de sujeitos ativos de sua história e de sua cultura.
O sensível e competente trabalho de Mary Neide relembra a todos nós que o ser-educador-presença há de se reconstruir e ser reconstruído, pois, parafraseando Paulo Freire, esse professor e essa professora são presenças que devem pensar a si mesmas, sabendo-se presenças, intervindo, transformando, falando do que fazem, do que sonham, do que constatam, comparando, avaliando, valorando, decidindo, rompendo... E é em todos esses domínios que ficam instauradas a necessidade da ética e a imposição da responsabilidade, as quais, certamente, perpassam toda a obra ofertada pela autora, para com ela estabelecermos um diálogo profícuo.
A obra, em todos os seus capítulos, desvela-nos uma questão fundamental: se nós, professoras e professores, não conseguimos ler com consciência o mundo, como estaremos no mundo como pessoas e profissionais? De modo que essa leitura do mundo não pode prescindir da reflexão sobre a dimensão sexualidade, inseparável do existir humano.
O trabalho pedagógico, em todos os seus espaços e níveis, não pode continuar a ser tratado e vivido como se fosse assexuado, enquanto no cotidiano viceja um currículo oculto que reprime, distorce, coisifica a sexualidade, empobrecendo o ser humano ao causar-lhe o estranhamento dessa parte fundamental do existir de docentes e discentes.
Os processos vivenciados pela autora e pelo grupo de professoras e professores com quem trabalhou são muito bem descritos nesta obra e desvelam vários caminhos possíveis de ser trilhados por aqueles que buscam contribuir com a desalienação dos espaços educativos, no que diz respeito à sexualidade e ao processo de Educação Sexual aí sempre existente.
Auxiliar os educadores e educadoras a perceberem-se mais inteiros no mundo, levando-os a uma reflexão que os conduza à constatação crítica e rigorosa dos fatos que os envolvem como seres humanos sexuados, num dado espaço-tempo concreto, pode levá-los ao desafio de buscar modificar concretamente uma intervenção intencional e qualitativamente emancipatória no seu viver cotidiano, incluída aí a questão da sexualidade.
E foi esse cotidiano de professores e professoras que Mary Neide utilizou, coerentemente, como ponto de partida e de chegada de sua rigorosa reflexão, dividindo-a, hoje, com quem tiver o privilégio de dialogar com ela.
Partiu a autora da dinâmica vital de cada um dos entrevistados e entrevistadas, trilhando a senda do que hoje se convencionou chamar de professor reflexivo, mas que, no nosso entendimento, foi, na verdade, um sensível relembrar ao ser humano a sua essência: um maravilhoso ser aprendente e ensinante, que, estimulado a pensar profundamente sobre sua vida, pode modificá-la, assim como a dos outros que com ele convivem.
E, com certeza, a autora modificou a vida daqueles com quem conviveu, de modo que, certamente, provocará reflexões profundas naqueles que a lerem, principalmente em relação à formação continuada de professores e à questão da Educação Sexual.
Mas, para todos e todas que passarem pelas páginas que se seguem, certamente fica, desde já, o alerta de Fernando Pessoa (e um desafio de Mary Neide): Isso exige um aprendizado profundo, uma aprendizagem de desaprender...
.
Aceite o convite, aprenda a desaprender, reflita, aja e contribua com a construção de um mundo melhor de se viver, já que adiar não é mais possível.
Sonia Maria Martins de Melo
Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina
(há 28 anos aprendente e ensinante sobre formação
de educadores e Educação Sexual)
Introdução
Não sei como preparar o educador.
Talvez que isto não seja necessário e nem possível [...]
É necessário acordá-lo.
E, para acordá-lo, uma experiência de amor é necessária.
Rubem Alves (1983, p. 22, 28)
O interesse e a paixão de um pesquisador por um tema específico, à primeira vista, como a Educação Sexual, certamente encontram sua vinculação com temas mais amplos. Aliás, todas as questões ligadas à Educação, na maioria das vezes, acabam por despertar a atenção e a paixão de quem se aproxima, um pouco mais, de uma de suas especificidades. Entendo que assim deve ser quando o envolvimento é sério e por inteiro.
Nessa perspectiva, apaixonar-se pela Educação Sexual é envolver-se e comprometer-se, também, com questões tais como: a formação continuada do professor, a profissão docente, a qualidade do ensino, o aprendizado do aluno e assim por diante.
De acordo com Rubem Alves (1991), a paixão é o segredo do sentido da vida. Especialmente na atuação do educador, o êxito de sua obra depende, fundamentalmente, do amor e da paixão com que se envolve nela. Por isso, ele diz: é necessário acordar o educador
. Da mesma forma, percebo que, em Educação Sexual, ao se investir na formação continuada do professor, não basta apenas repassar-lhe as técnicas de ensino e os conhecimentos básicos necessários. É preciso despertar o educador existente dentro dele, para que o trabalho seja feito com comprometimento e paixão, além da competência técnica.
Ainda, segundo Rubem Alves, no sujeito que assume a tarefa de ensinar, duas são as dimensões presentes: a de educador e a de professor. A primeira dimensão refere-se à pessoa, e a segunda, à sua função. Esse autor considera que professor é profissão e educador é vocação, ambas influenciando-se de forma dialética, e que a segunda, o educador
, geralmente, encontra-se adormecida, dentro de cada um dos professores.
O educador
habita um mundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor
, ao contrário, é funcionário
de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua excelência funcional, excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema (ALVES, R., 1991, p. 15).
De forma poética, o autor sintetiza seu reconhecimento do papel da educação e do educador na transformação social, ao dizer que: Um educador é um fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos
(p. 19).
A sexualidade é uma dimensão humana que vai além de sua determinação biológica, pois é, também, culturalmente determinada. As informações sobre ela trabalhadas na escola precisam envolver reflexão tanto individual quanto coletiva, pois é esse exercício que permitirá ao educando reconhecer-se como sujeito de sua sexualidade, capaz de construir relações mais saudáveis e positivas, e capaz, ainda, de identificar possibilidades de interferir no curso de sua vida e da coletividade.
Se pensarmos que a finalidade maior da Educação Sexual é contribuir para a possibilidade de o educando viver bem a sua sexualidade, de forma saudável e feliz e, ao mesmo tempo, contribuir para que ele esteja apto a participar da transformação social, em todas as questões ligadas direta ou indiretamente à sexualidade, podemos concluir que o professor cujo objeto de ensino é a sexualidade, de forma humanizadora, está sendo um mediador de esperanças e de projetos de vida.
Muito além de auxiliar na redução da gravidez precoce e/ou não planejada e do índice de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), incluindo a AIDS, a Educação Sexual deve ser realizada a fim de contribuir para o desenvolvimento integral da personalidade do educando e, consequentemente, para sua qualidade de vida. Educação Sexual tem a ver com aumentar o grau de felicidade e de bem-estar
, afirma Machado¹. Também Vitiello (1999, p. 2), ao falar especificamente da Educação Sexual, comenta que As pessoas devem ser educadas para serem felizes
.
O meu interesse em trabalhar com a Educação Sexual, e, portanto, minha paixão por ela, tomou corpo durante o tempo em que frequentei o Curso de Graduação em Psicologia, solidificando-se no período do Mestrado e se expandindo na fase de atuação profissional que veio a seguir.
Tendo trabalhado preparando
o professor para atuar como educador sexual e, considerando instigante a pergunta: quem educa o educador?, vejo que é preciso, inicialmente, fazer uma breve retomada do caminho que percorri ao longo de minha história de vida. Assim sendo, retorno nas minhas lembranças para que possa, com mais propriedade, refletir sobre as razões pelas quais a Educação Sexual tornou-se tão importante para mim.
Revendo minha caminhada², percebo que não tive informações objetivas e explícitas sobre a sexualidade, nem em casa, nem na escola. Estudei desde a pré-escola, por 11 anos, em colégio de freiras, e jamais alguma palavra ligada ao sexo foi pronunciada por alguma professora. Era um silêncio mortal sobre o assunto, mas, certamente, um processo de Educação Sexual oculto estava ocorrendo, por meio do silêncio e da negação da sexualidade.
Quando fiquei menstruada, sabia o que se passava, porque uma amiga mais velha já havia me dito algo sobre o assunto. Na ocasião, corri para a casa dela relatar o ocorrido e ela me orientou a contar para minha mãe. Eu não queria fazer isso, mas acabei fazendo, embora morrendo de vergonha. Tenho certeza de que, se minha amiga não tivesse me dito algo anteriormente, teria ficado muito assustada quando me visse menstruada.
Durante a infância e a pré-adolescência, a única vez que alguém, propositalmente, ensinou-me alguma coisa, foi quando meu pai explicou-me sobre cesariana. Eu devia ter por volta de 11 anos, quando ele entrou em casa dizendo: "A ‘fulana’ [minha prima] ganhou nenê; foi cesariana!. Nessa hora, estávamos minha mãe e eu na sala; percebi que ela segurou a respiração e arregalou os olhos para meu pai, como que o mandando calar a boca. Ele, pelo contrário, virou-se para mim e perguntou se eu sabia o que era cesariana. Como essa palavra era estranha para mim, prosseguiu explicando:
É quando o médico precisa cortar a barriga da mãe, fazer uma operação, para o nenê nascer. Minha mãe, emudecida, continuava
falando com os olhos"; era um misto de vergonha e raiva de meu pai que ela deixava transparecer. Tudo acabou aí; nada mais se falou.
A sensação que tive e que até hoje me vem à mente é a de que meu pai, nesse pequeno ato educativo, queria me impulsionar a crescer, a conhecer coisas da realidade. Senti-me importante; era como se eu fosse tratada feito gente que tem direito de saber das coisas da vida. Ele explicou tudo com simplicidade e me fez sentir importante perto dele. A conversa parou por aí; foi curta, mas valeu. Valeu e marcou.
Percebo que a disposição em explicar tem a ver com o desejar que a pessoa cresça. Embora tenha sido uma gotinha
de explicação sobre fatos relativos à sexualidade – pois foi a única nesse sentido –, essa atitude de meu pai marcou-me para sempre. Apesar de ter pouco estudo (dois anos de vida escolar), como minha mãe, e de ser um homem muito simples, meu pai adorava ensinar-me o que sabia. Ensinou-me a andar de bicicleta, a dançar e a dirigir. É nesse contexto, que vejo que se encaixava sua vontade de me explicar o que é cesariana: uma vontade de querer que eu aprendesse, aprendesse tudo que permeava meu cotidiano.
Por outro lado, durante minha adolescência, por inúmeras vezes, ouvi meu pai pronunciar a palavra: poucavergonha!
, diante de situações como a de casais de namorados se beijando e se abraçando. Esses valores negativos sobre a sexualidade geralmente ficam impregnados em nossa formação e é preciso um esforço pessoal muito grande, pautado em reflexões e estudos, para desfazer esse vínculo. É um exercício de reeducação sexual diante da deseducação sexual a que estamos, continuamente, submetidos e da qual Bernardi (1985, p. 17) trata com muita propriedade. Para ele, a Educação Sexual que se tem conseguido desenvolver nas escolas é falsa e moralista, dessexualiza os educandos e constrói [...] uma imagem da sexualidade que suscita o desprezo e o desgosto para com a relação física
.
Mais tarde, só quando cursei o magistério (antigo 2º grau, atualmente denominado ensino médio), tive uma disciplina chamada Higiene e Puericultura, e ouvi alguém falar, intencionalmente, sobre sexualidade. A disciplina tinha como proposta, basicamente, ensinar a cuidar de bebês, o que eu adorei! A professora, que tinha uma filha na mesma classe, decidiu aprimorar o programa e falar de coisas da vida
, tais como namoro e casamento. Foi aí, com a professora Rita, portanto, por volta dos meus 16 anos, que fui entender o mistério da concepção, ou seja, como se forma um bebê. Sabia, obviamente, que ele resultava do ato sexual, mas como era o processo da concepção eu não sabia. Fiquei maravilhada! Até então, não entendia como se formava o bebê, não sabia o que era espermatozoide, óvulo...
Essa mesma professora convidou um médico para vir falar das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs); e foi uma excelente palestra. Eu não fazia a mínima ideia de que pudessem existir doenças desse gênero. Foi um tanto chocante, pois havia slides que provocavam medo e repulsa. Mas fez tão bem para minha autoafirmação, para meu crescimento, ter ouvido falar das DSTs; eu me senti gente grande! Senti que podia entender das coisas da vida
! Senti-me deixando de ser aquela menina ingênua, perto da qual certas palavras não podiam ser ditas. Creio, também, ser questão de sentir-se respeitada pela inteligência que todos temos, de sentir-se respeitada no direito de saber sobre tudo, enfim, de ser sujeito realmente.
Das aulas de Higiene e Puericultura, com certeza, nasceu a minha grande paixão pela Educação Sexual, da qual só fui ouvir falar, na verdade, mais claramente, quando ingressei no curso de Psicologia na década de 1970. Aliás, nunca consegui, no curso, um professor que ensinasse a respeito dos conhecimentos científicos e metodológicos da Educação Sexual. Lembro-me que fui tentar ver com alguns professores se tinham material para eu ler e nenhum deles tinha. Até desejei fazer um trabalho de Educação Sexual com um grupo de garotas pré-adolescentes e tentei conseguir que algum professor me orientasse. Como os que procurei diziam que não sabiam como desenvolver o trabalho, eu o fiz por conta própria, juntamente com uma colega de curso, com um grupo de aproximadamente 10 garotas de um orfanato de minha cidade. Foi uma ótima experiência, embora muito incipiente, porque sem supervisão. Cativamos a amizade das jovens; foi nítido o bem que lhes fizemos.
Quando chegou no último ano do curso de Psicologia, fui estudar terapia sexual, dentro do estágio de Psicologia Clínica. Fiquei fascinada por ver a sexualidade sendo abordada de forma séria, científica. Isso selou de vez meu vínculo com a temática. A partir daí, não parei mais de estudar sobre a sexualidade e falar dela como profissional e... é óbvio, de vivê-la intensamente.
Estou certa e devo dizer que tão importante quanto as leituras e conhecimentos que adquiri foi a minha vivência da sexualidade na fase do namoro. A possibilidade de vivenciar a troca de carinhos e de carícias íntimas durante meus 10 anos de namoro, com meu atual marido, propiciaram um aprendizado de atitudes afetivo-eróticas positivas. Esse processo, em especial, auxiliou-me a desfazer a influência da Educação Sexual repressora que recebi. Ajudou, enfim, na minha reeducação sexual. Na verdade, embora tenha me casado no ano de 1978, com 22 anos, casei-me virgem e foi bom que isso tivesse acontecido, pois, com minha formação religiosa bastante forte, penso que teria dificuldade para lidar com a sensação de ter pecado. Essa ideia de pecar por transar antes do casamento há muito abandonei, mas era o que eu pensava na época e, hoje, costumo dizer para meu marido: "Quanto tempo perdemos, numa fase em que nenhum dos dois tinha dores no corpo, nas costas, no nervo ciático, quando nenhum dos dois tinha cansaço físico advindo do trabalho etc.". Pecado?! Penso: como pode alguém considerar pecado algo bom, que dá prazer e aproxima o casal que se ama?!
Da época de repressão e do silêncio, ou seja, da falta de conhecimento sobre as verdades do corpo e do nascimento, que vivi, tenho nítidas as lembranças de várias indagações que elaborava em minha mente a respeito de sexualidade e que acabavam ficando sem respostas, pois faltava a coragem e a ousadia para perguntar. A clareza do contraponto entre o sentimento de vazio
que essa situação gerava e o sentimento de satisfação advindo do recebimento de informações (no magistério) me fizeram atribuir um valor extremamente positivo para o trabalho de ensinar sobre sexualidade. Percebo que a Educação Sexual é muito mais do que isso, e esse é um ponto fundamental que busco aprofundar neste trabalho.
Por isso, acredito que vivenciar todo um processo de reeducação sexual tenha me motivado a levar outros educadores a vivenciarem semelhante processo. É possível que outros elementos inconscientes possam compor, juntamente com os elementos de minha história, já descritos, o conjunto dos fatores pessoais determinantes do interesse, da paixão, enfim, do envolvimento com a temática. Assim, após rever os elementos que, integrando minha história de vida, estão por trás do meu engajamento com a Educação Sexual, considero a frase de Gouldner (apud ALVES, 1991, p. 33, grifos meus) bastante reveladora desse fenômeno:
Cada teoria social é também uma teoria pessoal que inevitavelmente expressa e coordena as experiências pessoais dos indivíduos que a propõem. Muito do esforço do homem para conhecer o mundo ao seu redor resulta de um desejo de conhecer coisas que lhe são pessoalmente importantes.
Para ilustrar um pouco mais como e porque certo tema de estudo torna-se pessoalmente importante para o pesquisador ou educador, vale a pena considerar alguns dados sobre o eminente sexólogo Havelock Ellis , que viveu de 1859-1939.
Seu próprio interesse no estudo do sexo foi conscientemente explicado por ele mesmo, em termos de problemas pessoais surgidos de uma criação altamente repressiva. [...]
Aos 16 anos resolveu que a principal tarefa de sua vida seria poupar a juventude das futuras gerações do problema e perplexidade que a ignorância sobre os verdadeiros fatos do sexo lhe causaram (GREGERSEN, 1983, p. 34).
Cunha (1981) esclarece que esse propósito de Havelock foi fortalecido pelo contato direto, em seu trabalho, com casos verdadeiramente trágicos, nos quais intensos sofrimentos humanos eram decorrentes da ignorância sexual. Em função disso, determinou-se a ir mais além: tornar-se um advogado da reforma sexual.
Essa ligação pessoal que ocorre entre um estudioso e a temática a que se dedica fica clara, também, no caso do psicoterapeuta brasileiro José Ângelo Gaiarsa. Na apresentação de seu livro: A juventude diante do sexo, comenta que a obra nasceu, primariamente:
[...] da adolescência confusa do próprio autor, que se perdeu muitas vezes, amargurou-se e feriu-se, assim como feriu outros, por ter nascido e estar vivendo em um mundo demasiadamente antagônico ante a sexualidade. Este livro é um protesto, fruto de um sofrimento pessoal e de um ressentimento pessoal (GAIARSA, 1967, p. 15).
Retomando, brevemente, a narração dos caminhos que percorri em direção ao engajamento com o trabalho de Educação Sexual, devo registrar que, após ter desenvolvido a Dissertação de Mestrado sobre o tema, de cunho eminentemente teórico, propus-me, logo em seguida, o desafio de trabalhar junto a professores, a fim de prepará-los
e acordá-los
para atuarem como educadores sexuais.
Dessa forma, desde 1995, passei a coordenar, na Universidade Estadual de Londrina, um projeto de que denominei: Assessoria a educadores sexuais
. Era destinado a professores e profissionais ligados à área da Educação e da Saúde. O trabalho acontecia no campus universitário e consistia em Grupos de Estudos semanais, para um número médio de 20 integrantes cada, com a participação de estudantes da quinta série do Curso de Psicologia, como parte de suas atividades do Estágio Curricular. A cada ano, novos Grupos de Estudos eram criados.
Os Grupos formados no ano de 1997 – período em que tal experiência já havia adquirido um maior vulto – constituíram-se na origem desta presente pesquisa (FIGUEIRÓ, 2001). Eram 55 integrantes distribuídos em três grupos: matutino, vespertino e noturno. Reunidos uma vez por semana, de maio a novembro, completaram um total de 57 horas de Grupo de Estudos. Tendo chegado ao final, a maioria dos participantes falou sobre seu interesse em continuar por mais um ano.
Quando em 1998 ingressei no curso de Doutorado, decidi que faria de todo esse trabalho com os professores a base da minha Tese, para poder pensar com mais profundidade a questão da formação do educador sexual. Essa decisão pode ser considerada válida se levarmos em conta a recomendação de Triviños (1987, p. 93), de que o foco de pesquisa de um estudante de pós-graduação [...] deve surgir da prática cotidiana que o pesquisador realiza como profissional
. Segundo ele, A prática cotidiana e as vivências dos problemas no desempenho profissional diário ajudam, de forma importantíssima, a alcançar a clareza necessária ao investigador na delimitação e resolução do problema
.
Assim sendo, nesse mesmo ano, em vez de abrir novos grupos, convoquei as pessoas que participaram, em 1997, do Grupo de Estudos, e apresentei a proposta de continuidade. Em 1998, portanto, passamos a nos reunir quinzenalmente, constituindo o que denominei de Mutirão Orientador (M.O.)³,
sendo que a condição para integrá-lo era desenvolver um trabalho prático, formal e sistemático de Educação Sexual, junto a crianças ou adolescentes.
Nove professoras e um professor integraram o M.O. e, durante o ano todo de 1998, continuaram a vir até a universidade, onde apresentavam seus planejamentos periódicos, relatavam passo a passo como haviam trabalhado, seus êxitos e suas dificuldades⁴.
Recebiam, pois, supervisão para o trabalho que desenvolviam e davam continuidade às reflexões e troca de ideias entre si. Também mais uma professora que participou do Grupo de Estudos de 1995, veio integrar o grupo, totalizando 11 participantes do M.O.
Durante o ano de 1999, não foi dado prosseguimento ao M.O., embora seus integrantes o desejassem, sendo deixados por conta própria em suas escolas, supondo-se que pudessem dar continuidade aos trabalhos. Ao final desse mesmo ano, entre os meses de novembro e dezembro, achei importante e necessário estar com eles, entrevistando-os para dar-lhes voz e conhecer o que puderam realizar, como realizaram, se conseguiram ou não continuar ensinando sobre sexualidade, e assim por diante.
Propus-me estar com cada um dos integrantes do M.O. para conhecer não apenas o que foi feito, mas principalmente o que eles pensavam sobre o que fizeram, ou sobre o que não fizeram, e como vinham construindo esse pensar. Desejava assim, chegar a uma compreensão mais ampla do saber e do saber-fazer docente em Educação Sexual.
Nessa etapa de entrevista, todos os 11 professores foram ouvidos, pois considerava que, mesmo