Um operário em férias
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Sobre este e-book
• Cristovão Tezza é considerado um dos mais aclamados escritos brasileiros contemporâneos. Escreveu os romances Trapo, O fantasma da infância, Juliano Pavollini, Aventuras provisórias (Prêmio Petrobras de Literatura de 1987), Breve espaço entre cor e sombra (Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional de melhor romance de 1998), A suavidade do vento, Uma noite em Curitiba, Ensaio da Paixão e O fotógrafo (prêmios da Academia Brasileira de Letras e Bravo!, de melhor romance de 2004). E os elogiados Um erro emocional (romance, 2010) e Beatriz (contos, 2011). Em 2012, lançou O espírito da prosa – uma autobiografia literária.
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Um operário em férias - Cristovão Tezza
Cristovão Tezza
UM OPERÁRIO EM FÉRIAS
100 CRÔNICAS ESCOLHIDAS
SELEÇÃO E APRESENTAÇÃO
Christian Schwartz
ILUSTRAÇÕES
Benett
2013
Cip-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Edtores de Livros, RJ.
T339o
Tezza, Cristovão, 1952-
Um operário em férias [recurso eletrônico]: 100 crônicas escolhidas / Cristóvão Tezza; seleção, organização e apresentação Christian Schwartz; ilustrações Benett. – Rio de Janeiro: Record, 2013.
Recurso digital: il.
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-01-40331-5 (recurso eletrônico)
1. Crônica brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
13-2124
CDD: 869.98
CDU: 821.134.3(81)-8
Copyright © by Cristovão Tezza, 2013.
Projeto gráfico e capa: Regina Ferraz
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direitos exclusivos desta edição reservados pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina, 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ
– Tel.: 2585-2000
Produzido no Brasil
ISBN 978-85-01-40331-5
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Atendimento e venda direta ao leitor:
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Sumário
Apresentação: Férias adiadas – Christian Schwartz
A VIDA É SONHO
Voltar ao passado
Blogueiro de papel
Ser escritor
Dom ou técnica?
Uma frase qualquer
Sua Excelência, o leitor
Stelóvski e a maldição dos editores
Não me adotem
Traduzindo português
Duas questões lusitanas
Atribulações de um chinês em Paraty
Escritores
Cartas, blogues, e-mails
Adeus às aulas
Crise e literatura
O que eu quero ser quando for grande
A vida é sonho
Viagens no tempo
A torneira e a água
A primeira crítica
Educação pelo cinema
Xadrez Renovador
As palavras e o tempo
Desastres da memória
A cadeira de Cleópatra
VIAGENS PELA LEITURA
De aviões e livros
Razão e magia
Leituras
Um mundo sem sebos
Vendo cinema, lendo um filme
Livros pela metade
Leituras de desempregado
Ficção, realidade e terror
O fim do papel
A adúltera e o assassino
Relativismo e moral
Moacyr Scliar (1937-2011)
VIDA DE TORCEDOR
Vida de torcedor
O dentista coxa-branca
Indiana Jones em Brasília
Clube Atlético Paranaense
Nietzsche, o eterno retorno e o futebol
Mistérios do futebol
Notícias do mês
Notícias de 2123
TERÇA-FEIRA
Prazeres da casa
Meu carro inesquecível
Sapatos
Concerto para violino e tosse
Ap. 18
Fotografia
Negócios
Ouvindo música
Síndrome de abstinência
Velharias
Samurai de fogão
Fugindo de dezembro
Lavando louça
Pequenas reclamações
Uma tarde em Curitiba
A Voz e o xará
Triunfos e fracassos da tecnologia
Terça-feira
CURITIBA NO DIVÃ
Como queria demonstrar
Calçadas de Curitiba
Curitiba no divã
Carnaval em Curitiba
Frio
As duas famas de Curitiba
Frio e melancolia
DE VOLTA À VIDA REAL
A angústia da opinião
Nós
e eles
Sociedade e tribo
Do Oiapoque ao Chuí
O fim do capitalismo
Platão e o Enem
Memória e barbárie
Brasil, Argentina e Freud
Quem vai morrer?
Teologia e libertação
O desejo de proibir
O espaço público
Um Brasil pitoresco
A resistência da esquerda
Guerrilheiros e exilados
Zelig à brasileira
Lula e a mãe
Lula, populismo e linguagem
Battisti e a geração 68
Notas sobre o fim
Imigrantes
A aldeia e o mundo
A nova China do velho Mao
A cultura da rapina
FICÇÕES
A sombra
História de amor
Notícias do ano de 2139
Entrega
O livro clandestino
Flagrantes de Beatriz
FÉRIAS ADIADAS
por Christian Schwartz*
Cristovão Tezza se tornou cronista depois de se consagrar na ficção. E falar em consagração não é exagero: ao estrear, em abril de 2008, a coluna das terças-feiras na página 3 da Gazeta do Povo, principal jornal do Paraná, Tezza vivia o estouro de O filho eterno — romance que, retrato ficcional da experiência do autor como pai de Felipe, que tem síndrome de Down, arrebataria público e crítica, ao mesmo tempo com vendas estratosféricas para os padrões da ficção nacional e uma carreira irretocável como campeão de prêmios naquele mesmo ano. Àquela altura já autor de mais de uma dezena de livros, entre eles Juliano Pavollini, Breve espaço entre cor e sombra e O fotógrafo, Tezza tinha trajetória peculiar entre os romancistas nacionais: cresceu no espírito hippie dos anos 1960, foi relojoeiro e ator/autor de uma trupe teatral, viajou à Europa como mochileiro na década de 1970 e, nos vinte anos seguintes, consolidou-se nacionalmente como escritor, sobretudo depois da publicação de Trapo, em 1988.
Mas foi O filho eterno — um livro, aliás, bastante atípico quando se olha com distanciamento o conjunto da obra — que, como costuma afirmar o próprio autor, libertou-o, permitindo-lhe dedicação integral à escrita. A partir dali, sua profissão, de fato, seria a de escritor — não mais a de professor universitário, carreira à qual havia dedicado um total de mais de 25 anos. A ocupação de cronista veio como bônus, mas resultou, curiosamente, num novo tipo de obrigação: agora o compromisso com o leitor seria semanal, e não mais o encontro esporádico, sem data e hora para acontecer, da ficção com seu público sempre fugidio; outra mudança fundamental, ressalte-se, foi ter de passar a pensar nesse novo leitor. Tezza, ele mesmo já contou, chegou a flertar com a ideia de ganhar a vida como jornalista, antes de se decidir pela docência. A razão por que desistiu? O jornalismo exigiria investimento excessivo de tempo e talento para a escrita, minando, quem sabe, o escritor em formação.
Agora um romancista experiente e consagrado, a questão não mais se colocava — e a Gazeta pôde, enfim, revelar um operário
da escrita de grande talento. A ponto — justifica-se o título desta coletânea — de dar a impressão de passear pelos 2.800 caracteres que lhe são destinados a cada semana no jornal. Alguém poderia dizer: um operário em férias
. A autoria da expressão, mas em outro contexto, é do próprio Tezza — só que ele certamente teria objeções à maneira como a uso aqui. Falo do velho clichê de que escrever bem apenas parece fácil. Leia-se o que escreveu o autor numa crônica que ficou de fora desta seleção, intitulada O centenário do cronista
:
A tese de que a falta de assunto é o filé-mignon do cronista e o estopim de textos brilhantes sobre o nada não é verdade — pelo menos para alguém desprovido de imaginação como este escriba. O velho professor que temia o improviso e compensava a insegurança com planos de aula antecipados a longo prazo agora se tornou o cronista que sofre com a urgência do texto e o vazio do assunto. É só sair a crônica da terça com um suspiro de alívio e na manhã de quarta ele começa a suar — uma semana de aflição em busca de um tema qualquer que segure o leitor. (Gazeta do Povo, 23/03/2010)
Na sequência do texto, o cronista é dramático: Sobrevivi? — ele se perguntará na eterna manhã das terças, exposto à justiça ferina, implacável e sem retorno de quem não tem tempo a perder e é a razão de ser do jornal — o leitor.
E segue narrando a agonia naquele centenário do espaço que ocupa às terças:
Pede socorro em casa, atrás de assunto: escreva sobre a falta de assunto — sugerem sorridentes, sem levá-lo a sério. Lá isso é tema para um centenário? O Lula, talvez? [...] Quem sabe algo severo: a inexistência da literatura brasileira no resto do mundo — não, hoje é dia de falar de algo mais para cima. [...] Súbito, o estalo: o grande Atlético Paranaense, é claro! Faz meses que não falo dele — mas a tela em branco continua, mesmo com o tema escolhido.
O final da crônica — que, com o espaço que já ocupa aqui, fica sendo a 101ª desta coletânea, e com méritos — é digno de citação integral:
Os dias se arrastam, a semana avança e os temas voam — tanta coisa para dizer! As calçadas horrorosas de Curitiba, aquelas pedras tortas e quadradas — se fosse chão de terra batida seria melhor. E eu com planos de caminhar diariamente, o projeto frustrado de andarilho. Ou o desejo de passear pela cidade naquele ônibus sem teto de turistas, tirando fotografias, como se eu não fosse daqui. Perguntas crônicas: a candidatura da Dilma é uma espécie de triunfo do velho Partidão? Qual a relação entre a cultura do shopping center e a violência urbana? Por que o brasileiro é o povo mais feliz do mundo, segundo as pesquisas? Dunga
é um bom nome para técnico? Tudo para escrever — e nada me ocorre. Esgotado, viro a página. Amanhã recomeço.
Fica claro a essa altura que há certa ironia no título deste livro: tendo passado a sobreviver da escrita, o autor não pode mais se entregar ao ócio de verdadeiras férias — e, consequência, quem acompanha Cristovão Tezza na Gazeta do Povo jamais encontrou, no lugar da coluna, aquele aviso que costuma ser a decepção e a irritação do leitor assíduo, de que o titular da coluna volta em...
. Cúmulo da disciplina, nem mesmo o famoso hoje, excepcionalmente, a crônica não é publicada
alguma vez se interpôs — foram 250 textos ininterruptos desde abril de 2008.
A crônica transcrita acima inspirou também a divisão por temas proposta nas próximas páginas. Tezza enumera, brincando a sério, os assuntos que o tocam como um escritor do cotidiano — além do operário em férias
, outro epíteto possível para o cronista; aliás, qualquer cronista. Mas o cotidiano do nosso cronista, em particular, contemplará, nas crônicas deste livro, as seguintes sete faces (como no poema de um dos mestres assumidos de Tezza): A vida é sonho
, a primeira seção, feita de memórias e de certa filosofia da escrita, por assim dizer, desenvolvida ao longo dos quarenta anos de carreira do ficcionista por trás do cronista; Viagens pela leitura
, acerca do que lê e como lê o escritor; Vida de torcedor
, em que Tezza se revela um louco por futebol, ainda mais quando na arquibancada do Clube Atlético Paranaense; Terça-feira
, uma série de crônicas para revelar o que faz o escritor quando não está escrevendo (ainda que, aqui, por escrito) num dia qualquer da semana (mas para nós sempre o mesmo, toda terça); Curitiba no divã
, com as impressões do autor sobre essa idiossincrática cidade que o adotou aos 7 anos de idade, vindo de Lages, Santa Catarina, onde nasceu; De volta à vida real
, num contraponto à vida de sonho da primeira seção, e a parte mais séria do conjunto, a que traz opiniões sobre grandes questões contemporâneas — políticas, culturais, sociais — no Brasil e no mundo; e, finalmente, como um retorno ao Tezza que nos acostumamos a ler, ‘Ficções’
, mas com um pé na realidade, como convém à crônica — daí as aspas dentro de aspas.
Em cada seção, todas batizadas a partir de títulos de alguns dentre as duas centenas e meia de textos do conjunto maior, as crônicas aparecem em ordem cronológica de publicação, com poucas exceções. A primeira e a última crônica de cada capítulo, por exemplo, algumas vezes fogem à regra para dar maior fluidez à transição entre os temas. Também os textos que claramente formariam um subconjunto temático, mas não apareceram originalmente em sequência no jornal, agora podem ser lidos um após o outro. O critério geral, cronológico, pretende dar ao leitor deste livro a noção exata das ideias que, semana a semana, passavam na cabeça do autor.
A expressão um operário em férias
aparece numa crônica em que Tezza exalta os prazeres da casa
, e que não por acaso abre a seção central desta coletânea, Terça-feira
. Tezza, claro, se mostra também um pensador perspicaz do Brasil e do mundo, e — mesmo em textos curtíssimos e no fio da navalha entre fato e ficção que é a crônica — é o ficcionista de sempre, de mão cheia. Mas, na maior parte do tempo, o romancista — esse sujeito sempre cercado de certo mistério, uma aura até inexplicável num país, em geral, indiferente à literatura — se revela homem comum, caseiro: nas tarefas domésticas, orgulhoso de sua habilidade ou mordaz com os próprios atrapalhos; feliz com as leituras descompromissadas de autoaposentado
; eufórico ou pessimista com os destinos do time de coração; flâneur na cidade com jeitão de província; fazendo, enfim, daquelas férias tão sonhadas (e agora, ironicamente, adiadas por tempo indeterminado) o mote da obra efêmera que, mesmo em progresso, já resulta consistente. E um prazer para o leitor.
Nota
* Tradutor e jornalista, pós-graduado nas universidades Central England (Reino Unido) e Sorbonne (França), foi repórter da revista Veja e da rádio CBN, entre outros veículos. É mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorando em História Social na Universidade de São Paulo (USP), com projeto sobre tradução cultural. Professor desde 2002, dá aulas de produção de texto, literatura e pesquisa em Comunicação na Universidade Positivo (UP), em Curitiba.
A VIDA É SONHO
VOLTAR AO PASSADO
Nunca vale a pena voltar ao passado
, dizia um velho amigo meu, o ator curitibano Ariel Coelho, já falecido — e na frase havia um toque de humor, no que ele era mestre, e daquela sabedoria prática que talvez se resumisse num conselho simples: não perca tempo com o passado. Você vai se arrepender. No entanto voltamos a ele mal rompe a manhã, parodiando o poeta. Sim, arrastamos o passado imediato, o ontem, o mês passado, talvez dois anos atrás, que vamos como que puxando adiante, largando memória e velheiras pelo caminho e catando o que há de novo pela frente para encher a urgência do tempo presente. Mas não era de metafísica que Ariel falava: era das pessoas, do clima, da misteriosa aura que em algum momento do tempo vivemos com elas e que sonhamos recuperar com a perfeição de um filme. Afinal, nossa pátria — hoje parece que me deu a melancolia de evocar poetas — são as pessoas que conhecemos pela vida afora. Desde que nascemos, são os semelhantes que vão nos modelando, desde a linguagem até a alma, por assim dizer — sem eles, dói a solidão do deserto.
Reencontrar um velho conhecido é como reconectar-se a uma outra vida que sobreviveu intacta na memória, uma pequena droga de euforia, a promessa de um eterno retorno, a felicidade límpida e intocável de uma boa lembrança — uma sólida amizade de ontem, um trabalho conjunto bem-sucedido que se fez há tempos, uma paixão apagada. Às vezes é só uma boa cerveja numa longa e luminosa conversa de uma madrugada esquecida 17 anos atrás. E, quase sempre, bastam dez ou vinte minutos de sorrisos e abraços, as perguntas tateantes, aquele olhar surpreso — Cara, como você está bem!
, ou Mas você emagreceu!
, às vezes lutando para lembrar o nome, ou então você já tem o nome (Grande Zeca, velho de guerra!
) mas não o espaço; ou a surpresa em frente da mulher distante, agora com uma criança pela mão, e em um segundo uma vida inteira paralela viaja, invejosa da vida real (ou é a vida real que inveja a imaginária); ou às vezes tudo é perfeitamente nítido, a pessoa, o tempo, o espaço, a lembrança, mas mesmo assim falta tudo — e a promessa de uma alegria revisitada vai se corroendo inapelável para o sem-jeito de dois desconhecidos que se esbarram na calçada, planetas que em minutos retomam suas órbitas para nunca mais.
O Vamos nos encontrar uma hora dessas!
, com a promessa implícita de uma grande alegria que se reconquista é, sim, um gesto de boa educação, a cortesia obrigatória da vida comum, mas