Me ajude a chorar
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Sobre este e-book
Carpinejar mostra a sua mais intensa fragilidade, provando que, na verdade, nesta terapia ou catarse literária, todos devem ser muito felizes para suportar a tristeza verdadeira. Me ajude a chorar vai emocionar o leitor de maneira única.
Dessa vez, Fabrício não fala a respeito de separação e relacionamentos, mas de temas mais gerais, mais coletivos, que buscam focar também em tragédias mínimas e pessoais, como o caso de uma senhora que estava para perder o marido e só desejava mais uma noite de conchinha com ele. Ela trocaria tudo na vida dela por esta noite.
Constam na obra dois textos que ficaram famosos quando publicados: o escrito em homenagem às vítimas de Santa Maria (RS), que inclusive foi capa em diversos jornais, como O Estado de S. Paulo, e aquele sobre o acidente aéreo de 2007 em Congonhas (SP).
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Me ajude a chorar - Fabrício Carpinejar
Neruda
PAI DE MEU PAI
Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.
É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, vagaroso, impreciso.
É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.
É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela — tudo é corredor, tudo é longe.
É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.
E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.
Todo filho é pai da morte de seu pai.
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.
E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.
Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.
Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.
Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.
Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.
Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?
Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.
E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.
Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:
— Deixa que eu ajudo.
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.
Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.
Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.
Embalou o pai de um lado para o outro.
Aninhou o pai.
Acalmou o pai.
E apenas dizia, sussurrado:
— Estou aqui, estou aqui, pai!
O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.
PEQUENOS CÉUS SOMADOS
O pássaro que voará mais alto é o pássaro que nunca desistiu de puxar a coleira.
Será a ave amarrada pelas patas que não se conformou com o confinamento da gaiola e que toda manhã esticará seu corpo até o máximo.
Até o máximo daquele dia.
Não pode se soltar, mas nem por isso se sentirá preso. Não é livre, mas nem por isso deixará de admirar a possibilidade de flanar.
Se não tem condições de brincar com as árvores, brincará com sua sombra.
Se não tem como brigar pela comida, valorizará o alpiste que recebe em sua tigela quebrando minuciosamente cada grão.
Se não tem vento para expor sua plumagem, baterá as asas para fazer vento em si.
Se não tem o sol na cara, levantará as unhas pelas barras das grades por um punhado de luz.
O pássaro que voará mais alto sempre é o que — enquanto não pode voar — canta, é o que — enquanto não pode subir — caminha, é o que — enquanto não pode planar — afia o bico.
Não reclamará da falta de opção, usará as opções que tem.
Não pode voar, mas treina seu voo esticando a coleira até o máximo. Até o máximo daquele dia.
Puxará a corrente ao limite. Somará pequenos céus com os centímetros de sua corrente.
Tudo o que voará depois será resultado de tudo o que andou em seus limites. Cinco passos repetidos à exaustão darão o condicionamento de quilômetros. Não estará destreinado para as alturas, já que exercitou seu fôlego no chão.
Não desistiu de avançar mesmo com a ausência de espaço. Não se restringiu a uma aparência apagada. Não se encabulou pelo sofrimento.
Quando não havia chance de sair dali, aproveitou a solidão para se conhecer.
Quando não havia com quem conversar, aproveitou o silêncio para afinamentos.
Deveria ser triste pelas suas circunstâncias, porém é feliz pelo temperamento.
Deveria ser melancólico pelo destino, porém é confiante no acaso.
O pássaro que desaparecerá um dia no alto das nuvens, como se fosse mais uma nuvem, foi o pássaro que jamais parou de tentar.
Só voará alto quem carregou suas penas.
Só voará alto aquele que criou seu lugar um pouco por vez, aquele que formou sua virtude em segredo, aquele que não culpou a vida para se manter parado.
Liberdade vem com o tempo, liberdade vem devagar, liberdade é esforço. Não ser do tamanho de nossa prisão, mas ser do tamanho de nossa vontade.
O OCEANO E UMA CONCHINHA
Encontrei uma senhora com sacolas de mercado subindo as escadas do hospital.
Perguntei se poderia ajudar. Minha mãe sempre me ensinou que não custa nada ser educado.
Carreguei as sacolas até o terceiro andar. Ela se despediu