O menino que via demônios
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Sobre este e-book
Alex Broccoli mora numa das áreas mais pobres de Belfast, em meio à violência e à angústia geradas por um longo período de agitação política na Irlanda do Norte.
Filho único, ele é premido por enormes desafios e precisa superar obstáculos como o desaparecimento do pai e as sucessivas e frequentes tentativas de suicídio da mãe. Seu único amigo é Ruen, um demônio.
Anya Molokova é a psiquiatra designada para cuidar de Alex. A terapeuta, que ainda guarda cicatrizes da batalha travada com a esquizofrenia da própria filha, tenta convencer o menino de que Ruen não existe. Inteligente, sensível e firme em suas crenças, ela se vê forçada, no entanto, a mudar de ideia quando Alex lhe faz espantosas revelações sobre a vida dela, a respeito das quais ele nada poderia saber.
Nesta atmosfera sombria em que realidade e fantasia se fundem, Carolyn Jess-Cooke discute questões universais da vida e da morte e, em tom vibrante e otimista, utiliza o sobrenatural como uma lente através da qual considerar questões fundamentais.
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O menino que via demônios - Carolyn Jess-Cooke
1
RUEN
Alex
As pessoas me olham de um modo engraçado quando eu digo a elas que tenho um demônio.
"Você quer dizer que tem demônios, não?, perguntam.
Como um problema com drogas ou uma ânsia de esfaquear seu pai?" Eu respondo que não. Meu demônio chama-se Ruen. Ele tem pouco mais de um metro e sessenta e suas coisas preferidas são Mozart, tênis de mesa e pudim de pão.
Eu conheci Ruen e seus amigos há cinco anos, cinco meses e seis dias. Foi na manhã em que mamãe disse que papai tinha ido embora, e eu estava na escola. Um bando de criaturas muito estranhas surgiu no canto da sala, ao lado do mural sobre o Titanic que havíamos feito. Algumas delas se pareciam com pessoas, embora eu soubesse que não eram professores nem os pais de ninguém, porque algumas pareciam lobos, porém com pernas e braços humanos. Uma das fêmeas possuía braços, pernas e orelhas que eram todos desiguais, como se tivessem pertencido a pessoas diferentes e tivessem sido unidos como o monstro de Frankenstein. Um de seus braços era peludo e musculoso, o outro era fino como o de uma menina. Eles me assustaram, e eu comecei a chorar porque tinha apenas 5 anos.
A srta. Holland veio até a minha carteira e perguntou o que havia de errado. Falei para ela dos monstros no canto da sala. Ela tirou os óculos muito lentamente e empurrou-os para cima da cabeça, em seguida perguntou se eu estava me sentindo bem.
Olhei de novo para os monstros. Não conseguia afastar os olhos do que não tinha rosto, mas apenas um enorme chifre vermelho, como o chifre de um rinoceronte, só que vermelho, na testa. Ele tinha corpo de homem, mas coberto de pelos, e suas calças pretas estavam presas com suspensórios feitos de arame farpado e gotejando sangue. Ele segurava um pau com uma bola de metal no topo, de onde saíam espigões, como um ouriço. Levou um dedo aonde seus lábios estariam, se os tivesse, e então uma voz surgiu em minha mente. Ela soou muito mansa, mas ainda assim rouca, exatamente como a de meu pai:
– Sou seu amigo, Alex.
Então, todo o medo desapareceu de mim, porque o que eu queria mais do que tudo no mundo era um amigo.
Descobri mais tarde que Ruen possui maneiras diferentes de se apresentar, e essa era a que eu chamava Cabeça de Chifre, que é muito assustadora, especialmente quando vista pela primeira vez. Felizmente, ele não aparece assim com muita frequência.
A srta. Holland perguntou o que eu estava olhando tão fixamente, porque eu ainda fitava os monstros, e me perguntava se seriam fantasmas, já que alguns deles pareciam sombras. Essa ideia me fez começar a abrir a boca e eu senti um ruído começar a sair, mas, antes que ficasse alto demais, ouvi a voz de meu pai novamente em minha cabeça:
– Fique calmo, Alex. Não somos monstros. Somos seus amigos. Não quer que sejamos seus amigos?
Olhei para a srta. Holland e disse que eu estava bem, e ela sorriu, disse OK e voltou para sua mesa, mas continuou a virar-se para me olhar com um ar muito preocupado.
Um segundo depois, sem atravessar a sala, o monstro que falara comigo apareceu ao meu lado e me disse que seu nome era Ruen. Disse que era melhor eu me sentar ou a srta. Holland iria me mandar falar com uma pessoa chamada Psiquiatra. E isso, Ruen assegurou-me, não envolveria nada divertido, como representar, contar piadas ou desenhar esqueletos.
Ruen conhecia meus passatempos favoritos, então eu soube que havia alguma coisa estranha acontecendo ali. A srta. Holland continuava a me olhar como se estivesse muito preocupada, enquanto prosseguia com a aula sobre como enfiar uma agulha através de um balão congelado e por que isso era uma importante experiência científica. Sentei-me e não falei nada a respeito dos monstros.
Ruen explicou-me muita coisa sobre quem ele é e o que faz, mas nunca por que eu consigo vê-lo quando ninguém mais consegue. Acho que somos amigos. A questão é que o que Ruen me pediu para fazer me faz pensar que ele não é absolutamente meu amigo. Ele quer que eu faça algo muito ruim.
Ele quer que eu mate uma pessoa.
2
SONHO ACORDADO
Alex
Querido Diário,
Um garoto de 10 anos entra em uma peixaria e pede uma perna de salmão. O sábio pescador ergue as sobrancelhas e diz:
– Salmão não tem pernas!
O garoto volta para casa e conta ao pai o que o peixeiro disse, e o pai desata a rir.
– OK – diz o pai do menino. – Vá à loja de ferragens e compre tinta para pintar xadrez escocês.
Assim, o menino parte para a loja de ferragens. Quando retorna, sente-se muito humilhado.
– OK, OK, desculpe-me – o pai diz, embora esteja rindo tanto que quase molha as calças. – Tome esta nota de cinco. Vá comprar dedos de peixe frito para nós e use o troco para comprar batatas fritas para você.
O menino atirou a nota de cinco na cara do pai.
– Ei, o que foi isso? – o pai gritou.
– Você não me engana! – o garoto gritou de volta. – Peixes não têm dedo algum!
Este é um novo diário que minha mãe comprou para mim pelo meu aniversário quando eu fiz 10 anos. Quero começar cada registro com uma nova piada, para que eu possa me sentir no personagem. Isso quer dizer que eu posso lembrar como é ser a pessoa que estou representando, que é um menino chamado Horácio. Minha professora de arte dramática, Jojo, disse que reescreveu uma peça famosa, chamada Hamlet, como uma recontagem contemporânea da Belfast do século XXI, com rap, gangues de rua e freiras camicazes
, e, ao que parece, William Shakespeare está de acordo com isso. Mamãe me disse que entrar para a companhia de teatro é realmente um grande feito, mas pediu que eu não contasse para ninguém em nossa rua, porque posso ser espancado.
Estamos encenando a peça na Grand Opera House, na cidade de Belfast, o que é bom, pois fica apenas a dez minutos a pé de minha casa e, assim, posso ir aos ensaios todas as quintas e sextas-feiras depois da escola. Jojo disse que posso até inventar minhas próprias piadas. Acho que esta piada é mais engraçada do que a última sobre a velha e o orangotango. Eu a contei a mamãe, mas ela não riu. Ela está triste de novo. Comecei a perguntar-lhe por que fica triste, mas a cada vez a razão é diferente. Ontem, foi porque o carteiro estava atrasado e ela estava esperando uma Carta Realmente Importante do serviço social. Hoje, é porque ficamos sem ovos.
Não posso imaginar uma razão mais tola para ficar triste. Eu me pergunto se ela estaria mentindo para mim ou se realmente acha que é normal irromper em lágrimas a cada cinco segundos. Acho que lhe farei mais perguntas sobre como é a tristeza. É por causa do meu pai?, eu quis perguntar hoje de manhã, mas então tive aquilo que o orientador careca chamava de Sonho Acordado e me lembrei da vez em que meu pai fez minha mãe chorar. Geralmente, ela ficava muito, muito feliz quando ele vinha nos visitar, o que não era com frequência, e ela pintava os lábios de vermelho e seus cabelos ficavam parecendo um sorvete, empilhados no alto da cabeça; às vezes, ela usava seu vestido verde-escuro. Mas houve aquela vez em que ele veio e tudo que ela fez foi chorar. Lembro-me de estar sentado tão perto dele que podia ver a tatuagem em seu braço esquerdo de um homem que papai disse ter morrido de fome de propósito. Ele dizia à mamãe: Não me faça sentir culpado, inclinado sobre a pia da cozinha para bater seu cigarro dentro da pia. Sempre três batidas. Ta ta ta.
Você não está sempre dizendo que queria uma casa melhor do que esta? É a sua chance, querida.
E exatamente quando eu estendia a mão para tocar em seu jeans, o joelho esquerdo quase puído onde ele sempre se apoiara para amarrar o laço dos meus sapatos, o Sonho Acordado se desfez e restou apenas eu, mamãe e o som de seu choro.
Mamãe não fala de papai há um milhão de anos, então eu acho que ela deve estar triste por causa da vovó, porque vovó sempre cuidou de nós e era dura com assistentes sociais enxeridas, e, quando mamãe ficava triste, vovó batia a mão com força na bancada da cozinha e dizia coisas como Se você não enfrentar a vida com coragem, ela vai derrubá-la
. Mamãe, então, parecia se recuperar. Mas vovó já não diz isso, e mamãe só faz piorar.
Assim, eu faço o que sempre faço, que é ignorar mamãe enquanto ela ronda pela casa com o rosto todo molhado e eu vasculho a geladeira, os armários da cozinha e debaixo da escada à cata de alguma coisa para comer, até finalmente achar o que procuro: uma cebola e um pouco de pão congelado. Infelizmente, não encontro nenhum ovo, o que é uma pena, porque isso poderia fazer mamãe parar de chorar.
Subo em um banquinho e pico a cebola embaixo da água na pia – como vovó me ensinou, de modo que o sumo não faça os olhos lacrimejarem –, e depois a frito com um pouco de óleo. Em seguida, coloco tudo entre duas fatias de pão torrado. Acredite-me, é a melhor coisa do mundo.
A segunda melhor coisa do mundo é meu quarto. Eu ia dizer desenhar esqueletos ou me equilibrar nas pernas de trás da minha cadeira, mas acho que vêm em terceiro lugar, porque meu quarto fica tão alto no topo de nossa casa que eu não ouço mamãe chorar e porque é para onde eu venho quando quero pensar e desenhar, e também escrever piadas para o meu papel como Horácio. É gelado aqui em cima. Provavelmente, seria possível guardar cadáveres aqui. A vidraça está quebrada e não há carpete, e tudo que o aquecedor faz é uma grande poça amarela no chão. Na maior parte do tempo, eu visto um suéter extra e às vezes um casaco, chapéu, meias de lã e luvas quando venho aqui para cima, apesar de ter cortado as pontas dos dedos das luvas para poder segurar meus lápis. É tão frio que papai nunca se deu sequer ao trabalho de arrancar o velho papel de parede, que ele disse estar ali desde que São Patrício expulsou todas as cobras da Irlanda. É prateado com muitas folhas brancas espalhadas por todo ele, embora eu ache que elas pareçam penas de um anjo. A última pessoa que morou aqui deixou todas as suas coisas, como uma cama com apenas três pernas, um armário e uma cômoda alta e branca com as gavetas cheias de roupas. A pessoa que as deixou provavelmente era apenas desleixada, mas até que foi bom, já que mamãe nunca tem dinheiro para comprar roupas novas para mim.
Mas isso é apenas o melhor do meu quarto. Sabe o que é realmente o melhor do meu quarto?
Quando Ruen vem, eu posso conversar com ele por muito, muito tempo. E ninguém pode ouvir.
Assim, quando descobri que Ruen é um demônio, não fiquei com medo, porque eu não sabia que um demônio era uma coisa. Achei que fosse apenas o nome da loja perto da minha escola que vendia motocicletas.
– Então, o que é um demônio? – perguntei a Ruen.
Ele era o Menino Fantasma, na ocasião. Ruen possui quatro aparências: Cabeça de Chifre, Monstro, Menino Fantasma e Velho. Menino Fantasma é quando ele se parece comigo, só que de um modo engraçado: ele tem exatamente o mesmo cabelo castanho e a mesma altura que eu, e até os mesmos dedos com os nós salientes, o nariz borrachudo e as orelhas de abano, mas seus olhos são absolutamente negros e às vezes o corpo inteiro é transparente como um balão. Suas roupas também são diferentes das minhas. Ele usa calças bufantes e presas na altura dos joelhos, uma camisa branca sem gola, e está sempre com os pés descalços e sujos.
Quando perguntei o que era um demônio, Ruen deu um salto e começou a lutar boxe em frente ao espelho atrás da porta do meu quarto.
– Demônios são como super-heróis – disse ele entre um golpe e outro. – Humanos são como larvas.
Eu ainda estava sentado no chão. Eu perdera nosso jogo de xadrez. Ruen me deixara pegar todos os seus peões e bispos, e então me deu um xeque-mate apenas com o rei e a rainha.
– Por que os humanos são como larvas? – perguntei.
Ele parou de boxear e virou-se para mim. Eu podia ver o espelho através dele, então mantive o olhar fixo ali, ao invés de encará-lo, porque seus olhos negros me davam uma sensação esquisita no estômago.
– Não é culpa sua que sua mãe o tenha dado à luz – disse ele, começando a dar saltos. Por ele ser como um fantasma, seus pulos pareciam rabiscos no ar.
– Mas por que os humanos são como larvas? – insisti. Ao contrário dos humanos, as larvas parecem unhas rastejantes e vivem no fundo de nossas latas do lixo.
– Porque eles são burros – disse ele, ainda pulando.
– Como os humanos são burros, então? – perguntei, levantando-me.
Ele parou de pular e olhou para mim. Estava zangado.
– Olhe – disse ele, estendendo a mão para mim. – Agora, coloque a sua em cima da minha.
Obedeci. Não se podia ver o chão através da minha mão.
– Você tem um corpo – disse ele. – Mas provavelmente vai desperdiçá-lo, tudo que pode fazer com ele. Exatamente como o livre-arbítrio. É como dar uma Lamborghini para uma criancinha.
– Está com inveja, então, não é? – perguntei, porque uma Lamborghini é um belo carro que todo mundo gostaria de ter.
– Uma criancinha dirigindo um carro esporte seria uma má ideia, não é? Alguém tem que intervir, impedir que a criança cause mais dano que o necessário.
– Então, os demônios tomam conta das criancinhas? – perguntei.
Ele pareceu indignado:
– Não seja ridículo.
– O que fazem, então?
E então ele me lançou seu olhar Alex É Burro. É quando sorri, apenas com metade da boca, seus olhos se estreitam e endurecem e sacode a cabeça como se eu fosse uma decepção para ele. É o olhar que dá um nó no meu estômago e faz meu coração bater mais rápido, porque bem no fundo eu sei que sou burro.
– Nós tentamos ajudá-los a ver além da mentira.
Pisquei.
– Que mentira?
– Vocês todos se acham tão importantes, tão especiais. É uma falácia, Alex. Vocês não são nada.
Agora que tenho 10 anos, sou bem mais velho, portanto sei mais a respeito de demônios e Ruen não é assim. Acho que todo mundo tem uma ideia errada dos demônios, exatamente como têm a respeito dos rottweilers. Todos dizem que rottweilers comem criancinhas, mas vovó tinha um chamado Milo e ele sempre apenas lambia meu rosto e me deixava cavalgá-lo como um pônei.
Mamãe jamais vê Ruen, e eu não lhe contei sobre ele nem sobre nenhum outro demônio que vem à nossa casa. Alguns são um pouco estranhos, mas eu os ignoro. É como ter um monte de parentes rabugentos andando pela casa, achando que podem ficar me dando ordens. Mas Ruen é legal. Ele ignora mamãe e gosta de ficar bisbilhotando pela nossa casa. Ele adora o velho piano do vovô, que fica no saguão. Fica parado ao lado dele por muito tempo, inclinando-se para olhar a superfície mais de perto como se houvesse uma vila em miniatura vivendo nos veios da madeira. Em seguida, ele se abaixa para pressionar o ouvido contra a metade inferior, como se houvesse alguém ali dentro tentando falar com ele. Ele me diz que aquele foi um piano magnífico um dia, mas fica muito irritado pela maneira como mamãe o mantém pressionado contra o aquecedor e não manda afiná-lo. Soa como um cachorro velho, diz, batendo na madeira com os nós dos dedos, como em uma porta. Apenas dou de ombros e digo: Grande coisa. Então, ele fica tão irritado que desaparece.
Ruen às vezes se transforma no Velho quando fica irritado. Se eu ficar igual a ele quando ficar velho, eu me mato. Quando ele é o Velho, é tão magro e encarquilhado que parece um cacto com olhos e orelhas. Seu rosto é comprido como uma espada, com um monte de rugas sulcadas tão fundo que ele parece amarfanhado como papel de alumínio reutilizado. Tem um nariz comprido e adunco, e a boca me faz lembrar a de uma piranha. A cabeça brilha como uma maçaneta prateada e é coberta de tufos esfiapados de cabelos finos e brancos. Seu rosto é cinzento como um lápis, mas as bolsas sob os olhos são de um rosa vivo, como se alguém tivesse arrancado a pele. Ele é realmente feio.
Mas isso não é tão ruim quanto sua aparência de Monstro. O Monstro é como um cadáver que ficou submerso por semanas e é arrastado para fora da água pela polícia, para cima de um pequeno barco, e todo mundo vomita porque sua pele é cor de berinjela e a cabeça é três vezes o tamanho de uma cabeça normal. E isso não é tudo: quando ele é Monstro, o rosto de Ruen não é um rosto. Sua boca parece um buraco feito por alguém com uma arma de fogo e seus olhos são minúsculos como os de um lagarto.
E tem outra coisa: ele diz que tem 9 mil anos humanos. Ah, claro, zombei quando me disse isso, mas ele simplesmente inclinou o queixo e passou a hora seguinte contando-me como podia falar mais de 6 mil idiomas, mesmo os que ninguém mais falava. Continuou falando sem parar, contando-me como os seres humanos não sabem sequer sua própria língua, não de verdade, nem têm palavras adequadas para coisas importantes, como culpa e mal, que era ridículo que um país com tantos tipos diferentes de chuva tivesse apenas uma palavra para isso, blá-blá-blá, até que bocejei por cinco minutos, sem parar, e ele enfiou a carapuça e partiu. Mas no dia seguinte choveu, e eu pensei: Talvez Ruen não seja tão idiota afinal. Talvez ele realmente tenha razão. Algumas chuvas são como peixinhos, outras, como grandes cusparadas, e outras, como rolimãs. Então, comecei a pegar livros na biblioteca para aprender algumas palavras em várias línguas bacanas, como turco, islandês e maori.
"Merhaba, Ruen, eu lhe disse um dia, e ele apenas suspirou e retrucou:
É ‘h’ mudo, seu imbecil. Então eu disse:
Góda kvoldid, e ele rebateu:
Ainda estamos no meio da manhã. E, quando eu disse:
He roa te wa kua kitea", ele disse que eu era obtuso como um gnu.
– Que língua é essa? – perguntei.
– Inglês. – Ele suspirou e desapareceu.
Assim, comecei a ler o dicionário para compreender as palavras estranhas que ele usa o tempo todo, como brouhaha. Tentei usar essa palavra com mamãe sobre os distúrbios nas ruas em julho passado. Ela achou que eu estava caçoando dela.
Ruen também me contou muitas coisas sobre pessoas de quem nunca ouvi falar. Disse que um de seus melhores colegas durante muito tempo chamava-se Nero, mas que Nero preferia ser chamado de César por todo mundo e ainda fazia xixi na cama quando tinha uns 20 anos.
Depois Ruen me contou que ficara em uma cela de prisão com um sujeito chamado Só-cra-tis, quando Só-cra-tis recebera a pena de morte. Ruen disse a Só-cra-tis que ele devia fugir. Ruen disse que até convencera alguns amigos de Só-cra-tis a ajudá-lo, mas Só-cra-tis se recusou, e simplesmente morreu.
– Isso é loucura – eu disse.
– É verdade – concordou Ruen.
Parecia que Ruen tinha centenas de amigos, o que me deixou triste, porque eu não tinha nenhum, exceto ele.
– Quem era seu melhor amigo? – perguntei-lhe, esperando que dissesse que era eu.
– Wolfgang – disse ele.
Perguntei: Por que Wolfgang?, e o que eu queria dizer era por que Wolfgang era seu melhor amigo, e não eu, mas tudo que Ruen disse foi que ele gostava da música de Wolfgang, e depois se calou.
Sei o que está pensando: sou maluco e Ruen existe por inteiro em minha cabeça, não apenas sua voz. Que eu vejo muitos filmes de terror. Que Ruen é um amigo imaginário que eu inventei porque sou solitário. Bem, você estaria redondamente enganado se pensasse assim. Embora às vezes eu realmente me sinta solitário.
Mamãe comprou um cachorro para mim quando fiz 8 anos, e eu o chamei de Woof. Ele me faz lembrar um velho rabugento porque está sempre latindo e arreganhando os dentes, e seu pelo é branco e áspero como o cabelo de um velho. Mamãe o chama de banqueta uivante. Woof costumava dormir ao lado de minha cama e correr escada abaixo para latir para pessoas que entravam na casa, para o caso de quererem me matar. Mas, depois que Ruen começou a aparecer com mais frequência, Woof ficou com medo. Ele simplesmente rosna para o nada agora, mesmo que Ruen não esteja lá.
O que me faz lembrar outra coisa. Ruen me disse algo hoje que achei suficientemente interessante para me dar ao trabalho de anotar. Ele disse que não é apenas um demônio. Seu verdadeiro título é Azorrague.
Quando ele disse isso, ele era o Velho. Sorriu como um gato, e todas as suas rugas esticaram-se como cabos telegráficos. Ele falou do modo como tia Bev diz às pessoas que ela é médica. Acho que isso significa muito para ela, porque ninguém em nossa família jamais foi a uma universidade antes, ou dirige uma Mercedes e comprou sua casa própria como tia Bev.
Acho que Ruen tem orgulho de ser um Azorrague porque isso significa que ele é alguém muito importante no Inferno. Quando perguntei a Ruen o que era um Azorrague, ele me disse para pensar no significado da palavra. Tentei procurá-la no meu dicionário, mas descrevia apenas um açoite, um flagelo, o que não fazia nenhum sentido para mim. Quando tornei a perguntar, Ruen perguntou se eu sabia o que era um soldado. Respondi: Hum, claro que sei, e ele disse: Bem, se um demônio comum é um soldado, eu seria comparável a um Comandante-Geral ou Marechal de Campo. Então eu disse: Quer dizer que os demônios lutam em guerras? E ele respondeu: Não, embora estejam sempre lutando contra o Inimigo. Eu disse que isso parecia paranoico, e ele fez uma cara feia e disse: Os demônios são perpetuamente vigilantes, não paranoicos. Ele ainda se recusa a me dizer o que é um Azorrague, assim resolvi dar a minha própria definição: um Azorrague é um velho nojento que quer exibir suas medalhas de guerra e detesta que somente eu consiga vê-lo.
Espere. Acho que posso ouvir mamãe lá embaixo. Sim, ela está chorando outra vez. Talvez eu devesse fingir que não notei. Tenho ensaios para Hamlet dentro de 72 minutos e meio. Talvez ela só esteja fazendo isso para chamar atenção. Mas o meu quarto começou a se encher de demônios, uns vinte deles sentados em minha cama e amontoados nos cantos, sussurrando e dando risadinhas. Estão todos tagarelando animadamente como se fosse Natal ou algo assim, e um deles acabou de pronunciar o nome de minha mãe. Sinto uma sensação esquisita na barriga.
Alguma coisa está acontecendo lá embaixo.
– O que está havendo? – perguntei a Ruen. – Por que estão falando de minha mãe?
Ele olhou para mim e ergueu uma de suas sobrancelhas cabeludas.
– Meu querido, a Morte bateu à sua porta.
3
A SENSAÇÃO
Anya
O telefonema veio hoje de manhã, às 7:30.
Ursula Hepworth, a psiquiatra consultora sênior da Unidade de Internação da Casa MacNeice de Saúde Mental da Criança e do Adolescente, ligou para o meu celular e mencionou um garoto de 10 anos sob o risco de ferir a si mesmo ou a outras pessoas. De nome Alex Broccoli, ela disse. A mãe de Alex tentara o suicídio ontem e fora submetida a uma cirurgia, enquanto o menino foi levado para a unidade pediátrica do Hospital Municipal. Alex estava em sua casa, a oeste de Belfast, e passara uma hora sozinho com ela, tentando obter ajuda. Por fim, uma senhora que viera pegar Alex para um grupo de teatro interveio e levou os dois para o hospital. Compreensivelmente, o menino estava em péssimo estado. Ursula informou-me que um assistente social chamado Michael Jones já fizera contato com o menino e estava preocupado com sua sanidade mental. A mãe de Alex já tentara o suicídio pelo menos quatro vezes nos últimos cinco anos. Oito de dez crianças que testemunham o suicídio de um pai ou mãe reproduzem a ação em si mesmas.
– Normalmente, seria eu a clínica responsável no caso desse menino – explicou Ursula, seu sotaque grego entremeado de tons da Irlanda do Norte. – Mas, como nossa nova psiquiatra consultora da criança e do adolescente, pensei em passar o bastão para você. O que me diz?
Sentei-me na cama com um salto, saudada por um mar de caixas espalhadas por todo o assoalho do meu novo apartamento. É um lugar de quatro cômodos na periferia da cidade, tão perto do oceano que eu acordo com o barulho de gaivotas e o leve cheiro de sal. É revestido de azulejos do chão ao teto, com ladrilhos vermelho-tomate que ardem como uma fornalha ao nascer do sol, devido ao fato de o apartamento dar para oeste e eu ainda não ter tido tempo de comprar cortinas. Também não tive chance de mobiliá-lo, tais têm sido as exigências deste novo emprego desde que me mudei de Edimburgo para cá há duas semanas.
Consultei meu relógio.
– A que horas precisa que eu esteja aí?
– Em uma hora?
O dia 6 de maio tem sido marcado com um círculo na minha escala de trabalho como dia de folga, nos últimos três anos, e foi aceito na ocasião da assinatura do meu contrato de trabalho. Sempre será, pelo resto da minha vida profissional. Neste dia, aqueles que considero meus melhores amigos chegam trazendo oferendas de consolo, como torta de queijo, abraços carinhosos, álbuns de fotos minhas e da minha filha em épocas mais felizes, quando ela estava viva e relativamente bem. Alguns desses amigos não me veem em meses, mas, mesmo depois que a cor de seus cabelos mudou e outros relacionamentos terminaram, esses amigos aparecem à minha porta para me ajudar a purgar este dia do meu calendário por mais um ano. E será sempre assim.
– Desculpe-me – eu disse, e comecei a explicar sobre meu contrato, sobre o fato de ter marcado folga neste dia, e talvez ela pudesse entrevistar o menino hoje e eu pudesse retomar o caso amanhã, a partir de suas observações.
Houve uma longa pausa.
– Isso é realmente muito importante – disse ela com severidade.
Há muitas pessoas que se sentem intimidadas por Ursula. Aos 43 anos, gosto de pensar que já superei coisas, como inferioridade, e, de qualquer modo, a espantosa realidade do quarto ano da morte de Poppy já me deixava à beira das lágrimas. Respirei fundo e informei a Ursula, em minha voz o mais profissional possível, que eu teria prazer em me reunir com o resto da equipe amanhã de manhã, no primeiro horário.
E então alguma coisa aconteceu que eu ainda não sei explicar, algo que só aconteceu algumas vezes antes e que é tão diferente de qualquer outra sensação que eu a chamei, muito simplesmente, de A Sensação. Não há palavras para descrevê-la, mas, se eu fosse tentar verbalizá-la, seria mais ou menos assim: bem no fundo do meu plexo solar, há um calor no início, depois um fogo, embora não seja uma sensação de calor ou dor, que se insinua pelo meu pescoço e maxilar, toma conta do meu couro cabeludo, até meus cabelos ficarem arrepiados, e, ao mesmo tempo, eu a sinto nos meus joelhos, meus tornozelos, até no meu sacro, até eu ficar tão consciente de cada parte do meu corpo que parece que vou levitar. É