Guerra não Declarada
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Sobre este e-book
"Guerra Não Declarada" reúne narrativas que concentram a ação em São Paulo, metrópole onde campeiam a extrema violência e o caos. As narrativas da primeira parte têm como protagonista o investigador Medeiros, lotado numa delegacia de polícia do Campo Limpo, na zona Sul da grande cidade. Personagem de alguns romances do autor – "A Boneca Platinada", "O Comando Negro", "As Joias da Coroa" e "A Dama de Ouro" –, é um homem incorruptível e dedicado a seu ofício. A exemplo dos hardboiled heroes da ficção policial americana, Medeiros é um solitário, cumprindo seu ofício com muita determinação e coragem e sem esperar reconhecimento algum dos superiores. Como pano de fundo às ações do investigador, comparecem os bairros sórdidos da periferia, as ruas sujas, os botecos, inferninhos, povoados de marginais, prostitutas, drogados e policiais corruptos. As narrativas da segunda parte do livro contemplam a população anônima, os deserdados da sorte, os mendigos, os migrantes, os sem-teto e os bandidos de aluguel para quem a vida do próximo não vale nada. Nesse cenário inóspito, os crimes e a brutalidade surgem como algo comum ou banal. Não à toa que os cidadãos, aterrorizados pela violência gratuita, pelos assassinatos a sangue-frio, sintam-se tão desamparados, como se estivessem num campo de batalha, onde a morte espreita a cada passo.
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Guerra não Declarada - Álvaro Cardoso Gomes
I. Medeiros, o Investigador
Apenas um Garoto
Numa pequena folga que consegui no trabalho, eu descia, sem nenhuma pressa, em direção à Baixada Santista. Em São Paulo, costumo fazer o contrário disso: vivo correndo de um lado para o outro. Sou investigador de polícia e estou lotado no 113º DP do Campo Grande, na zona Sul, uma das regiões mais violentas da capital. Em nosso DP, quase todos os dias, há ocorrências de homicídios, assaltos, latrocínios e sequestros, obrigando a gente a se esbaldar. Como faz tempo que não abrem concurso pra escrivão, investigador, delegado, o pessoal do DP tem que trabalhar dobrado, sem direito a folgas e muito menos férias. Por isso mesmo, eu andava cansado, sem apetite, dormindo mal e sem ânimo para nada. Mas foi só avistar do alto da serra São Vicente, entre os rios e mangues, para me sentir melhor. É que já comecei a me imaginar sentado numa barraca, beliscando uma porção de camarão frito, acompanhada de uma caipirinha e olhando as garotas tomando sol na areia.
– Você está precisando de umas férias, partner.
Foi o conselho do meu parceiro, o Bellochio. Muito melhor que o da Alice, que sugeriu que eu fosse a um médico. Isso depois que fiz a besteira de contar para ela que, nos últimos tempos, não vinha me sentindo muito bem.
Uma figura, o Bellochio. É louco por filme policial americano e, por isso, tem o costume de me chamar de "partner". Para completar o figurino, usa um chapéu de abas curtas e um daqueles casacos cafonas de couro preto. Armado com a inseparável Beretta 9 mm, a arma oficial dos tiras de Nova York, ainda costuma levar uma IMBEL .380 num coldre no tornozelo. O Bellochio tem um metro e sessenta e deve pesar quase cem quilos. Mas engano pensar que ele seja um molenga. Com toda aquela barriga e os pneus, ainda consegue ter disposição para correr atrás da bandidagem. De Beretta em punho, sem colete à prova de balas, é o primeiro a entrar nos becos das favelas, para estourar a pontapés a porta dos barracos.
– Férias? O que que vou fazer com férias, Bellochio?
– Descansar, cara. Tomar umas caipirinhas, beliscar um camarãozinho na praia, paquerar umas garotas maneiras. Aí, você volta pro batente novo em folha.
Acabei indo na conversa do Bellochio que, inclusive, me emprestou o apartamento dele em São Vicente. Numa das distrações do nosso delegado, o doutor Ledesma, consegui tirar uns cinco dias de licença. Pus meu Taurus .38 cano curto na cintura, enfiei uma muda de roupa, um shorts, chinelas, uma toalha numa sacola. Peguei também uma garrafa de Ballantines já na metade, O Longo Adeus, do Raymond Chandler, que tinha começado a ler, e saí para o meu mais que merecido descanso.
Chegando no fim da Serra do Mar, continuei pela rodovia Anchieta. Depois de uns vinte minutos, numa bifurcação, tomei a direção de São Vicente. Entrei na Bernardino de Campos e desci a avenida bem devagar, as janelas todas abertas, sentindo o bafo quente da brisa que vinha do mar. A um quarteirão da praia, quando já sinalizava para dobrar à direita na Presidente Wilson, vi um amontoado de gente na porta de um mercadinho. Ia seguir adiante, mas, ao reparar em dois PMs, com a mão na coronha das armas e empurrando as pessoas, pensei se não valia a pena dar uma checada. Hesitei um pouco e pensei: cara, você está de férias e esta não é sua área de atuação
. Mas foi chegar no farol, me deu uma coceirinha e resolvi conferir. Estacionei o carro na esquina mesmo e voltei correndo até o amontoado de gente.
– Aparta, aparta, que é da polícia – disse, passando no meio dos curiosos de plantão.
Um dos PM era um mulato alto, bochechudo, parecido com aquele gnomo do desenho animado, o Schreck. O outro era um garoto baixinho, ainda com a cara cheia de espinhas. Depois de me identificar, perguntei o que estava acontecendo.
– Tem um elemento lá dentro que apagou o dono da loja e fez uma dona de refém – explicou o Schreck com uma voz cavernosa.
– Sozinho ou com um parceiro?
– Sozinho.
– Vocês tentaram entrar?
O baixinho coçou a cabeça.
– O pivete falou que apaga a dona também se a gente tentar entrar.
Seria isso mesmo, ou eles estavam amarelando?
– Qual a arma do vagabundo?
– Acho que um .38... – explicou o baixinho, parecendo em dúvida.
– Posso dar uma olhada?
– Poder, pode, mas ele avisou que só conversa com um juiz – disse o Schreck, que parecia o mais esperto dos dois. – A gente já entramos em contato, e o doutor parece que tá vindo.
– Então, vai até lá e fala que o juiz chegou.
– O juiz? Cadê o juiz? – perguntou o baixinho.
Dei um suspiro e insisti:
– Pode falar que o juiz chegou. Anda, vai lá e avisa o pivete.
O baixinho tornou a coçar a cabeça.
– O elemento parece perigoso.
Tamanha falta de iniciativa devia ser por inexperiência do Papa Mike. Entreguei o meu revólver ao Schreck e disse:
– Muito bem, pode deixar que eu falo com o pivete.
Meti a cara para dentro do mercadinho e, no fundo, vi um corpo caído no chão. O sangue escorria da cabeça da vítima e formava uma poça de sangue no meio de um monte de mercadoria espalhada. Do lado do caixa, o assaltante fazia uma mulher de refém.
– Ei, sou o juiz. Posso entrar?
O assaltante me olhou assustado e berrou:
– Não vem, que eu apago ela!
Era um garoto franzino, de orelhas de abano e careca. Percebi que a mão dele com o revólver tremia, sinal de que estava com medo, o que era ruim. Se eu bobeasse, atirava mesmo na mulher, se não atirasse antes em mim.
– Calma, rapaz, vim aqui pra conversar. Numa boa.
Muito devagar, dei um passo para dentro da loja, o olho fixo no garoto que não parava de tremer. Ele berrou de novo:
– Parado aí!
Parei e abri os braços para mostrar que estava desarmado. Vendo que ele ofegava e tinha o corpo todo coberto de suor, disse:
– Vocês devem estar com sede.
– Te manda, cara! Não vem que não tem! Eu só quero falar com o juiz!
– Já disse, sou o juiz. O doutor Pamplona.
– Juiz?! Você? Cadê o paletó? A gravata?
– Estava de folga quando me chamaram.
Evitando movimentos bruscos, estiquei o braço, abri a porta de uma geladeira a meu lado e peguei duas latas de refrigerante.
– Antes da gente conversar, você não quer um refrigerante? Está fazendo muito calor.
– Que refrigerante, o caralho!
Mostrei as latas:
– Vamos lá, meu chapa. Calma. Só estou querendo ajudar. Vou rolar o primeiro refrigerante pra dona aí e, depois, o seu. Em seguida, a gente conversa.
Me agachei bem devagar. Com a mão esquerda, rolei uma lata na direção dele, enquanto recolhia o braço direito com a outra. O garoto estava ajoelhado, com o revólver encostado na cabeça da refém e apertando o pescoço dela com o braço esquerdo. Excesso de força, já que a mulher parecia uma galinha degolada, o corpo todo mole, os braços caídos e os olhos fechados. Não duvidava que tivesse se borrado toda e desmaiado. O garoto hesitou um pouco e deu uma espiada na lata que ia rolando no chão. Largou da mulher, que caiu como uma trouxa, passou o revólver da mão direita para a esquerda. Olhando ora para a lata, ora para mim, esticou o corpo e tentou pegar o refrigerante. Nessa operação, perdeu o equilíbrio e foi obrigado a se ajoelhar. Era agora ou nunca! Com a mão direita, lancei com toda força a outra latinha de refrigerante contra a cara dele. Bingo! Acertei em cheio no alvo. O garoto berrou e se inclinou para trás, perdendo de vez o equilíbrio. Era o que eu esperava: impulsionei o corpo e voei nele. Atingi o garoto em cheio com todo meu peso. Ao mesmo tempo, agarrei o punho dele com o revólver. O garoto caiu para trás, gemeu, e tentou se aprumar, quase me derrubando. Não perdi tempo e lhe quebrei o nariz com uma cabeçada. O sangue esguichou, borrifando minha cara e meu peito. Aproveitando da vantagem, virei o garoto de costas e lhe torci o braço. Como ainda resistisse embaixo dos meus noventa quilos, bufando e corcoveando, rosnei:
– Fica numa boa, senão te quebro o braço!
Com a ameaça, o garoto parou de se debater. Ainda bem, que eu já estava pondo os bofes pela boca. Nesse momento, os PMs entraram correndo de arma na mão.
– Ei! – comecei a me levantar, mas não deixando de pressionar o garoto junto ao chão com o joelho direito. – Podem baixar as armas! A situação está sob controle.
Não fossem aqueles merdas me acertar um tiro... Me levantei de vez. Os PMs começaram a mostrar serviço. O baixinho algemou o garoto. O Schreck, com toda gentileza, ajudou a mulher a se levantar do chão. Olhei para o garoto: a cara dele era uma pasta só de sangue. Apenas um pivete – e tinha sido o maior sufoco dominá-lo! Puxa vida: eu estava mesmo fora de forma. Em outros tempos, tinha dominado um garotinho daqueles com a maior facilidade.
Estava todo suado. Mal me conseguia ter nas pernas e respirava com dificuldade. Bebi metade de uma garrafa de água mineral gelada e derramei o resto sobre a cabeça. O Schreck me devolveu o revólver, estendeu a mão e disse:
– Meus parabéns, colega! Não vai com a gente lavrar o B.O.?
Enfiei o revólver na cintura, sob a camisa ensanguentada. Pus a mão no ombro dele e disse, ainda ofegante:
– Me livra dessa, colega, estou de férias. Fala pro delegado que vocês fizeram o serviço sozinhos.
O Papa Mike abriu um sorriso, parecendo satisfeito. Com certeza, ia ganhar um elogio do chefe. Foi dizer mais alguma coisa, talvez me agradecer, mas virei as costas e saí do mercadinho, apartando os curiosos. O sol estava de rachar, sentia uma tontura e uma moleza no corpo inteiro. Caminhei bem devagar até a esquina e entrei no carro, que parecia um forno. Dei a partida e descansei um pouco com o ar-condicionado ligado no máximo. Acabei chegando à conclusão que tanto fazia estar de folga na praia ou de serviço no DP em São Paulo. Eu era que nem um pára-raios: onde estivesse, as confusões me procuravam. E, para piorar as coisas, me sentia muito mal. Tinha bastado um garoto para me deixar num estado lamentável. Engatei a primeira, saí pela avenida e peguei o primeiro retorno para São Paulo.
O melhor mesmo era seguir o conselho da Alice e procurar um médico. Antes que tivesse um infarto ou coisa parecida.
Recado para Marluce
O Papa Mike estava caído na calçada, meio de costas, meio de lado, com o joelho da perna direita flexionado, de maneira que, já a um primeiro olhar, pude ver os dois buracos na altura do peito dele. Uma das balas tinha perfurado o colete que nem se fosse papel. Na nádega direita, havia um rombo do tamanho de uma maçã. Era de outro tiro que o tinha atingido no estômago e arrombado tudo por dentro, do mesmo modo que o dedo sujo de um moleque faz, ao se enfiar num pote de margarina. Só o impacto dos projéteis de uma .12 para fazer um estrago assim, tanto que nem me dei ao trabalho de conferir os cartuchos no chão. Me ajoelhei e olhei para a cara do morto que ainda equilibrava o boné da corporação na cabeça. Era mesmo o Cido. Sentado na calçada, o parceiro dele, o cabo Benê, um negrão forte que nem um touro, soluçava. Senti um nó no peito e cerrei os maxilares. Eu não ia chorar, não podia chorar.
O sargento Okamoto estava do lado, os olhos de gato tão vincados que pareciam cicatrizados. Com a mão apoiada na coronha da .40, ele espiava a cena, impassível, como os japoneses. Mas a calmaria do Okamoto era enganosa. Conhecia muito bem o japa: sabia que dentro dele fermentava uma raiva fria. Ótima para fazer o que devia ser feito. Me ergui, dando uma espiada rápida na viatura do Cido, um Corsa, com uma porta aberta, o banco do motorista manchado de sangue e a lataria cheia de perfurações.
– Você conta pra Marluce? – o Okamoto perguntou, seco, com os lábios também vincados.
Ia sobrar para mim. Mas quem podia chegar na esposa do Cido, senão eu, o amigo do peito?
– Conto. Mas, antes, vou com vocês atrás dos vagabundos.
– Tá bom – ele concordou, para, em seguida, gritar para o cabo: – Benê, levanta daí, que a gente não pode mais perder tempo!
O Benê se levantou. Como era grande o cara! A .12 na mão dele parecia uma arma de brinquedo.
– Nos conformes, sargento. Vamos lá – disse, com a voz cavernosa, limpando os olhos com as costas da mão.
– A essa altura, os vagabundos devem estar longe. Numa boa – comentei, balançando a cabeça.
– O pessoal do Garra e da Rota já estão na captura deles – disse o sargento Okamoto com toda a calma do mundo e estreitando ainda mais os olhos. – Combinaram de cercar os elementos lá perto da favela do Boqueirão. É só a gente descer a Canuto que pega eles voltando. Estão num Marea verde.
– Voltando da onde? – perguntei, para depois acrescentar: – A essas horas, os vagabundos devem ter se enfiado na favela. E ninguém mais pega eles.
– Negativo, tá tudo cercado. Eles devem ter chegado lá e, vendo o bloqueio, voltaram. Daqui a pouco vão querer pegar a Canuto pra entrar na Interlagos e sumir em Parelheiros.
– Por que a Canuto?
– O caminho mais rápido.
O japa conhecia como ninguém a vila Erna.
– Tem outra coisa: combinei com o pessoal do Garra e da Rota pra não se meterem.
– Eles vão deixar os vagabundos pra nós? – voltei a perguntar.
– Isso mesmo. Só vão ajudar cercando os elementos e não deixando eles fugir.
Legal o pessoal do Garra e da Rota. Sabiam que era questão de honra do Okamoto, do Benê e de mim. Última homenagem ao colega morto.
– O Benê pode ir com você? – disse o Okamoto.
– Tudo bem – fiz um sinal de positivo para o negão.
– A gente fecha a rua do lado daquela ladeira, você fecha do outro, junto da praça – tornou a falar o Okamoto, entrando na viatura, onde o parceiro dele, o cabo Ewerton, já esperava com o motor ligado.
O Ewerton pisou fundo, e a viatura arrancou cantando os pneus. O pessoal do IML continuava a tirar fotos do cadáver e a colher provas. Entrei no Vectra e saí atrás do japa. Na primeira esquina, o Corsa tomou a esquerda e eu, a direita. Bocejei, porque ainda não havia dormido nada naquela noite. Tinha ficado até perto das três numa baiúca na Major Sertório, bebendo uísque e papeando com uma garotinha chamada Andressa. Nem bonita, nem feia – dava para o gasto. O uísque é que era uma bosta. Tão falso quanto loira de puteiro da Cracolândia. Chegando em casa, foi só vomitar. E lá estava meu jantar boiando no fundo da privada. Nem bem tomei um banho gelado, me preparando para ver se dormia, quando o telefone tocou. Era o sargento Okamoto:
– Má notícia, Medeiros. Parece que pegaram o teu amigo.
Meu coração bateu disparado no peito. Que amigo, pensei? Porque só tenho dois. O Bellochio, meu parceiro do 113º DP e o Cido, que é da PM.
– O Cido. Tocaiaram ele.
Fiquei em silêncio, sentindo uma dor no peito.
– Você vem?
– Já estou indo.
Enquanto me vestia, fiquei pensando naquela merda toda. Puta que pariu, o Cido! Justo o Cido, caralho! Era um baixinho troncudo que conheci jogando futebol soçaite no 9 de Julho
. Um campeonato fuleiro, organizado entre as delegacias da Zona Sul. Muitas vezes, saía pau: afinal, eram jogos da Polícia Militar contra a Polícia Civil. No futebol, engano um pouco, ou melhor, enganava, que agora