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Odisseia: Texto Integral
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Odisseia: Texto Integral

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Sobre este e-book

Surgida no século IX a.C., a "Odisseia" é considerada umas das mais importantes obras da literatura ocidental. Em seus 24 cantos, ela conta as histórias e aventuras de Odisseu (em latim, Ulisses), após sua participação na Guerra de Troia e as peripécias por que passou ao voltar para casa, na ilha grega de Ítaca, para junto da mulher e do filho. O herói vive uma série de aventuras fabulosas pelo caminho, enfrenta inimigos, encontra feiticeiros, ninfas e conhece diversos lugares. Donaldo Schüler, um dos maiores helenistas e tradutores brasileiros, ao verter a obra homérica do original grego para o português, logrou o êxito de manter a sonoridade original, aliando as falas à linguagem coloquial.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de abr. de 2007
ISBN9788525422903
Odisseia: Texto Integral
Autor

Homero

Según la tradición, el poeta griego Homero (ss. IX-VIII a. de C., aproximadamente) fue el autor de la Ilíada y de la Odisea, por lo que es considerado uno de los escritores más influyentes de todos los tiempos. Algunos críticos modernos, sin embargo, mantienen que Homero no fue el auténtico creador de estas obras, sino que se limitó a compilar y unificar una gran cantidad de relatos orales que él mismo recitaba. Sea como fuere, ambos poemas se convirtieron en la base de la educación y cultura griega en la época clásica, así como de la literatura occidental moderna.

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    Odisseia - Homero

    capaimage1

    Por que ler a Odisseia?

    Donaldo Schüler

    A Odisseia nunca deixou de ser lida. Esteve nas mãos de Virgílio, de Camões, de Joyce, de Ezra Pound, de Guimarães Rosa, de García Márquez. Em momentos decisivos, a Odisseia abalou a literatura ocidental. Por que deixaríamos de lê-la agora? Como a Ilíada, a autoria da Odisseia é atribuída a Homero, um autor legendário do século IX antes de Cristo, nascido, ao que supunham, numa das cidades gregas da Ásia Menor. Vale uma rápida comparação da Ilíada, primorosamente traduzida por Haroldo de Campos, com a Odisseia.

    A Odisseia percorre, de certa forma, caminho contrário ao da Ilíada. A epopéia que narra as aventuras de Odisseu dilata tempo, espaço e ação. Permanece o princípio de que a narrativa não ultrapasse, em tamanho, a capacidade de memorização. Embora Odisseu esteja envolvido em aventuras marítimas por dez anos, o narrador o apanha em Ogígia, uma ilha misteriosa nas proximidades de Ítaca. Em algumas semanas, o herói, livrando-se do cativeiro de uma ninfa, chega à sua terra, depois de breve estada em Esquéria, a ilha dos feáceos. Homero rompe, entretanto, a unidade do reduzido tempo desta última etapa, convertendo o herói em narrador de suas próprias aventuras, expediente estranho à Ilíada. Recebido pela corte de Alcínoo, Odisseu rememora para um auditório fascinado o que lhe aconteceu desde a saída de Tróia até à prisão de sete anos em Ogígia. Entre as doze aventuras lembradas em ordem cronológica, Odisseu se demora naquelas que lhe ilustram a inteligência e a ousadia, voando sobre insucessos.

    Em vez de concentrar a ação, a Odisseia mostra-nos, no primeiro plano, Odisseu atuar em três lugares distintos: Ogígia, Esquéria, Ítaca. O espaço amplia-se ainda mais se a ele acrescentarmos os episódios narrados pelo protagonista. A diversificação espacial já estava prevista na introdução. Ouvimos que Odisseu conheceu muitas cidades e a índole de muitos homens. Alguns homeristas observam a divergência entre esta afirmação e as fantásticas viagens de Odisseu em que aparece uma única cidade, a capital do reino de Alcínoo. Há que lembrar, entretanto, a obstinada decisão de considerar o mundo grego como o único civilizado. O navegador que se distancia dele enfrenta o desproporcional, o desmedido, o desumano, o caótico. Curiosamente, nas ocasiões em que Odisseu mente sobre as suas viagens, a normalidade se restaura, pontilhada de cidades, mas, quando relata fatos pretensamente reais, surpreende-nos com ninfas e gigantes. Se devemos procurar a verdade na mentira, chegamos à conclusão de que Homero conhecia histórias de navegações plausíveis, transfiguradas nos cantos, em meio a lendas de vária origem, encanto do poema, verossímeis em caóticas periferias.

    Apropriando-se do espaço fantástico, o autor da Odisseia ganha para a literatura novos territórios. Comparada com a Odisseia, a Ilíada é pouco imaginativa, já que nos amarra ao que confirmam os sentidos. A Odisseia nos libera o rico mundo dos sonhos, assustadores e reais, embora contrários à experiência cotidiana. Também por este caminho a Odisseia nos ensina a desbravar o mundo interior. Nascidos e criados num continente em que bebemos o fantástico com o leite materno, haja vista os romancistas do realismo mágico, podemos sentir melhor a verdade das narrações de Odisseu do que a culta Europa de que somos periferia. Os escritores latino-americanos da segunda metade do século passado repetiram a homérica incorporação do fantástico, libertando-nos do confinamento ao sensorialmente constatado.

    Ao contrário da Ilíada, a Odisseia desdobra-se em três conjuntos distintos: os quatro cantos iniciais em que é protagonista Telêmaco, as aventuras de Odisseu e a reconquista do palácio. Atentos a esta divisão, críticos sugeriram a existência de três poemas originariamente separados, amalgamados, por fim, em um único. A hipótese, embora plausível, é inverificável. Farta tradição oral anterior à Odisseia está assegurada. Basta comparar a Odisseia com os contos recolhidos por Grimm e Andersen para constatar a dívida da epopéia grega à literatura popular cultivada em outras regiões. Fontes orais não negam, entretanto, a existência de um poeta de qualidades privilegiadas. Devemos a ele a reorganização e a recriação do legado.

    As convenções de tempo, espaço e ação inventadas na Ilíada, ao serem inteligentemente preservadas e modificadas na Odisseia, evidenciam a existência de uma tradição culta que não pode ser confundida com a espontaneidade das invenções populares. Acrescente-se a elaboração de personagens sem paralelo na Ilíada e no folclore.

    O poema é dominado do princípio ao fim pela figura singular de Odisseu. O autor da Odisseia assume o compromisso de cantar o herói versátil, não uma de suas qualidades. Se a fúria do Aquiles ausente destaca vários heróis, a presença polimorfa de Odisseu obscurece a atuação dos demais. Entre os caracteres criados, destaca-se a galeria das mulheres, aplaudida em todos os séculos. Circunstâncias diversificadas iluminam o herói como orador, cavalheiro, trapaceiro, guerreiro, pai, esposo, amante, estrangeiro, rei, líder. Enquanto que o campo de batalha requer, na Ilíada, número limitado de qualidades, situações imprevistas solicitam aqui respostas para as quais não houve preparo. O Odisseu narrador surge na corte de Alcínoo. É também aí que se vê a urbanidade do guerreiro no trato com a rainha, com o rei, com a princesa, com os príncipes e os nobres.

    Como não há exércitos inimigos que afastem o herói do objetivo, Homero cria obstáculos de outra ordem. A natureza, cuja força encheu de espanto o homem desde sempre, é uma delas. Ela ataca com tempestades, estreitos rochosos, mares desconhecidos, escassez de alimentos. Para vencê-la, requer-se inteligência, além de destreza, coragem e força. Sem o amparo de ninguém, Odisseu inventa soluções para todas as dificuldades. Os deuses, que decretaram o seu regresso à pátria, ofereceram imprecisos recursos para realizá-lo. Odisseu é vitorioso por ser quem é.

    Embora a epopéia valorize o momento que passa, não omite preocupações pelo que há de vir. Odisseu deixou impressão mais profunda nos leitores do que Aquiles. A personagem foi persistentemente retrabalhada, deixando versões da mais alta importância. Muitos fatores terão contribuído para o sucesso de Odisseu. Dificilmente se mexe no temperamento irado de Aquiles. As múltiplas faces de Odisseu oferecem ao leitor a oportunidade de selecionar as que lhe convêm. Joyce explora a busca e a viagem, dando ao navegador o mar de dúvidas, indagações, andanças inócuas do angustiado homem do século XX.

    Pretendemos, nesta tradução, afrouxar a carga sintática e vocabular que abafa vozes juvenis. Mantemos diálogo entre nosso tempo e outros tempos. Tivemos em mira fazer personagens reviverem em nosso dizer coloquial. Se xingam, que xinguem em português. Quisemos criar ritmos livres, não subordinados a modelos, movimentos próximos à mobilidade do hexâmetro homérico. As repetições, lembrança da literatura oral, aparecerem modificadas, moduladas, contornadas em consonância com procedimentos da literatura escrita. Não estranhe Odisseu em lugar de Ulisses. A preservação de Odisseu nos permite reinventar truques homéricos: a invenção e o uso estratégico do nome. Percebida a sonoridade grega, insistimos em sonoridades na tradução. A sonoridade de Finnegans Wake bate nas paredes da epopéia de Homero.

    Revisitadas discussões entre analíticos (corrente que defende a autoria múltipla) e unitários (corrente que defende a idéia de um só autor), optamos por uma divisão em três seções da nossa Odisseia: Telemaquia (1 – 4), Regresso (5 – 12), Ítaca (13 – 24). Adotamos, para a Odisseia, o mesmo critério que nos orientou no exame da construção da Ilíada. Não negamos a rica tradição oral, trabalho de muitos cantores e responsável por níveis lingüíticos, estratos culturais e contradições. Não podemos negar, entretanto, a presença de um poeta central, a quem atribuímos a cuidadosa elaboração dos episódios, a invenção de caracteres, a variedade estilística. A literatura e o pensamento ocidentais foram construídos sobre Homero. A biografia de Homero são as epopéias homéricas. Precisamos de outra? Os argumentos levantados contra a teoria da autoria única das duas epopéias não são convincentes. Admitamos que a Ilíada e a Odisseia procedam de um só autor em dois momentos privilegiados de sua farta criação literária.

    Em literatura, a erudição filológica está subordinada à realização poética.

    Telemaquia

    Canto 1

    O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitos

    males padeceu, depois de arrasar Tróia, cidadela sacra.

    Viu cidades e conheceu costumes de muitos mortais. No

    mar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado em

    salvar a vida e garantir o regresso dos companheiros. Mas 05

    não conseguiu contê-los, ainda que abnegado. Pereceram,

    vítimas de suas presunçosas loucuras. Crianções! Forraram

    a pança com a carne das vacas de Hélio Hipérion. Este os

    privou, por isso, do dia do regresso. Das muitas façanhas,

    Deusa, filha de Zeus, conta-nos algumas a teu critério. 10

    Os outros, todos os que tinham escapado da tenebrosa

    ruína, estavam em casa, salvos da guerra e do mar.

    Mas Odisseu, embora desejasse o regresso e a mulher,

    vivia numa envolvente caverna, prisioneiro de Calipso,

    ninfa senhorial. Esta o queria como esposo. Por isso, 15

    quando, volvidas as estações, veio, por determinação

    divina, o ano do retorno ao lar, Odisseu ainda não

    estava em Ítaca, entre os seus, livre de provas. Os

    deuses lhe eram propícios, exceto Posidon. Cultivava

    contra Odisseu ódio violento, abrandado só quando 20

    o herói desembarcou em sua terra. Posidon partira

    para visitar os etíopes, gente remotíssima, de cara

    queimada. Uns vivem no Ocidente, onde Hipérion,

    passando sobre nós, desaparece, outros, no Oriente

    onde ele nasce. Fora receber oferendas de touros e de 25

    ovelhas. Banqueteava-se com eles. Entrementes, outros

    deuses achavam-se congregados no palácio de Zeus.

    O pai dos homens e dos deuses fez uso da palavra

    primeiro. Viera-lhe à memória a imagem de Egisto, um

    nobre, morto por Orestes, renomado filho de Agamênon[1]. 30

    Zeus, lembrado dele, dirigiu-se aos imortais: "Meus

    caros, os homens costumam incriminar os deuses. De

    nós, dizem, vêm os males. Não consideram que eles

    padecem aflições causadas por desmandos próprios,

    contrariando Moros[2]. Contra Moros, Egisto uniu-se 35

    à esposa de Agamênon. Este morreu assassinado ao

    regressar de Tróia. O golpe veio do sedutor, embora o

    assassino não ignorasse a conseqüência do crime, pois

    nós o tínhamos advertido, enviando-lhe Hermes. Que

    não matasse o rei, dissemos, não seduzisse a esposa, 40

    pois de Orestes, um Átrida[3], maduro e desejoso de

    regressar, lhe viria a punição. A mensagem foi essa.

    Apesar das boas intenções, o enviado não conseguiu

    dissuadi-lo. Esse pagou pelos seus erros." De olhar

    vivo, contestou Atena: "Cronida[4], nosso pai, soberano 45

    de poderosos, Egisto recebeu castigo merecido.

    A um que se comporte assim aconteça o mesmo!

    Pulsa-me, porém, por outro o coração. Sabes do sábio

    Odisseu? O desdito padece pena, há muito, longe dos

    seus, em ilha cercada de águas profundas, umbigo do 50

    mar, lugar de densa floresta, domínio de uma filha de

    de Atlas, cujo pensar devastador penetra até mesmo

    em profundos abismos marítimos, deus que sustenta

    as colunas gigantescas que mantêm afastados a terra

    e seu céu. É a filha deste que retém o odiado Odisseu. 55

    Vem com magias: palavras aveludadas, sedutoras

    para lhe varrer Ítaca da memória. Mas Odisseu

    só pensa em rever as colunas de fumo que se elevam

    em sua terra. Quer morrer lá. Isso não te amolece

    o coração, Olímpio? Não recebeste tu desse mesmo

    Odisseu sacrifícios nas planícies de Tróia junto às 60

    naus argivas? Zeus, por que tanto ódio a Odisseu?"

    Disse-lhe, em resposta, Zeus Pastor-de-Nuvens:

    "Minha filha, que discurso te saltou a sebe dos

    dentes! Como poderia eu esquecer o divino Odisseu, 65

    superior aos mortais em saber, generoso em oferendas

    aos senhores do céu imenso, seres que não morremos?

    Incansável no ódio lhe é Posidon Ampara-Terra.

    A cólera lhe vem do ciclope de olho vazado (obra de

    Odisseu), o super-humano Polifemo, o mais robusto 70

    de todos os ciclopes. A mãe dele se chamava Tóosa,

    uma ninfa, filha de Fórcis, encarregado da cura do mar

    sem messe. Essa passou pelos braços de Posidon. O

    encontro se deu numa suntuosa caverna. Posidon

    não odeia Odisseu com ódio de morte, só o mantém 75

    errante, longe da pátria. Deliberemos juntos sobre o

    regresso, sobre a maneira de ele achar a rota. Posidon

    terá que abrandar a cólera. Não poderá manter aceso

    o conflito contra a vontade de todos os imortais."

    Respondeu-lhe a deusa dos olhos vivos, Atena: 80

    "Caro Cronida, nosso pai, soberano de poderosos, se

    nesta reunião é este o parecer dos bem-aventurados, que

    o multi-habilidoso Odisseu regresse ao lar, convém que

    Hermes, o mensageiro, o condutor, o matador de Argos,

    se apresse e vá voando à ilha de Ogígia para levar o 85

    indiscutível decreto à ninfa das fartas madeixas. Que

    ela o cumpra! Entrementes, eu mesma irei a Ítaca para

    animar Telêmaco. Quero infundir-lhe ardor. Deverá

    convocar os aqueus[5] de esvoaçantes cabelos para uma 90

    assembléia com a finalidade de conter os pretendentes.

    Eles insistem em consumir-lhe ovelhas gordas e reses

    que arrastam cascos luzentes, os bois. Eu o enviarei a

    Esparta e à arenosa Pilos para saber do regresso do pai,

    colher informações, ilustrar seu nome entre os povos." 95

    Finda a fala, Atena calçou as sandálias: esplêndidas,

    áureas, fulgurantes. Estas a conduziam tanto na

    superfície úmida quanto no solo sem fronteiras, ao

    sopro do vento. Elegeu longa lança, de pontiagudo,

    penetrante ferro: compacto, denso, danoso mesmo 100

    a combatentes viris, a linhas de heróis hostis à filha do

    forte Pai. Desceu da cidadela olímpia em saltos de

    cabra. Deteve-se em Ítaca, na cidade, ante o solar de

    Odisseu, no vestíbulo da sala. Lança de bronze em

    punho, tinha o aspecto de um estrangeiro, um guerreiro 105

    táfio, Mentes. Estava na presença de arrogantes.

    Dados distraíam os pretendentes no pátio fronteiro,

    sentados em peles de bois que eles próprios tinham

    carneado. Arautos prestimosos os cercavam. Uns lhes

    preparavam deliciosas poções de água e vinho, outros 110

    arrumavam as mesas. Limpavam-nas com esponjas

    macias e as cobriam com porções variadas de carne.

    Telêmaco, de porte divino, percebeu-a primeiro. Ele

    movia-se de coração pesado. Trazia viva no peito

    a imagem do pai. Queria que regressasse para limpar 115

    o palácio dos indesejáveis, pretensiosa peste. O ausente

    ilustraria assim seu nome e reinaria sobre o que é

    seu. Isso lhe passava pela mente, rodeado de arrogantes,

    quando lhe apareceu Atena. O jovem dirigiu-se

    pronto ao vestíbulo, preocupado. Há quanto tempo 120

    o estranho esperava à porta? Aproximou-se, estendeu-

    -lhe a destra, recebeu a lança de bronze e, dirigindo-

    -se a ele, proferiu estas palavras aladas: "Bem-vindo,

    estrangeiro. Que te sintas bem! Antes de tudo, toma

    lugar à mesa. Mais tarde me dirás o que te traz." Falou 125

    e a conduziu. Palas Atena o seguiu. Já no interior da

    imponente mansão, Telêmaco levou a lança até uma

    coluna sólida, lugar cuidadosamente preparado para a

    guarda de instrumentos de guerra. Viam-se ali muitas

    armas do sofrido Odisseu. Indicou-lhe o assento. O 130

    pano que o revestia era uma esmerada obra de arte,

    linho com ricos ornamentos. Ofereceu-lhe uma

    banqueta para os pés. Dispôs a seu lado uma poltrona.

    Estavam separados dos outros para que a refeição do

    estrangeiro não fosse perturbada pela ruidosa algazarra 135

    do bando insolente. Além do mais, pretendia fazer-lhe

    perguntas sobre o pai ausente. De um luzente jarro

    de ouro, apoiado numa baixela de prata nas mãos

    de uma serviçal, a água escorria purificadora sobre

    as mãos do hóspede. Acomodados a uma mesa 140

    limpinha, uma governanta respeitável servia-lhes pão,

    além de variadas iguarias, liberalmente oferecidas.

    Um assador apresentou-lhes sobre uma prancha toda

    sorte de carnes. Os copos eram de ouro. Um arauto

    não se cansava de enchê-los de vinho. Entraram os 145

    inconvenientes. Acomodaram-se por ordem em

    poltronas e majestosos assentos. Arautos banhavam-

    -lhes as mãos. Escravas ofereciam-lhes pão de cestos

    repletos. De jarras jorrava fulgurante o vinho aos

    cálices. Os gananciosos estendiam as mãos às pranchas. 150

    Fartos de comida, repletos de bebida, revolviam

    outros prazeres no espírito: canto e dança para coroar

    a festa. Um arauto colocou uma cítara invulgar nas

    mãos de Fêmio, involuntário cantor dos pretendentes.

    Vibram as cordas, o narrador se põe a modular um 155

    canto comovente. Telêmaco dirigiu-se a Atena, de

    olhos abertos ao que sucedia. O jovem rogou-lhe

    que aproximasse a cabeça para não serem ouvidos:

    "Caro amigo, não te incomodes com o que vou

    dizer-te. Cítara e canto são a distração dessa gente. 160

    Irresponsáveis! Consomem sem escrúpulos os bens

    de outro, um homem cujos ossos descarnados talvez

    estejam sendo corroídos na intempérie, perdidos por

    aí, ou balouçam nas ondas do mar. Se o soubessem

    devolvido a Ítaca, todos prefeririam, suplicantes, pés 165

    velozes a ouro ou vestes vistosas. Agora, porém, como

    pereceu de má morte, nenhuma esperança nos resta nem

    quando algum forasteiro garante sua volta. Frustrado

    lhe foi o dia do regresso. Vamos! Declara sem rodeios:

    Quem és? Quem é teu povo? Onde fica tua cidade? 170

    Quem são teus pais? Em que navio vieste? Como foi

    que os nautas te trouxeram a Ítaca? Que nome os

    ilustra? Não me digas que vieste a pé. Não me fales

    com subterfúgios. Quero ter certeza. Vens aqui pela

    primeira vez ou já freqüentaste a casa de meu pai como 175

    amigo? As portas da nossa casa abriam-se a muitos,

    pois meu pai, indo e vindo, fez numerosas relações."

    Fulgurou mistério nos olhos de Atena, quando ela lhe

    respondeu: "Podes confiar no que vou dizer: Orgulho-

    -me de ser filho do experimentado Anquialo. Mentes 180

    é meu nome. Soberano sou dos táfios, destros remeiros.

    Aqui aportei com meus companheiros, singrando a face

    vinhácea do mar rumo a homens de estranhas línguas.

    Trago ferro luzidio para trocá-lo por bronze em Temesa.

    Minha nau está ancorada longe da cidade, nas pastagens 185

    ao sopé do arborizado Neio. Reitro chama-se o porto.

    Com muito orgulho te digo que nossa amizade vem de

    longe, do tempo de nossos antepassados. Pergunta

    ao venerável Laertes[6], um herói. Ao que sei, ele já não

    costuma vir à cidade. Prefere tratar seus males longe, 190

    no campo, em companhia de uma velha escrava,

    responsável por alimentação e bebida. Ela deverá

    socorrê-lo quando a canseira o puser de joelhos e for

    obrigado a se arrastar no solo coberto de vides.

    Decidi vir porque fui informado de que teu pai tinha 195

    regressado. Vejo, porém, que os deuses devem ter

    colocado obstáculos em seu caminho. Morto ele não

    está, o divino Odisseu não partiu deste mundo. Passa

    os dias em algum lugar do mar imenso, retido em ilha

    distante. Homens cruéis, selvagens, o prenderam, 200

    decerto. Não permitem que realize o que deseja. Ouve o

    que te digo. O que os deuses me segredam no coração

    há de cumprir-se, ainda que eu não seja vidente de

    aves nem conheça o sentido de seus vôos. Odisseu

    não tardará. Estará em breve em sua terra amada. 205

    Mesmo que gema algemado em cadeias de ferro,

    ele retornará. Saberá como libertar-se. Renomados são

    seus muitos ardis. Agora, fala-me com sinceridade.

    És de fato filho legítimo de Odisseu? Observando tua

    cabeça e o brilho dos teus olhos, a semelhança com ele 210

    é espantosa. Encontramo-nos com freqüência antes

    de ele partir para Tróia, destino de outros argivos[7], os

    melhores. Desde então não o vi mais, nem ele a mim."

    Cauteloso, respondeu-lhe Telêmaco: "Pois bem,

    terás resposta sincera, amigo. Pelo que sei da minha 215

    mãe, sou filho dele. Isso basta? Nunca saberemos

    quem de fato nos gerou. Gostaria de ser herdeiro

    de um cidadão bem-sucedido. Eu administraria seus

    bens até à velhice, Em vez disso, nasci do mais

    infeliz dos mortais, como é voz corrente. Respondi tua 220

    pergunta?" Observou-lhe a deusa, Atena Olhos-Vivos:

    "Os deuses não determinaram deixar sem nome

    esta casa, já que Penélope deu à luz um homem de tua

    fibra. Adiante! Continua a dizer-me o que sentes.

    Este festim... Este conglomerado... O que se passa? 225

    Bacanal? Casório? Um inocente encontro de amigos

    é que não é. Essa gente não conhece limites. Berram.

    A festança corre solta. Se entrasse um homem

    ajuizado e visse esta vergonheira toda, não ficaria

    horrorizado?" Modelar foi a resposta de Telêmaco: 230

    "Meu amigo, é uma boa pergunta. Queres saber? Esta

    casa teria tudo para ser próspera e decente, se aquele

    homem ainda estivesse conosco. Mas os deuses,

    mal-intencionados, têm outros planos. Sumiram

    com ele. Pergunta a quem quiseres. Ninguém sabe 235

    onde ele está. Se soubesse que jaz morto, eu não

    viveria nesta aflição. Tombou entre companheiros?

    Espirou nos braços de amigos, enovelada a guerra? A

    comunidade aquéia, os panaqueus poderiam erguer-lhe

    um monumento. Deixaria um nome honrado. As coisas 240

    estando como estão, é de admitir que tenha acabado

    nas garras do vento, das Harpias. Ninguém o viu,

    ninguém sabe dele. Deixou-me um legado de dores.

    Chorá-lo e gemer não é tudo. Os deuses amontoam

    outros cuidados sobre mim. Nobres das ilhas Delíquio, 245

    Sameres e Zacinto, de densas florestas e proprietários

    da pedregosa Ítaca, todos são candidatos à mão de

    minha mãe, devoram minha casa. Ela, entretanto, não

    repele o casamento imposto, nem se decide por ele.

    Enquanto isso, gente abjeta me aniquila. Devoram meus 250

    bens. Em breve, eu próprio serei dilacerado por eles."

    Atenada com os desmandos, palavreou Palas Atena:

    "Santos deuses! Não podes continuar assim, sem a

    presença de Odisseu. Que ele bote a mão nesses sem-

    -vergonha! Gostaria de ver a cara deles se ele entrasse 255

    agora pela porta da frente, de capacete, escudo e duas

    lanças, tal como eu o conheci outrora em nossa casa.

    Lembro que gostava de beber. Era homem alegre. Ele

    vinha de Éfira, da casa de Ilo, filho do mau Mermero.

    Tinha navegado para lá em nau veloz à procura de uma 260

    substância venenosa, mortífera, para untar o bronze

    das frechas. Mas Ilo não lhe forneceu o produto. Temia

    irritar os deuses que não morrem. Supriu-o, entretanto,

    meu pai. Grande era o afeto que lhe tinha. De estarrecer!

    Com um homem de tal estofo deveriam defrontar-se os 265

    pretendentes. Não viveriam muito. Provariam núpcias

    amargas. O retorno dele ao seu palácio para punir

    desmandos é medida que nos joelhos dos deuses aguarda

    decisão. Mas a ti compete tomar providências para

    limpar o palácio desta imundície. Agora, rogo, presta 270

    atenção ao que te digo. Pesa bem minhas palavras.

    Convoca amanhã os aqueus a uma assembléia para

    que deliberem, responsáveis aos deuses. Leva-os a

    decidir que o ajuntamento de pretendentes se dissolva.

    Que cada um retorne à sua propriedade, que tua mãe 275

    – se o coração a inclina ao casamento – retorne à casa

    ilustre de seu abastado pai. Poderão, então, tratar de

    núpcias. O pai dela receberá dádivas e cuidará de

    outras providências a que usualmente faz jus uma filha

    querida. Minhas recomendações, se é que te interessam, 280

    são estas. Equipa uma nau de vinte remeiros, dos

    melhores. Colhe informações sobre teu pai, por anos

    ausente. Falando com pessoas, poderás ouvir a voz

    de Zeus, que divulga longe feitos gloriosos.

    Deverás dirigir-te primeiro a Pilos e conversar com 285

    Nestor. De lá os caminhos te levarão a Esparta, ao

    palácio de Menelau, pois dos aqueus de brônzea

    couraça foi o primeiro a regressar. Se souberes que

    teu pai vive e que regressa, nada de precipitações.

    Aguarda outro ano. Se te informarem que ele está 290

    morto, retorna à tua terra amada, ergue-lhe um

    monumento, prepara-lhe homenagens fúnebres,

    abundantes, como as esperadas de uma mãe a seu

    esposo. Cumpridos estes ritos, deverás pensar com

    determinação na melhor maneira de acabar com os 295

    pretendentes. Truques? Morte espetacular? Não

    te comportes como criança. Já és adulto. Não

    ignoras, por certo, a glória que granjeou entre todos

    os povos o divino Orestes quando matou Egisto, o

    assassino de seu pai, o exterminador de um homem 300

    ilustre. Vejo-te belo, amigo, grande, robusto. Tens

    tudo para deixar um nome honrado. Devo retornar

    agora à minha nau. Meus companheiros devem

    estar impacientes com minha demora. Não relaxes

    teus negócios. Pensa bem no que eu te disse." Esta 305

    foi a ajuizada resposta de Telêmaco: "Caríssimo,

    noto afeto em tuas palavras amigas. Falas como

    se fosses meu pai. Jamais poderei esquecê-lo. Por

    que tanta pressa? Fica mais um pouco. Refresca-te.

    Distrai-te. Limpa a mente de cuidados. Quero que 310

    leves um presente à tua altura. Quero que partas

    alegre. Receberás uma lembrança que selará nossa

    amizade. Assim procedem pessoas que se querem."

    Respondeu-lhe Atena com ajuizados olhos de coruja:

    "Não me detenhas por mais tempo. Urge que eu parta. 315

    Mas o presente que teu coração amigo determina

    dar-me, este eu receberei e levarei para casa. Por

    rico que seja, terás retorno correspondente." Com

    estas palavras, retirou-se Atena Olhos-de-Coruja,

    veloz como a ave ao alçar vôo. Infundiu-lhe coragem 320

    e decisão. Telêmaco evocou o pai mais que antes. Sua

    imagem desenhou-se-lhe viva no espírito. Ficou

    pasmo, certo de que recebera a visita de um deus.

    Procurou os pretendentes, iluminado o rosto com

    brilho divino. Cantava-lhes o inigualável aedo. 325

    Eles escutavam em silêncio. Entoava o lutuoso

    regresso que Palas Atena concedera aos aqueus,

    finda a campanha de Tróia. No andar superior, a

    filha de Icário, a ponderada Penélope, seguia o

    canto inspirado. Desceu pela alta escadaria. Não 330

    vinha só. Acompanhavam-na servas prestativas.

    A Senhora apareceu divina aos pretendentes.

    Deteve-se na pilastra, trabalhada por mão de

    artista. Escondia as faces atrás de um rico véu,

    sempre ladeada por escravas fiéis. Dirigiu-se em 335

    lágrimas ao divino cantor: "Fêmio, deves saber

    muitos outros cantos envolventes sobre feitos

    de homens e de deuses, repertório de aedos.

    Elege outro episódio para animar teus ouvintes,

    afeitos à mistura de arte e vinho. Interrompe, rogo- 340

    -te, este canto triste. Ele me oprime o coração agora

    e sempre. O que evocas me faz padecer. Esse

    homem não me sai da lembrança. O renome dele

    se alarga pela Hélade, aprofunda raízes no centro

    de Argos. Interveio Telêmaco, sisudo: Por que 345

    impedes que o cantor nos alegre? Ele conhece

    sua arte. Queres cortar-lhe as asas da imaginação?

    Culpados não são os cantores, culpado é Zeus,

    é ele que determina a seu bel-prazer o destino de

    homens empreendedores. Não se repreenda, pois, 350

    o cantor, se ele narra a má sorte dos dânaos. Mais

    caloroso aplauso arranca o canto que versa os mais

    recentes assuntos. Disciplina o coração. Ilustra teu

    espírito. Dá-lhe ouvidos. Odisseu não foi o único a

    perder o dia do regresso. Muitos heróis pereceram. 355

    Recolhe-te, pois, a teus aposentos e cuida dos teus

    afazeres: o tear e a roca. Queres que tuas criadas

    te acompanhem? Retira-te com elas. Discurso é

    tarefa de homens, sobretudo minha. Quem manda

    nesta casa sou eu." Espantada, Penélope foi a 360

    seu quarto. Guardou no peito a palavra severa do

    filho. Subindo com as mulheres, derramou lágrimas

    por Odisseu, seu amado esposo, até que Atena, de

    olhos penetrantes, baixasse suas pálpebras pesadas

    em sono suave. Reacendeu-se a algazarra dos 365

    abusados na sala sombria. Cada um deles desejava

    tê-la no seu próprio leito. A palavra do iluminado

    Telêmaco soou ao ouvido de todos: "Pretendentes de

    minha mãe, homens de notória arrogância, desejo a

    todos bom apetite. Cessem os gritos! É com prazer 370

    que se presta atenção a um cantor como este, de

    voz celeste. Amanhã estaremos reunidos na ágora.

    Todos! Eu vos falarei sem reservas. Pedirei que vos

    retireis desta casa. Procurai outras mesas. Consumi

    vossos próprios bens, ora na casa de um, ora na casa 375

    de outro. Parece-vos mais vantajoso consumir, sem

    indenizar, bens de um único homem? Por que não

    me tirais o couro? Apelarei aos deuses eternos.

    Espero que Zeus, enfim, vos dê a paga merecida.

    Garanto que permanecer não vos será lucrativo." 380

    Foram estas as palavras. Estáticos, mordiam

    os lábios. Telêmaco os surpreendera. Com quanta

    coragem falara! Tomou a palavra Antínoo, filho de

    Eupites: "Telêmaco, foram os deuses teus mestres

    para falares com tanta eloqüência? Que coragem! 385

    Mas não penses que te constituirão rei de Ítaca,

    ainda que tragas nas veias o sangue de teu pai."

    Medindo as palavras, respondeu-lhe Telêmaco:

    "Direi o que penso ainda que isso te irrite. Se for

    vontade de Zeus que eu seja rei, não posso afirmar 390

    que isso me desagrade. Fala franco, pensas que

    reinar seja um mal que se deva temer? Mandar

    é mau? À medida que o rei enriquece, cresce

    a veneração. Ora, príncipes, jovens ou velhos,

    não faltam nesta ilha. Já que Odisseu está morto, 395

    não é impossível que um deles arrebate a coroa.

    Declaro-me, porém, senhor de minha casa

    e de meus escravos, herança de Odisseu."

    A resposta veio de Eurímaco, filho de Pólibo:

    "Ora, Telêmaco, quem há de ser rei nesta ilha 400

    depende de uma decisão do conselho dos deuses,

    que ainda não foi tomada. O domínio sobre

    tua casa te está assegurado. Não temas violência.

    Enquanto houver homens em Ítaca, ninguém virá

    arrancar de tua mão o que é teu. Pergunto-te, 405

    porém, sobre o estrangeiro. Donde veio ele? Que

    terra diz ele ser a sua? A que família pertence?

    Onde ficam suas terras? Trouxe ele notícia de

    teu pai ausente, ou veio tratar de negócios seus?

    Levantou-se e partiu de repente. Não quis 410

    conhecer-nos? Aspecto de vilão ele não tinha."

    Respondeu-lhe Telêmaco, ponderado: "Eurímaco,

    o regresso de meu pai está definitivamente fora de

    questão. Perdi a confiança em notícias, venham

    donde vierem. A vidência não me atrai. Os videntes, 415

    se vêm, tratam com minha mãe. Quem nos visitou

    foi um amigo de meu pai. Veio de Tafo. Chama-se

    Mentes, é filho de um nobre, Anquíolo. Governa

    marinheiros hábeis, os táfios." Assim falou o filho

    de Odisseu. Que reconhecera a deusa era segredo 420 de sete chaves. Os insolentes resolveram girar na

    alegria da dança ao embalo do canto. Bailaram até

    anoitecer. O manto da noite os envolveu em festa.

    Só então cada qual procurou repousar em casa.

    Telêmaco dirigiu-se ao seu quarto. Era esplêndido. 425

    Elevava-se no pátio com vista para todos os lados.

    Recolheu-se agitado ao leito. Muitas eram as

    preocupações. Precedia-o de tocha acesa a dedicada

    Euricléia, sempre atenciosa, filha de Opo, filho de

    Pisenor. Laertes a tinha adquirido com seus próprios 430

    recursos, ainda adolescente, ao preço de vinte bois.

    Cercou-a com atenções no palácio como o fazia com

    a honrada esposa. Mas nunca freqüentou o leito dela

    para evitar a ira de sua mulher. Justamente essa

    iluminava os passos de Telêmaco. Ela o estimava mais 435

    que as outras escravas. Cuidava dele desde pequeno.

    Abriu-lhe a porta da câmara, muito bem construída.

    Sentado no leito, ele despiu a túnica leve e a depositou

    nas mãos da dedicada anciã. Esta dobrou com cuidado

    a veste e a dependurou no cravo junto à cama cinzelada. 440

    Saiu do quarto, puxando a porta pela argola de prata.

    Com a mão na correia acionou o ferrolho. Telêmaco

    passou a noite envolto num manto de lã. Não lhe

    saía da cabeça a viagem que lhe recomendara Atena.

    [1]. São inúmeras as referências na Odisseia à história de Agamênon, figura central da trágica história familiar que só perde em celebridade à da família de Édipo. Agamênon, assim como Menelau, é filho de Atreu (daí a denominação Átrida, ou seja, filho de Atreu), rei de Argos. Atreu foi assassinado por Egisto, seu sobrinho e enteado (numa sucessão de ações que remontam a quando Atreu e seu irmão, Tiestes – pai natural de Egisto – assassinaram Crísipo, meio-irmão dos dois e filho ilegítimo de seu pai, Pélope, com a ninfa Axioque). Menelau e Agamênon fogem então para Esparta, onde o rei, Tíndaro, fornece-lhes um exército e possibilita que voltem para casa e expulsem os usurpadores do trono do seu pai. Agamênon torna-se então rei de Argos e casa-se com Clitemnestra, filha de Tíndaro, após matar o primeiro marido desta, Tântalo, e os filhos deles. Posteriormente, Agamênon é nomeado comandante supremo do exército grego enviado à Tróia para resgatar Helena; ele se jacta de ter abatido um cervo com uma flecha mais certeira que as da deusa caçadora, Ártemis; esta se enfurece e, para deixar prosseguir a expedição dos gregos, exige que Agamênon lhe sacrifique sua filha Ifigênia. Ele se vê obrigado a obedecer, granjeando a ira da própria esposa, Clitemnestra. Anos depois, ao final da guerra, Agamênon toma, como parte de seu butim, Cassandra, filha do rei Príamo, de Tróia, que lhe faz as mais funestas previsões sobre seu futuro. Ao chegar em casa, Egisto, seu primo, em conluio com a rainha Clitemnestra, de quem se tornou amante, assassina Agamênon. As peças de Ésquilo que compõem a Orestéia contam essa tragédia e também a glória de Orestes, filho de Agamênon e Clitemnestra, que não descansa até vingar o pai, matando a própria mãe e Egisto. (N.E.)

    [2]. Personificação do destino. Filho da deusa Nix (as trevas superiores, ou noite) e irmão de Tánatos (a morte). Figura sombria, porque consciente do destino que cabe aos outros.(N.E.)

    [3]. Átrida: patrônimo. Literalmente, filho de Atreu. Aqui, usado na acepção de descendente de.(N.E.)

    [4]. Cronida: patrônimo de Zeus; filho de Cronos.(N.E.)

    [5]. Um dos quatro ramos daquilo que, posteriormente, os romanos vieram a chamar de povo grego. (N.E.)

    [6]. Pai de Odisseu. (N.E.)

    [7]. Aquele que provém de Argos. (N.E.)

    Canto 2

    Ao despertar a alvorecente Aurora Róseos-Dedos,

    saltou da cama o robusto filho de Odisseu. Vestido,

    ajustou a afiada espada nas costas e firmou as vistosas

    sandálias na planta sensível dos pés. Esplendor

    divino iluminava-lhe o corpo. Deixou o quarto. Por 05

    determinação sua, a voz dos arautos chamou aos

    brados os aqueus para a assembléia. Mal soou a

    ordem, congregaram-se os homens de longos cabelos.

    Comprimidos em reunião compacta, compareceu

    Telêmaco, de lança em punho. Não foi só. Trouxe dois 10

    cães velozes. Entrou revestido da graça auspiciosa

    de Atena. Seu andar decidido atraiu a atenção de todos.

    Ocupou o assento do pai. Os anciãos cederam-lhe

    o lugar. Egípcio, herói já curvado pelos anos, abriu a

    sessão. Sabia mil coisas. O filho, o lanceiro Antifo, 15

    que ele queria muito, acompanhara o divino Odisseu

    à Ílion dos belos corcéis. Antifo partira na frota das

    naus bojudas. Foi abatido pelo ciclope na caverna

    tétrica. O carnívoro o reservara como última iguaria

    do sinistro banquete. Tinha outros três filhos: Eurínomo 20

    se juntara aos pretendentes, os outros dois cuidavam

    dos seus bens. O desaparecido, lembrado em soluços

    e pranto, nunca lhe saiu da mente. Uma lágrima

    lhe descia pela face quando se dirigiu à assembléia:

    "Itacenses, atenção ao que tenho a dizer. Nunca houve 25

    assembléia nem sessão desde a partida de Odisseu

    e suas côncavas naus. Gostaríamos de saber quem nos

    convocou, motivo. Foi um jovem ou um cidadão

    avançado em anos? Alguém soube da aproximação

    duma armada, uma informação recente que queira 30

    transmitir-nos? Ou trata-se de um assunto interno que

    exija deliberação? Suponho que a convocação venha

    de homem responsável, preocupado com nosso bem.

    Zeus conceda que chegue a bom termo o que o aflige."

    Falou. Ao filho de Odisseu agradou o discurso. Sem 35

    tardar, levantou-se e pediu a palavra; de pé, no centro

    da assembléia. O arauto Pisenor, versado em sábios

    conselhos, passou-lhe o cetro. Preso às palavras

    do ancião que o precedera, Telêmaco se pôs a falar:

    "Venerando, não está longe o homem, como verás 40

    agora mesmo, que reuniu o povo. Sofrimento algum

    se compara ao meu. Nada sei de um ataque militar,

    rumores de que eu tivesse as primeiras informações.

    Nenhum assunto público levou-me a convocar-vos.

    Agi movido por interesses privados, dificuldades que 45

    molestam duplamente minha casa. Meu nobre pai, o

    antigo rei desta terra, que vos governou com afeto

    paternal, está perdido. Cai sobre mim mal ainda maior

    que arrasará em breve todos os meus bens, consumirá

    todos os meus recursos. Pretendentes assediam minha 50

    mãe. Não respeitam sua recusa. Filhos de cidadãos

    destacados da nobreza local! O só indício de que ela

    poderia retornar à casa paterna os faz tremer. Icário

    poderia tratar do casamento da filha, dá-la de livre

    vontade a alguém de sua preferência. Invadem, em 55

    vez disso, diariamente nossa propriedade. Abatem

    bois, ovelhas e cabras pingues. Banqueteiam-se,

    deliciam-se desaforadamente com o brilho do meu

    vinho. Consomem tudo. Falta faz um homem como

    Odisseu para livrar-nos desta praga. Não somos 60

    bastante fortes para removê-los. Seremos sempre

    uns pobres coitados que não sabem usar a força. Eu

    os repeliria se tivesse energia para tanto. Desaforos?

    Não os suporto mais. São indecentes. Abalaram

    minha casa. Conto com vosso repúdio. Que dirão 65

    pessoas das cercanias, vizinhos nossos? Temei aos

    deuses. Irados, poderão punir atos vis. Invoco Zeus

    Olímpio e Têmis, que dissolve e preside assembléias.

    Não quero inquietar-vos, amigos. Deixai-me só

    com meus tormentos. Admitamos que Odisseu, 70

    meu nobre pai, tenha tratado mal gente de

    vistosas grevas, aqueus. Lembrados disso, pagais

    mal com mal. Incitais vossos filhos. Se vós vos

    limitásseis a atacar meus bens, meus rebanhos, isso

    não seria o pior. Se devorásseis tudo, poderia, quem 75

    sabe, haver indenização. Eu poderia humilhar-me,

    percorrer a cidade como pedinte, mendigar

    dinheiro até que o perdido me fosse restituído.

    Preferis, no entanto, investir contra o coração.

    Para esse mal não há cura." Disse. Furioso, 80

    atirou o cetro ao chão. Prorrompeu em pranto.

    Comoveu a assembléia. Todos se mantiveram

    em silêncio. Ninguém ousou contestar as graves

    palavras do filho de Odisseu. Só Antínoo revidou:

    "Telêmaco, enredador, insuportável! O que ouço? 85

    Queres ridicularizar-nos? Sujar-nos? A culpa

    não é dos pretendentes, não é dos cidadãos,

    culpada é tua mãe, versadíssima em astúcias.

    Já estamos no terceiro ano, logo virá o quarto. Esta

    mulher tortura corações. Lá no fundo! Enche-nos 90

    de esperança, promete, manda mensagens. Seu

    pensamento, no entanto, anda em outro lugar.

    Vejam os truques da torturadora. Tramou instalar

    nos seus aposentos um tear, um primor, enorme.

    Disse em seguida: ‘Meus queridos pretendentes, 95

    Odisseu morreu. Quanto ao casamento, nada

    de atropelos. Fiquem tranqüilos. Preciso terminar

    um manto antes que os fios se corrompam. Trata-se

    de uma mortalha para Laertes, um herói. A Moira

    implacável o levará em breve nos braços da 100

    morte dolorosa. Não quero que me recriminem

    em público. Poderiam dizer: jaz sem mortalha um

    homem rico.’ Foi o que alegou. Abateu nossos

    corações viris. Passava os dias atarefada. Mas à

    noite, à luz de tochas, desfiava o tecido. Trapaça 105

    de três anos! Enganou-nos, ludibriou todos. No

    começo do quarto ano, volvidas as estações, uma

    criada (bem informada!) a denunciou. Investigamos.

    Denúncia correta! O pano? Ela o desfiava. Embora

    contrariada, foi forçada a terminar o trabalho. Aqui 110

    vai a proposta dos pretendentes. Guarda-a bem

    na lembrança. É um esclarecimento a

    Está gostando da amostra?
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