Pesquisa Narrativa: Interfaces entre histórias de vida, arte e educação
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Pesquisa Narrativa - Raimundo Martins
Raimundo Martins
Irene Tourinho
Elizeu Clementino de Souza
(organizadores)
PESQUISA
NARRATIVA
Interfaces entre histórias de vida,
arte e educação
Editora UFSM
Santa Maria - 2017
SUMÁRIO
Prefácio
PESQUISA NARRATIVA: OUTRAS FORMAS DE CONHECER
Daniel Hugo Suárez
Apresentação
ENTRELAÇAMENTOS ENTRE HISTÓRIAS DE VIDA, ARTE E EDUCAÇÃO
Elizeu Clementino de Souza, Raimundo Martins e Irene Tourinho
EIXO I
PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA PESQUISA NARRATIVA
Capítulo I
A ASCENSÃO DA NARRATIVA DE VIDA
Ivor Goodson
Capítulo II
MINHA TRAJETÓRIA PELA PERSPECTIVA NARRATIVA DA PESQUISA EM EDUCAÇÃO
Fernando Hernández
Capítulo III
NARRAR A VIDA: DELIBERAÇÕES NO CAMPO BIOGRÁFICO
José Antonio Serrano Castañeda e Juan Mario Ramos Morales
Capítulo IV
NARRATIVAS INSTITUCIONAIS DE SI: A ARTE DE ENLAÇAR REFLEXÃO, RAZÃO E EMOÇÕES
Maria da Conceição Passeggi
Capítulo V
FOTOBIOGRAFIA E ENTREVISTA NARRATIVA: MODOS DE NARRAR A VIDA E A CULTURA ESCOLAR
Elizeu Clementino de Souza e Mariana Martins de Meireles
Capítulo VI
(DES)ARQUIVAR NARRATIVAS PARA CONSTRUIR HISTÓRIAS DE VIDA OUVINDO O CHÃO DA EXPERIÊNCIA
Raimundo Martins e Irene Tourinho
Apêndice do Eixo I
CONVERSAS INICIAIS SOBRE PESQUISA NARRATIVA: ALGUMAS PISTAS INTRODUTÓRIAS
EIXO II
A VIDA COMO MANIFESTAÇÃO DE ARTE: NARRATIVAS E EDUCAÇÃO
Capítulo VII
A CRIAÇÃO COMPARTILHADA: UMA BIOGRAFIZAÇÃO COLETIVA
Christine Delory-Momberger
Capítulo VIII
OLHAR E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA ESCRITA DE SI
Rosa María Torres Hernández
Capítulo IX
CIDADE-FLORESTA NA ARTE DA MEMÓRIA MARAJOARA: VISUALIDADE E ORALIDADE EM MARIA NECY BALIEIRO
Agenor Sarraf Pacheco, Analaura Corradi e Maria Necy Pereira Balieiro
Capítulo X
AGORA QUE CHEGAMOS ATÉ AQUI: PROFESSORES, NARRATIVAS E IMAGENS VISUAIS
Fernando Miranda
Capítulo XI
PESQUISA E COMPARTILHAMENTOS ENTRE NARRATIVAS FÍLMICAS E EXPERIÊNCIA EDUCATIVA
Vivien Kelling Cardonetti e Marilda Oliveira de Oliveira
Capítulo XII
DA ARTE E DA NARRAÇÃO À SENSÍVEL TEXTURA DE NÓS
Apolline Torregrosa
Capítulo XIII
OLHANDO PELO ESPELHO RETROVISOR: NARRATIVAS DE FORMAÇÃO E ATUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
Luiz Carlos Pinheiro Ferreira
Capítulo XIV
O TEATRO COMO PROCESSO DE FORMAÇÃO
Montserrat González Parera
Apêndice do Eixo II
INTERFACES ENTRE ARTE, NARRATIVA E EDUCAÇÃO: ALGUMAS PISTAS DE LEITURAS
SOBRE OS AUTORES
CRÉDITOS
Prefácio
PESQUISA NARRATIVA: OUTRAS FORMAS DE CONHECER
A emergência e a difusão progressiva da pesquisa narrativa no domínio das ciências sociais e humanas estão enfocando, há algum tempo, uma série de tensões, debates e deslocamentos epistemológicos, metodológicos e teóricos que tendem a reconfigurar as estratégias e práticas de produção de conhecimentos em uma variada gama de disciplinas e campos do saber. As histórias de vida, os relatos de si, as (auto)biografias, as narrativas de formação, as memórias, os testemunhos, os diários, sempre estiveram presentes nos dispositivos de pesquisa como fontes primárias legítimas da indagação e até mesmo como recurso discursivo válido para contabilizar os resultados de conhecimento.
No entanto, o uso precoce e generalizado da narrativa na pesquisa histórica, sociológica e etnográfica, na pesquisa psicológica e psicossocial, na pesquisa estética e artística, na pesquisa pedagógica e didática, na pesquisa social qualitativa em geral, não considerou, inicialmente, a configuração de um conjunto relativamente articulado e estável de critérios metodológicos, epistemológicos e teóricos que definissem um tipo específico de investigação. Uma maneira de pensar e de fazer pesquisa social que reivindica suas próprias regras de legitimidade e valor, que redefine as operações básicas de observação, escuta, descrição, compreensão, explicação e interpretação, e que ajuda a moldar uma comunidade científica em particular. As redes e associações de pesquisadores ‘narrativos’, os congressos e as publicações que incorporam em seus títulos, índices ou agendas de ‘pesquisa narrativa’, os projetos de investigação e as teses que se inscrevem explicitamente nessa tradição e formulam perguntas e hipóteses a partir de uma perspectiva narrativa, embora muito potentes e visíveis hoje em dia, são relativamente recentes.
A chamada ‘virada linguística’, que trouxe para o centro da cena a linguagem como veículo e metáfora da compreensão social, e o movimento intelectual do ‘retorno do sujeito’, que repensou as relações de conhecimento como relações entre sujeitos, experiências, vozes e interpretações, contribuíram para essa expansão e consolidação. Mais recentemente, a ‘virada narrativa’ vem assinalando essa mudança nas formas de delimitar, classificar e organizar técnica e socialmente a produção de conhecimentos sentipensantes e relevantes sobre a vida social, cultural, educativa, estética, emocional e passional dos sujeitos e os sentidos e significados que estes constroem e reconstroem enquanto as experimentam e narram. Além disso, a expansão e o alargamento do ‘espaço biográfico’ em direção a esse território têm convergido e cruzado com os estudos narrativos, gerando novas ou outras articulações, zonas de contato, cartografias e trajetórias de pesquisa. De fato, no campo de língua espanhola dessa tradição, denominamos esse entrelaçamento de perspectivas teóricas e metodológicas de ‘pesquisa biográfico-narrativa’.
Existem algumas características que ajudam a definir a pesquisa narrativa, ou biográfico-narrativa, que acho oportuno mencionar neste prefácio, considerando a obra polifônica que espera nossa leitura. Uma das características que a distingue é seu ‘pluralismo metodológico’, isto é, a rejeição de qualquer reivindicação de um método universal e excludente de produção de conhecimentos, e o reconhecimento de uma multiplicidade de formas de construir saber e compreensões científicas. Portanto, pode-se identificar no campo da pesquisa biográfico-narrativa uma variedade importante de estratégias metodológicas e um uso criativo e heterodoxo dos recursos de investigação. Apesar dessa dispersão, uma questão que une e articula a diversidade é a pergunta sobre como estão sendo vividas, percebidas e interpretadas as experiências de vida nos entornos culturais contemporâneos por aqueles que as vivem, fazem e recriam.
O ressurgimento do sujeito, da experiência e do significado como eixos da produção de sentido sobre a vida social, cultural, estética, pedagógica etc., fazem os itinerários subjetivos e coletivos deslocarem-se em direção ao centro da consideração e problematização dos estudos. Também fazem com que os vínculos de saber e poder com os habitantes e falantes do mundo da vida sejam reformulados, se tornem colaborativos, se horizontalizem, e que se perfilem diversos níveis de interlocução, retroalimentação e coparticipação. A revalorização das ‘dimensões antropológicas’ da narração e das disposições humanas de narrar e narrar-se, de contar histórias da própria vida, de reinterpretá-la e reinterpretar-se como um texto aberto, polissêmico e plural, deslocam os argumentos epistemológicos que enfatizam as ‘relações sujeito-objeto’ e que congelam as múltiplas temporalidades e geografias da experiência humana às categorias inertes da racionalidade científica ortodoxa.
Justamente por isso, outra das potencialidades da pesquisa narrativa e (auto)biográfica é que nos ajuda a identificar, documentar, tornar visíveis e publicamente disponíveis a diversidade de significados humanos para dar conta do vivido, do experimentado e do representado, e a multiplicidade de projetos de vida decorrentes deles como traços de horizontes de futuro. Novas e outras posições de enunciação, práticas discursivas e discursos sobre a própria vida, a experiência vivida, o lugar habitado e o tempo transitado na cultura contemporânea começam a disputar seu lugar na conversação pública como enunciações legítimas, agora visíveis, legíveis e que se podem escutar. Essa inscrição dos discursos de experiência e de vida no debate público e especializado que promovem as pesquisas narrativas habilitam a esperança de políticas de subjetividade, conhecimento e vida cotidiana alternativas e o desdobramento da imaginação do pensamento social e cultural.
O conjunto de trabalhos compilados neste livro pode ser identificado com essa vitalidade da pesquisa narrativa. Mostram, através de diferentes caminhos, explorações e ensaios metodológicos, as trajetórias, os itinerários e as experiências artísticas e educativas configuradas e reconfiguradas em narrativas que constituem as vidas dos sujeitos, suas relações com a arte e a educação, e a maneira particular que têm de percebê-las, compreendê-las e interpretá-las. Diversas temporalidades, diferentes territorialidades, novos significados e histórias de vida outras são habilitados por esses textos que falam de outros textos, de outras imagens e de outros movimentos. Dão conta do impacto afetivo, emocional, ético e estético das vivências cotidianas nos mundos da vida, das artes e da educação, mostram suas interfaces, suas zonas de contato, seus deslizamentos, suas articulações, seus espaços e tempos vazios. A publicação deste livro no contexto narrativo brasileiro e latino-americano permite que pesquisadores narrativos do Sul e do Norte, uma rede de autores brasileiros, mexicanos, uruguaios, franceses, espanhóis, ingleses, entabulem uma conversa produtiva, criativa, amistosa, aberta, e ratifiquem a oportunidade para explorar, mapear, aprofundar e propor formas de compreender como vida, arte e educação traçam e redesenham nossas maneiras de conceber, pensar, atuar e sentir no mundo contemporâneo.
Daniel Hugo Suárez
Buenos Aires, outubro de 2015.
Apresentação
ENTRELAÇAMENTOS ENTRE HISTÓRIAS DE VIDA, ARTE E EDUCAÇÃO
O livro Pesquisa Narrativa: interfaces entre histórias de vida, arte e educação reúne textos que exploram as narrativas como possibilidades teórico-metodológicas e espaços de pesquisa, com ênfase em ‘acontecimentos’ pedagógicos construídos cotidianamente no espaço escolar e/ou de criação artística. A necessidade de examinar conceitos, práticas e processos que envolvam as narrativas de diferentes perspectivas e mais especificamente os modos como elas constituem a vida dos sujeitos, suas relações com a arte e a educação, orienta esta proposta de compartilhar investigações e reflexões acerca do tema.
Narrativas são construídas na experiência como atos de formação e transformação de episódios que, elaborados, produzem diversas temporalidades, novas significações e outras histórias de vida. Investindo na capacidade humana de olhar a arte e a educação de forma sensível e crítica, esta publicação prioriza encontros, aprendizagens e partilhas interpretados a partir do impacto afetivo e relacional de vivências cotidianas, que, por suas relações com as disposições humanas para narrar, transformam-se em fontes privilegiadas para a pesquisa narrativa e para o estudo das interfaces entre histórias de vida, arte e educação.
As narrativas podem denunciar, compartilhar e/ou mudar modos de produção cultural e social, pois, ao desvelar momentos, imagens e visualidades de suas trajetórias, os indivíduos reorganizam a própria história criando laços de significado e coerência para eventos e acontecimentos marcantes ou, ainda, para aqueles que permanecem encobertos justamente porque não foram visitados com um olhar escrutinador e sensível. Histórias de vida, arte e educação formam um tríptico no qual encontramos imagens de convergência, algumas apontando em direção comum e outras expandindo e abrindo para pontos que podem ser constantemente interrogados, transformados, rearranjados.
Questões epistemológicas e políticas que alcançam um amplo espectro de formas e perspectivas da pesquisa social alimentam a construção das histórias de vida. Fenômenos que impactam ações, expectativas e desejos de indivíduos e grupos, constituindo e dando sentido a sua existência social são investigados através de abordagens e práticas metodológicas de observação, escuta, descrição, interpretação e compreensão desses fenômenos, suas circunstâncias e contextos. Estudos sobre a subjetividade dos indivíduos, sobre novos tipos de individualidade e convivência, e sobre a diversidade de significados humanos têm contribuído para o desenvolvimento de ‘análises narrativas’ que cartografam experiências de vida em entornos culturais contemporâneos. Além de informar sobre as rápidas mudanças sociais que nos afrontam, a pesquisa narrativa nos ajuda a compreender como essas experiências estão sendo vividas, percebidas e interpretadas em diferentes contextos de socialização, de pequenos e grandes grupos, de comunidades e instituições.
A arte, instituindo pontes entre vida e educação, fornece às histórias de vida condições de possibilidade para que sensações, sonhos, emoções, situações de se colocar em lugar de ‘outros’ possam se entrelaçar a episódios simultaneamente reflexivos, projetivos, imaginativos. Incorporando a arte como parceira da vida e da educação, as narrativas contam de cada um, ao mesmo tempo que acolhem objetos, artefatos, visualidades, lembranças e projetos vividos – ou por viver –, costurando-os como retalhos e pedaços de experiências que nos afetam e pelos quais somos afetados.
Como pegadas simbólicas, experiências e afetos vividos e sentidos criam espaços para interpretar aspectos de itinerários subjetivos e coletivos que, via reflexão sensível (ou sensibilidade reflexiva), podem ser transformados em aprendizagem. Esta é a intenção a ser reforçada neste livro: explorar, aprofundar e propor formas de compreender como vida, arte e educação traçam, desmancham e redesenham nossos jeitos de conceber, pensar, agir e sentir enquanto fazemos (nossas) histórias.
O presente livro organiza-se a partir de dois eixos temáticos, os quais verticalizam questões epistemológicas sobre pesquisa narrativa nos campos educacional e das artes, bem como práticas criativas diversas que tomam diferentes linguagem artísticas, através de imagens, narrativas, biografias e autobiografias, como férteis para a compreensão dos diversos modos como os sujeitos narram a vida e suas dimensões existenciais.
O primeiro eixo ‘Perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa narrativa’ centra-se na discussão de aspectos epistemológicos da pesquisa narrativa, em interface com as autobiografias e com os diferentes dispositivos utilizados tanto no campo educacional quanto no campo das artes, com ênfase em projetos de pesquisas e práticas de formação desenvolvidos e coordenados pelos autores, a partir da aprendizagem narrativa, das entrevistas, dos memoriais e fotobiografias.
O segundo eixo, ‘A vida como manifestação de arte: narrativas e educação’, sistematiza questões relacionadas entre vida, experiências, criação e arte, utilizando diferentes linguagens vinculadas a processos de criação e formação, através de biografias partilhadas e coletivas, reflexões sobre experiências estéticas, narrativas fílmicas, imagens visuais, formação e artes visuais, bem como discussões sobre o teatro e os processos de formação.
O primeiro eixo, ‘Perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa narrativa’, organiza-se a partir de seis textos, com diálogos cruzados entre esses, ao tomarem a narrativa como campo de pesquisa e formação. Abre o primeiro eixo o texto ‘A ascensão da narrativa de vida’, de Ivor Goodson, pioneiro dos estudos sobre pesquisa narrativa e currículo, ao teorizar e confrontar discussões sobre a ‘era da narrativa’, chamando a atenção para a superação de metanarrativas, ou como nomeia o autor, ‘narrativas grandiosas’, em contraposição e defesa de narrativas de vida e narrativas de pequena escala. O texto também sistematiza experiência de um projeto de pesquisa ‘Learning Lives’ (‘Vidas de Aprendizagem’), desenvolvido e financiado pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social da Grã-Bretanha, ao centrar-se nas histórias de vida e aprendizagem informal dos adultos, bem como sobre processos de individuação, roteirização e descontextualização das aprendizagens construídas ao longo da vida pelos sujeitos individual e coletivamente. Do mesmo, questões teóricas sobre pesquisa narrativa, capital narrativo e aprendizagem narrativa são evidenciadas ao longo do texto, numa articulação político-formativa centrada nas narrativas de aprendizagens.
O texto intitulado ‘Minha trajetória pela perspectiva narrativa da pesquisa em educação’, de Fernando Hernández, toma como referência outras produções do autor sobre pesquisa narrativa e suas implicações teórico-metodológicas entre educação e artes, especialmente no que se refere às apropriações entre os dois campos do conhecimento e suas relações com as narrativas, evidenciando suas experiências e trajetória com a pesquisa narrativa e com os processos de investigação desenvolvidos. Para tanto, aprofunda no texto quatro questões centrais de análises, as quais implicam-se com a perspectiva narrativa, iniciando com discussões epistemológicas sobre narrativa, verdade, ficção e indagação narrativa, avança com teorizações sobre o lugar posicional ocupado pelo pesquisador no trabalho com o relato e a narrativa, defende a posição de reflexividade biográfica nos domínios da pesquisa-formação e, por fim, chama a atenção para modos próprios de fazermos pesquisa com narrativas, partindo de outra lógica de construção de conhecimento e de ciência na contemporaneidade, face aos lugares e espaços da narrativa, como uma das formas de contar sobre a vida social.
O trabalho de José Antonio Serrano Castañeda e Juan Mario Ramos Morales, intitulado ‘Narrar a vida: deliberações no campo biográfico’, tematiza sobre os ritos cotidianos e suas relações com os ritos identitários relacionados às cartografias biográficas. O aprofundamento dos ritos biográficos, em contextos e práticas de formação empreendidos pelos autores, é materializado através das experiências desenvolvidas no México com entrevistas narrativas, face aos sentidos e ao devir biográfico dos sujeitos quando narram e partilham rituais e experiências narrativas sobre a vida, a formação em perspectiva individual e coletiva.
Ao situar e descrever sobre ‘Narrativas institucionais de si: a arte de enlaçar reflexão, razão e emoções’, Maria da Conceição Passeggi sistematiza experiências com o memorial autobiográfico, tipologia conceituada pela autora como memorial acadêmico ou memorial de formação, face às reflexões construídas sobre sua complexidade, a injunção institucional e o conhecimento de e sobre si possibilitados pelas escritas dos memoriais, ao defender a dimensão poética em confronto com a escrita institucionalizada e objetivista. Ao analisar memoriais de quatro mulheres, já publicados em obra organizada pela autora, desvela-se uma perspectiva poética dos memoriais acadêmicos, ao revelar matizes e confrontos do sujeito biográfico institucional com narrativas e reflexividade biográficas do sujeito da experiência em interfaces com análises poéticas, transgressoras, ao religar disposições epistemológicas entre razão, reflexão e emoção, face ao conhecimento de si provocados pelos textos narrativos dos memoriais.
As discussões sobre fotobiografia e entrevista narrativa são tematizadas por Elizeu Clementino de Souza e Mariana Martins de Meireles no texto ‘Fotobiografia e entrevista narrativa: modos de narrar a vida e a cultura escolar’, configurando-as como dispositivos e fontes de estudo, objetivando analisar aspectos (i)materiais da cultura e da memória de escolas rurais do sertão baiano, numa articulação dialética entre o físico e o simbólico implicada nas narrativas biográficas e nas imagens fotográficas das escolas rurais. Ao analisar potências e fertilidades da entrevista narrativa e da fotobiografia como uma perspectiva teórico-metodológica, o texto busca contribuir para a superação da invisibilidade das escolas rurais como lugares de memórias, histórias e materialidade de uma cultura inscrita nos territórios onde estão situadas, ao destacar a materialidade dos objetos escolares, das narrativas biográficas e fotográficas.
Encerra esse eixo o texto de Raimundo Martins e Irene Tourinho, ‘(Des)arquivar narrativas para construir histórias de vida ouvindo o chão da experiência’, ao tomarem como perspectiva de análise aspectos teóricos relacionados à pesquisa narrativa e a questões vinculadas aos estudos entre histórias de vida, arte e educação. Ao utilizar arquivo materializados em imagens da nova Biblioteca de Alexandria, Egito, referência de conhecimento no mundo antigo, o texto abre pistas para leituras diversas entre as imagens e os arquivos ‘guardados’ tanto nas bibliotecas quanto nas histórias de vida, como potentes para leituras das escritas de si, de questões teóricas e epistemológicas sobre pesquisa narrativa e também singularidades das histórias de vida nas interfaces entre arte, vida e educação.
O segundo eixo temático do livro, ‘A vida como manifestação de arte: narrativas e educação’, aprofunda e sistematiza aspectos concernentes aos processos criativos, suas relações com a experiência artística, através do diálogo com diferentes linguagens. Inicia esse eixo o texto de Christine Delory-Momberger, ‘A criação compartilhada: uma biografização coletiva’, ao dialogar sobre partilha e produção coletiva, mediada pelo trabalho de biografização que possibilita compartilhamento de processos criativos e experienciais da arte. A ideia central do texto consiste na discussão de autoria, linguagem, poder criativo e arte, como implicados nas histórias de vida e biografias dos sujeitos, quando em diálogos compartilhado e coletivo criam atos políticos de construções e fruições artísticas da vida e da própria arte.
O texto de Rosa María Torres Hernández, ‘Olhar e experiência estética na escrita de si’, centra-se na análise de escrita autobiográfica de professores em relação com as imagens, através da identidade narrativa como processo de criação mediado pelas escritas de si. As potências de virada narrativa e virada icônica possibilitam deslocamentos do paradigma-texto ao paradigma-imagem, como pistas possíveis para as reflexões sobre autobiografias, escritas de si, subjetividades e imagens diversas que são trabalhadas no seminário de perspectiva biográfica como espaço-tempo existencial e experiencial, que favorecem aos professores escreverem narrativas autobiográficas. A identidade narrativa tematizada no texto parte do olhar sobre as imagens, relaciona-se com os sentidos da escrita e revela experiência estética no jogo dialético entre imagens, objetos artísticos e não artísticos implicados na configuração da escrita de si e na produção autobiográfica potencializada pela análise das imagens/objetos.
O capítulo intitulado ‘Cidade-floresta na arte da memória marajoara: visualidade e oralidade em Maria Necy Balieiro’, de autoria de Agenor Sarraf Pacheco, Analaura Corradi e Maria Necy Pereira Balieiro, caracteriza a cidade de Breves, localizada no ocidente marajoara, banhada pelo rio Amazonas, no Pará, a qual se tornou, ao longo de sua história, importante zona de interstícios culturais. Nesse circuito, diferentes artistas têm construído visualidades, sonoridades e oralidades sobre a vida urbana, pautadas em cosmologias, linguagens e estéticas locais em interações com outros códigos sociais como campo de possibilidades para se repensar e problematizar concepções clássicas, homogêneas e unilaterais de cidade na Amazônia. A pintora Maria Necy Pereira Balieiro, nascida nesse território, é uma das artistas que vem se nutrindo de convivências familiares e percepções pessoais para produzir pinturas que apreendem a interconexão cidade-floresta, cotidiano e memória em textos visuais e orais. Com base no método etnobiográfico, para tecer escrita compartilhada, e fundamentado no conceito de interculturalidade, para apreender o entrelaçamento de enunciados urbanos e rurais, o artigo procura reconstituir aspectos da trajetória de vida pessoal e profissional de Maria Necy, analisando escritas e pinturas de si, do outro e do nós, alinhavadas pelo fazer etnográfico que, pela arte das lembranças em telas, (re)constrói complexas dimensões e experiências interculturais sobre a cidade, seus moradores, suas práticas e a vida da própria artista que transforma as pinturas em textos visuais (auto)biográficos e produz outras narrativas do urbano na Amazônia Marajoara.
O texto ‘Agora que chegamos até aqui: professores, narrativas e imagens visuais’, de autoria de Fernando Miranda, parte de uma reflexão sobre o papel das biografias no processo de formação docente, com as experiências pedagógicas e a utilização de imagens visuais como impulsionadoras de narrativas de acontecimentos da vida pessoal e profissional. Ao tomar um conjunto de narrativas de docentes construídas na disciplina Pedagogías Culturales, na pós-graduação, o texto amplia questões de formação, ao considerar que a profissão docente é situada, social e coletiva, emergindo das histórias e das marcas vividas pelos sujeitos ao longo de suas vidas. As narrativas dos professores são centrais na análise construída pelo autor, na medida em que partem de imagens e relacionam-se com as escritas autobiográficas, na interface entre trajetórias de vida e a apropriação de imagens como possibilidades pedagógicas e formativas.
O texto de Vivien Kelling Cardonetti e Marilda Oliveira de Oliveira, ‘Pesquisa e compartilhamentos entre narrativas fílmicas e experiência educativa’, toma a ideia de ‘cacos de sentido’ em articulação com imagens fílmicas, especialmente em espaços de formação com estudantes da EAD, do PIBID-Artes Visuais e no campo do estágio supervisionado da Universidade Federal de Santa Maria, através da utilização do curta-metragem Los Colores de las Flores, dos longas A Invenção de Hugo Cabret e O Balão Branco, revelando, através das narrativas forjadas pelos personagens infantis veiculadas nos filmes, experiências educativas e formativas como disparadoras de objetos de estudos e de releituras sobre a infância e suas narrativas.
O texto ‘Da arte e da narração à sensível textura de nós’, de autoria de Apolline Torregrosa, discute sobre o lugar ocupado pela pesquisa artística e seus potenciais face às dimensões experienciais, criativas e sensíveis, ao destacar o papel das histórias de vida para a pesquisa educacional e da arte, com ênfase na utilização de narrativas e de experiências artísticas, como potente para a ressignificação de relações colaborativas entre pesquisadores, artistas e docentes.
Em ‘Olhando pelo espelho retrovisor: narrativas de formação e atuação em artes visuais’, Luiz Carlos Pinheiro Ferreira apropria-se da metáfora do retrovisor como brecha que implica o olhar em movimento e relaciona-se com os percursos formativos do autor no campo das artes visuais, como pistas e rastros que ficam pelos caminhos da vida. O ato de olhar mobiliza as análises do autor, através da sistematização de mo(vi)mentos realizados na sua pesquisa de doutorado, na medida em que se apropria da narrativa como forma de contar processos de sua formação e atuação docente nas interfaces entre vida, arte e profissão docente. Três mo(vi)mentos possibilitam reflexões narrativas a partir do olhar no retrovisor, o primeiro centra-se nas experiências de infância, o segundo na configuração da construção da pesquisa e o terceiro descreve um episódio pedagógico, nomeado de ‘cultura do gagaísmo’, vinculado ao trabalho de campo com alunos do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade de Brasília.
Encerra o eixo e o presente livro o capítulo ‘O teatro como processo de formação’, de Montserrat González Parera, que narra experiências entre a vida acadêmica e a vida artística, numa interface constitutiva de sua própria história de vida-formação-profissão, inscritas em dilemas e escolhas vividas pela autora na constituição de seu lugar pessoal e profissional na encruzilhada do terreno da vida e do trabalho entre teatro e educação. A narrativa da autora possibilita-nos pensar sobre o que fazemos da vida e o que a vida nos faz, marcando nossas responsabilidades frentes às escolhas, aos silêncios e aos abandonos que construímos ao longo da vida.
As contribuições e os diálogos em rede elaborados cotidianamente na labuta acadêmica, formativa e artística dos diferentes autores que compõem esta coletânea, com colaborações de colegas e amigos do Brasil, México, Uruguai, França, Espanha e Inglaterra, marcam nossas reflexões sobre aproximações entre educação, narrativa e arte em articulação com a pesquisa (auto)biográfica e narrativa sobre a vida, as experiências criativas, estéticas, a fruição e, consequentemente, sobre os modos como tecemos individual e coletivamente, numa rede de pesquisa, as nossas vidas como manifestação educativa e de arte. Esperamos que o livro possa contribuir para pesquisadores, professores e formadores que têm apostado em outros olhares e modos de pensar-viver a formação, a educação, a arte e a vida em sua dinâmica existencial.
Elizeu Clementino de Souza
Raimundo Martins
Irene Tourinho
Salvador-Goiânia, primavera de 2015.
EIXO I
PERSPECTIVAS
TEÓRICO-METODOLÓGICAS
DA PESQUISA NARRATIVA
Capítulo I
A ASCENSÃO DA NARRATIVA DE VIDA
Ivor Goodson
Tradução: Gisele Dionísio da Silva
Quando falamos sobre os grandes temas, o cenário político, o aquecimento global, a pobreza mundial, tudo parece realmente terrível, nada melhora, não há boas expectativas. Mas quando penso pequeno, em coisas mais íntimas – como uma garota que acabo de conhecer, ou uma canção que vamos fazer com o Chas, ou snowboarding no mês que vem –, então tudo parece ótimo. Por isso este vai ser meu lema – pensar pequeno.
(MCEWAN, 2005, p. 34-35)
Nos dias de hoje, existe uma espécie de consenso popular segundo o qual vivemos em uma ‘era da narrativa’ – a verdade é bem mais complexa, pois embora seja fato que narrativas e histórias fazem parte da moeda corrente de nossos tempos, sua escala, escopo e aspiração mudaram drasticamente. Na realidade, estamos adentrando um período de tipos específicos de narrativa: as narrativas de vida e as narrativas de pequena escala.
No passado, ‘narrativas grandiosas’ retratavam o propósito e o progresso da humanidade. Hywell Williams, em sua recente história cronológica do mundo, argumenta que o elo entre a história da humanidade e o seu progresso nas narrativas grandiosas cresceu exponencialmente em meados do século XIX. Segundo ele, as narrativas progressistas que surgiram nessa época eram muitas vezes prepotentes e ingênuas
.
Ela [a narrativa] era certamente baseada na questão do avanço material – a repentina e maior facilidade de deslocamento, as melhorias em saneamento e a redução de doenças, que impressionaram de tal modo os contemporâneos no Ocidente desenvolvido. Essas vitórias também pareciam apontar um verdadeiro progresso moral. Ninguém acreditava que a humanidade estava se superando na produção de santos e gênios, mas havia uma nova confiança na possibilidade de uma sociedade bem-organizada. Os avanços intelectuais que outrora haviam sido a reserva de uma elite erudita disseminaram-se ainda mais (WILLIAMS, 2005, p. 18).
Ao comentar sobre a vida pública vinculada a tais mudanças, Williams afirma: No passado, os céticos cortesãos do século XVIII desprezavam a superstição em pequenas rodas de fofoca – cem anos depois, grandes massas de pessoas debatiam questões de religião e ciência, reforma política e liberdade de comércio em eventos públicos
(Ibid.). Observamos na última frase o grau de declínio do engajamento popular – a ideia de grandes massas de pessoas debatendo temas importantes é inconcebível no mundo atual. Isso está intimamente relacionado, em parte, à decadência do escopo e da aspiração narrativa.
Testemunhamos, no século XX, o colapso das narrativas grandiosas. Mais uma vez Williams fornece um resumo valioso:
A noção de narrativa grandiosa nas ciências humanas saiu de moda. A providência cristã, a psicologia freudiana, as ciências positivistas, a consciência de classe de cunho marxista, a autonomia nacionalista, a vontade fascista: todas elas tentaram fornecer narrativas que moldam o passado. No que se refere à política prática, algumas dessas narrativas mostraram estar relacionadas à repressão e morte. A história do século XX dissolveu a conexão entre progresso material e científico e uma ordem moral superior. O aperfeiçoamento tecnológico voltou-se duas vezes para o negócio do massacre em massa no âmbito de conflitos mundiais, bem como para o genocídio e a limpeza étnica. O progresso material misturou-se com o retrocesso moral. O Ford Modelo T e a câmara de gás foram as invenções que definiram o século (WILLIAMS, 2005, p. 18).
Podemos então começar a entender como as narrativas grandiosas caíram em desgraça, perdendo não apenas escopo e aspiração, mas também nossa fé subjacente em sua capacidade geral de guiar ou moldar nosso destino. No turbilhão que se seguiu ao colapso dessas narrativas, podemos observar o surgimento de outro tipo de narrativa, infinitamente menor em escopo, frequentemente individualizada – o relato pessoal de vida. Isso expõe uma mudança dramática no âmbito das crenças e aspirações humanas. Juntamente com essas pequenas narrativas vemos também um retorno a preceitos antigos e mais fundamentalistas. Como tem sido operada essa transformação do papel e do escopo da narrativa? De que forma o novo gênero é socialmente construído?
Em texto de 1996, argumento que a literatura e a arte normalmente encontram-se à frente de outros vetores culturais de ideologia no que diz respeito a fornecer-nos novos roteiros, além de definirem nossas narrativas pessoais e ‘políticas de vida’. Afirmo que deveríamos situar nossa análise de histórias para mostrar que as formas gerais, os esboços e as ideologias que usamos para estruturar o modo como expomos nossos relatos individuais decorrem de uma cultura mais ampla
(GOODSON, 2005a, p. 215).
Seguindo essa análise, acredito que é possível ver nas atividades culturais contemporâneas de que modo a mudança para narrativas de vida individuais e mais restritas vem emergindo. De forma interessante, esta tem sido comumente chamada de ‘era da narrativa’: da política narrativa, da contação narrativa de histórias, da identidade narrativa. Posta em perspectiva histórica diante dos últimos séculos que se seguiram à Era do Iluminismo, devemos concebê-la como o início não da ‘era das narrativas’, mas da ‘era das pequenas narrativas’. Em nossa sociedade individualizada dos dias atuais, nossa arte, cultura e política refletem cada vez mais um deslocamento para narrativas altamente individualizadas ou de interesses específicos, as quais muitas vezes apelam para a literatura de terapia e de autodesenvolvimento.
Alguns exemplos extraídos das obras de alguns de nossos ícones culturais podem ilustrar essa questão. Bruce Springsteen, o astro de rock norte-americano, sempre foi, em minha opinião, um dos melhores e mais sensíveis contadores de histórias. Ele escreve suas canções com muito cuidado e ocasionalmente se debruça sobre grandes telas de aspirações humanas, como seu álbum The River (O Rio). Nesse trabalho, o artista reflete, em sintonia com Bob Dylan, o qual escreveu recentemente que não tinha nenhum sonho que não houvesse sido confiscado
, acerca das limitações dos sonhos humanos. Springsteen escreve: Um sonho é uma mentira se não se realizar, ou é algo pior?
. Tais reflexões acerca da capacidade que as aspirações humanas mais amplas têm de guiar nossas narrativas de vida recentemente levaram Springsteen em uma direção mais específica e individual. Seu álbum The Ghost of Tom Joad (O Fantasma de Tom Joad) expressa, de modo profundo, tanto no título quanto no conteúdo, uma conscientização sobre uma enorme mudança de escopo narrativo. Tom Joad, claro, o personagem de As Vinhas da Ira, de Steinbeck, veicula um enredo ligado a movimentos de massa da época, que visaram a estabelecer justiça social em tempos de depressão econômica em escala global. Uma vez rompido esse elo entre enredos individuais e aspirações coletivas, adentramos a era das pequenas narrativas, o universo das ‘políticas de vida’ individualizadas.
De certo modo, trabalhos mais recentes de Springsteen, como o álbum Devils and Dust (Demônios e Pó), revelam a mudança que vimos descrevendo: das narrativas grandiosas, vinculadas ao engajamento político, rumo às narrativas de vida individuais e às políticas de vida com orientação mais específica. Podemos observar como esse deslocamento sísmico na capacidade narrativa vem sendo explorado e expresso na obra de nossos artistas criativos. Retomando o foco de The Ghost of Tom Joad, percebemos um olhar retrospectivo para a narrativa vinculada a propósitos sociais e políticos; seu novo álbum, contudo, vai na direção de uma narrativa de vida individual. Sean O’Hagan (2005, p. 7) afirma: "Ao contrário de The Ghost of Tom Joad, este não possui nada daquela conscientização social aguçada. Em vez disso, o que temos é um conjunto de vislumbres íntimos e muitas vezes fragmentados das vidas em perigo de pessoas comuns.
O que fiz nesse álbum," conta Springsteen no