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Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco
Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco
Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco
E-book416 páginas6 horas

Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco

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Sobre este e-book

Na coleção Romancistas Essenciais o crítico August Nemo apresenta autores que fazem parte da história da literatura em língua portuguesa.
Neste volume temos Camilo Castelo Branco, escritor português, romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor. Foi um dos escritores mais prolíferos e marcantes do romantismo em língua portuguesa.
Não deixe de conferir os demais volumes desta série!
Essa obra inclui:

- Amor de Perdição.
- A Brasileira de Prazins.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de abr. de 2020
ISBN9783967991963
Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco

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    Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco - Camilo Castelo Branco

    O Autor

    Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, no dia 16 de março de 1825, na Rua da Rosa. Filho ilegítimo de Manuel Joaquim Botelho e de Jacinta Rosa do Espírito Santo, sua criada. Antes dele, tinha já nascido uma outra filha do casal, Carolina. No ano seguinte, a família mudou-se para a Rua da Oliveira.

    A mãe morreu em 1827 e o pai perfilha Camilo e a irmã dois anos depois, em 1829. Camilo iniciou os estudos primários em Lisboa (1830), na escola de mestre Inácio Minas, situada na Rua dos Calafates, e depois na escola de Satírio Salazar, na Calçada do Duque.

    No ano seguinte (1830) a família deslocou-se para Vila Real, onde Manuel Joaquim tinha sido colocado como responsável pelos correios. Acusado de fraude, o pai foi demitido em 1831 e regressou a Lisboa, onde acabou por falecer em 1835.

    Os parentes decidiram confiar a educação dos dois órfãos a uma tia paterna, Rita Emília — uma das personagens de Amor de Perdição — e os dois regressaram, por isso, a Vila Real (1836). Quando a irmã se casou (1839), instalou-se com o marido na casa de um cunhado, o P. Antônio de Azevedo, em Vilarinho de Samardã, nas proximidades de Vila Real. Camilo acompanhou-a e recebeu do P. Antônio uma educação literária e religiosa tendente ao estado clerical; foi quando iniciou nos clássicos portugueses e adquiriu os conhecimentos básicos de latim e francês. Simultaneamente contatou de perto com a vida rural, que depois descreveu em algumas das suas novelas.

    Com apenas dezesseis anos (1841), Camilo casou com Joaquina Pereira de França e instalou-se em Friúme (Ribeira de Pena). O casamento precoce pareceu ter sido resultado de uma mera paixão juvenil, não tendo resistido muito tempo. No ano seguinte preparou-se para ingressar na Universidade, indo estudar com o Padre Manuel da Lixa, em Granja Velha.

    Em 1843 nasceu a sua filha Rosa e decidiu inscrever-se na Escola Médica do Porto. Nos anos seguintes freqüentou irregularmente as aulas e chegou mesmo a perder o ano por faltas, em 1845. Pensou ainda em matricular-se no curso de Direito, em Coimbra, mas o projeto não teve continuidade. Nesse mesmo ano fez a sua estréia literária com o poema herói-cômico Pundonores Desagravados

    Em 1846 encontrou em Vila Real a jovem Patrícia Emília de Barros — sua prima — e fugiu com ela para o Porto, sendo perseguido pela justiça, em resultado da queixa dos parentes da moça. Passou a colaborar nos jornais O Nacional e o Periódico dos Pobres. Escreveu a peça Agostinho de Ceuta, que foi representada pela primeira vez num teatro de Vila Real.

    Depois da morte da esposa (1847), Joaquina Pereira, mudou-se para o Porto e entregou-se a uma vida de boemia, entremeada com escândalos de caráter amoroso, ao mesmo tempo que se dedicou mais profissionalmente à atividade jornalística, prestando colaboração ao Jornal do Povo. Rosa, a sua filha legítima, morreu e nasceu uma outra filha, Bernardina Amélia, fruto da relação com Patrícia Emília.

    Em 1850 instalou-se durante algum tempo em Lisboa e passou a viver exclusivamente da sua atividade literária. É nesta altura que conheceu Ana Plácida, noiva de Manuel Pinheiro Alves, o que não o impediu de se envolver amorosamente com uma freira do Porto, Isabel Cândida Vaz Mourão. Decidiu então inscrever-se no seminário do Porto, decisão a que não será estranho o casamento de Ana Plácido, mas rapidamente abandonou o curso de Teologia. Nos anos seguintes fundou dois jornais de caráter religioso, O Cristianismo (1852) e A Cruz (1853) e continuou a colaborar com vários outros, em ocasiões distintas.

    Em 1857, transferiu-se para Viana do Castelo, como redator do jornal A Aurora do Lima. Ana Plácido foi também para lá, a pretexto de apoiar uma irmã doente, e a ligação entre os dois tornou-se pública. O escândalo criou-lhe dificuldades com vários jornais em que colaborava. Talvez por isso decidiu publicar o jornal O Mundo Elegante, em 1858. Ainda nesse ano, sob proposta de Alexandre Herculano, foi eleito sócio da Academia Real das Ciências. Por essa altura, Camilo e Ana Plácido passaram a viver juntos e deslocaram-se de terra em terra para fugir à justiça. Em 1859 nasceu o filho Manuel Plácido.

    Após queixa de Manuel Pinheiro Alves contra a mulher e o amante, Ana Plácida foi presa em Junho de 1860 e Camilo fogiu da justiça durante algum tempo, mas acabou por entregar-se em outubro, ficando detido na cadeia da Relação do Porto, onde foi visitado pelo próprio rei D. Pedro V. Finalmente, em outubro de 1861 os dois foram absolvidos pelo juiz, curiosamente, pai de outra grande figura das letras, Eça de Queirós.

    Em 1863, nasceu em Lisboa o segundo filho do casal, Jorge, que veio a criar-lhe sérios problemas, com o seu alcoolismo crônico. Com a morte de Manuel Pinheiro Alves, o marido de Ana Plácido, Manuel Plácido, legalmente seu filho, herdou a casa de São Miguel de Ceide, em Famalicão. No ano seguinte, já instalados em São Miguel de Ceide, nasceu o terceiro filho, Nuno, que viria, também ele, a manifestar comportamentos desregrados durante a juventude. Ao longo destes anos, Camilo desenvolveu uma intensa atividade literária, ganhando notoriedade pública como escritor.

    Em 1868 voltou ao Porto para dirigir a Gazeta Literária. No ano seguinte passou longas temporadas em Lisboa, embora o domicílio familiar permanecesse em São Miguel de Ceide. Anos depois, em 1875, pensando na educação dos filhos, transferiu a residência para Coimbra. Dois anos depois, o filho mais velho, Manuel Plácido, morreu. Por esta altura Camilo tinha já alguns problemas de visão, que se agravaram com a idade.

    Mais tarde, em 1881, participou ativamente no rapto de uma jovem para a casar com o filho Nuno. As relações com o filho degradaram-se e Camilo acabou por expulsá-lo de casa em 1882. Em 1883, atormentado por dificuldades financeiras, leiloou a sua biblioteca. Em 1885 foi-lhe finalmente concedido o título que ele solicitara em vão, quinze anos antes — visconde. Em 1888 casou com Ana Plácido.

    Definitivamente cego, suicidou-se na sua casa em S. Miguel de Ceide, em 1º de junho de 1890.

    Camilo foi seguramente o primeiro escritor profissional português. Durante quase toda a sua vida ativa assegurou a sua subsistência e a da família, depois de assumida a relação com Ana Plácido, com os seus trabalhos jornalísticos e as novelas que publicava em ritmo frenético: a sua bibliografia ultrapassou muito a centena de títulos, descontada a profusa colaboração espalhada pelos jornais da época.

    Essa atividade literária tão intensa — forçado das letras, chamou-lhe alguém — bem como a leitura freqüente e atenta dos escritores portugueses, sobretudo os clássicos, são os principais responsáveis pelo domínio da língua, que revela em numerosas passagens das suas obras. É verdade que o ritmo vertiginoso com que escrevia (o Amor de Perdição, por exemplo, terá sido escrito em cerca de quinze dias) não lhe permitia trabalhar como gostaria a escrita. Essa urgência da escrita foi certamente a grande responsável pela irregularidade qualitativa da sua obra, onde encontramos textos de inegável qualidade a par de outros que não conseguiram resistir ao tempo.

    Embora fosse um escritor da segunda metade do século XIX, a verdade é que muitas das suas novelas refletem o clima social, político e mental da primeira metade — época extremamente conturbada, a nível político, e marcada por profundas transformações de natureza social.

    As suas novelas constituem um painel descritivo, em tom freqüentemente sarcástico, da sociedade portuguesa do século dezenove. A sua atenção debruçou-se sobretudo sobre uma aristocracia em clara decadência — material e moral — e uma burguesia em ascensão, que, aos seus olhos, se destacou pela boçalidade.

    A obra de Camilo é, em grande parte, um reflexo do seu próprio percurso biográfico. A agitação, a instabilidade, os raptos, o conflito entre a paixão e a razão que encontramos nas novelas de Camilo, encontramo-los igualmente na vida do autor. Por outro lado, como profissional das letras que era, Camilo não pôde ignorar os apelos do seu público, que os editores traduziam sob a forma de pressões incontornáveis. Camilo vivia da escrita, e para isso precisava vender, o que implicava obedecer de alguma maneira às solicitações do público leitor. É essa sujeição aos gostos dominantes que explica também a conversão naturalista, detectável nas últimas obras de Camilo.

    Independentemente dessas cessões, há na sua obra passagens antológicas, onde transparecem os costumes, os comportamentos, o jeito de falar do norte de Portugal.

    A exuberância, o imprevisto, o excesso passional das suas intrigas cativaram igualmente a geração literária dita ultra-romântica, que o homenageou quase no fim da vida.

    A intriga é quase sempre de teor passional, como se esperaria de um escritor romântico. Os impulsos do coração determinam a ação das personagens principais, que, normalmente, se defrontam com outras, movidas por outros impulsos menos ideais: o estatuto social, as rivalidades familiares, os interesses econômicos.

    As suas intrigas são freqüentemente demasiado lineares, mas não se pode negar a Camilo uma capacidade de efabulação notável.

    As condicionantes estéticas da sua época, os circuitos editoriais, a sociologia e psicologia do seu público e a sua própria personalidade impuseram à sua obra novelística características fortemente românticas. No entanto, a sua longa permanência de quase meio século na vida literária, e a sua dependência financeira da escrita, levaram-no, talvez a contragosto, a tentar acompanhar a evolução ideológica do seu tempo ensaiando uma escrita realista e até naturalista.

    É autor de uma obra multifacetada. Nela se destaca, como sabemos, a componente novelística, mas estende-se também pelo teatro, jornalismo, ensaios biográficos e históricos, poesia, polêmica, crítica literária, além de dezenas de traduções e uma extensa epistolografia.

    Amor de Perdição

    I

    Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de outro Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem notável por sua jerarquia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte de Guerra.

    Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I¹ minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de brocas, com que ainda hoje os seus descendentes em Vila-Real são conhecidos. Bem ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de milho que ele digeria na sua terra.

    Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era excelente flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta se sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu pai lhe suspendeu as mesadas, porque os rendimentos da casa não bastavam a livrar outro filho de um crime de morte ².

    Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira da magistratura. Já Fernão Botelho, pai do bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco, na tentativa regicida de 1758. O provinciano saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do primor de sua geneologia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bomjardim do Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho.

    As artes como que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de D. Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a rainha com as suas facécias, e por ventura com os trejeitos de que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho freqüentava o paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta pensão. com a qual o aspirante a juiz de fora se esqueceu de si, do futuro e do ministro da justiça, que, muito rogado, fiara das suas letras o encargo de juiz de fora de Cascais.

    Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço. não poetando como Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa provinciana, e captando a bem-querença da rainha para amolecer as durezas da dama. Devia de ser, afinal, feliz doutor bexiga - que assim era na corte conhecido - para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinqüenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote. se não é dote uma série de avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o que morrera frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente. mas de tal monta que os descendentes do general frito se assinaram Caldeirões.

    A dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da corte, das pompas das câmaras reais. e dos amores de sua feição e malde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém, não empreceu que se reproduzissem em dois filhos e três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas uma era Maria, a segunda Ana e a última tinha o nome de sua mãe, e alguns traços de beleza dela,

    O Juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado banco, demorava em Lisboa, na freguesia da Ajuda. em 1784. Neste ano é que nasceu Simão, o penúltimo dos seus filhos. Conseguiu ele, sempre balanceado da fortuna,. transferência para Vila-Real, sua ambição suprema.

    A distância duma légua de Vila-Real estava a nobreza da vila esperando o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na comitiva.

    D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e disse:

    — Ó Meneses, aquilo que é?

    — São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

    — Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou dama do paço.

    — Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.

    — Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...

    O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara grandemente.

    Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila-Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não haveria risco em ir dentro daquela antigüidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não tinha ainda cem anos, e que os machos não excediam a trinta.

    O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza - velha nobreza, que para ali viera em tempo de D. Deniz, fundador da vila - fez que o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse a mim: Sabíamos que ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da soberba com que nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria rainha. Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou à Senhora de Almudena. D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.

    Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para si: É uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e Queluz.

    Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os tetos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno; que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis,

    Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e começou a fábrica dum palacete. Escassamente lhe chegavam os recursos para os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. As varandas das janelas foram a última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D. Maria I.

    Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas; mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado não podia com segunda despesa, nem queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa ³.

    O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando ela o remirava com a luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela da sua virtude.

    Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general frígido no caldeirão sarrareno ria dos primos, que, por amor dela, erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero, e cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores da província não desconheciam as graças hípicas do marquês de Marialva.

    Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista que lhe trazia o espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e conhecia Rita cada vez mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposo disforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a memória, e esse, com quanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a ser o casamento de Vênus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o ferreiro coxo fabricara para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquele marido. Entre si, dizia ele, que, erguido o véu da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o alfares, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fora era entendido com muito superior inteligência à que revelava na compreensão do Digesto e das Ordenações do Reino.

    Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Vila-Real, e duradoura memória da sua soberba, formosura e graças de espírito. O marido também deixou anedotas que ainda agora se repetem. Duas contarei somente para não enfadar. Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar com ela a vaca, para se não desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escárnio um presente de doces, que valiam dez patacões, sendo que naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da bandeja, E assim é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando se dá um caso análogo de ficar alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: Aquele é como o doutor Brocas.

    Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra, Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa de uma antigüidade que principia na aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correais de Mesquita, desprimorando-lhe as cãs com o fato de ele ter vivido dois anos em Coimbra tocando flauta.

    Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Viseu.

    Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e freqüenta o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua mãe.

    O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o gênio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.

    Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu pai outro destino, D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete.

    No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer forçar a viver monásticamente.

    Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em gênio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerência de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem obedecia, se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que não andasse com pessoas mecânicas.

    Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um dos seus criados tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado; espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado de um fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à porta do magistrado.

    Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que o prendesse à sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.

    O corregedor quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças e estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estúpido juiz.

    II

    Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pusera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada deste, o levantar-se daquele, ensangüentado, a bordoada que abrangia três a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se nestas lembranças, como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os louros de cada uma, e esmorece, afinal, estafado de espantar, quando não é de estafar, os ouvintes.

    O acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em grande parte, simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da revolução francesa não tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto do mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração seguinte bebera a peçonha que saiu no sangue de noventa e três, não eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é que deviam pertencer à geração nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classes manufatureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se queriam antes aliançados com a França. Estes eram os pensadores reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocínio.

    No ano anterior de 1800, saíra Antônio de Araújo de Azevedo, depois conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potências aliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada os dezesseis milhões que o diplomata oferecia ao primeiro cônsul. Sem delongas, foi o território português infestado pelos exércitos de Espanha e França. As nossas tropas, comandadas pelo duque de Lafões, não chegaram a travar a luta desigual, porque a esse tempo Luís Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão, negociara ignominosa paz em Badajoz, com cedência de Olivença à Espanha, exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de alguns milhões à França.

    Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os desta parcialidade, na convulsiva e irrequieta academia, era voto de grande monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezesseis anos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e mártires do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão. Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas à cara do difamador. O filho do corregedor de Viseu defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de sangue, para que a hidra dos tiranos não erguesse mais uma das suas mil cabeças sob a dava do Hércules popular.

    Estes discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória de Saint-Just, afugentavam da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido em mais racionais princípios de liberdade. Simão Botelho tornou-se odioso aos condiscípulos, que, para se salvarem pela infâmia, o delataram ao bispo-conde e ao reitor da Universidade.

    Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos poucos ouvintes que lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por analogia de bossas. O discurso ia no mais acrisolado da idéia regicida, quando uma escolta de verdeais lhe aguou a escandescência. Quis o orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os braços musculosos da corte do reitor com quem as haviam. O jacobino, desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcere acadêmico, donde saiu seis meses depois, a grandes instâncias dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita Preciosa.

    Perdido o ano letivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu-o da sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever que do coração. intercedeu pelo filho e conseguiu sentá-lo à mesa comum.

    No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As companhias da relé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o seqüestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a mesa.

    D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.

    Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezessete anos.

    Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.

    Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que ensaia o vôo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe, que a está de fronte próxima chamando: tanto sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe.

    Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor.

    O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo de litígios, em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. E, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte.

    E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio.

    Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um patrimônio!

    Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades

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