Preso na Gaiola: A Criminalização do Funk Carioca nas Páginas do Jornal do Brasil (1990-1999)
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Sobre este e-book
Esta obra conta com o rigor científico-metodológico necessário à análise histórica e historiográfica e destaca-se nesta cena por ser o primeiro livro na grande área da História a ser publicado sobre o funk carioca. No entanto a escrita objetiva e não desnecessariamente rebuscada da autora permite que pessoas fora da grande área da História e das Ciências Humanas possam ter acesso às suas conclusões.
Com o objetivo de romper as barreiras da academia e atingir o maior número possível de leitores, este livro foi escrito a partir de uma linguagem simples – porém não simplória –, de modo que toda e qualquer pessoa que se interesse pelo funk carioca consiga ler e, de fato, compreender os resultados da pesquisa aqui apresentados.
Adquirir este livro é uma forma de se desprender das amarras dos preconceitos que ainda hoje recaem sobre o funk carioca e sobre os funkeiros. Esta leitura pode tornar possível o reconhecimento do funk carioca como um importante produto cultural, como uma respeitável fonte de renda direta e indireta, como uma possibilidade de ascensão social e como a voz daqueles que não aceitam ser calados.
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Preso na Gaiola - Juliana Bragança
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
Dedico este livro aos funkeiros às funkeiras que seguem resistindo e reinventando esse movimento lindo que é o funk carioca.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer a quem rege minha vida e olha por mim, protegendo-me daquilo que não me beneficia e guiando-me a trilhar apenas caminhos de luz.
Ao meu dengo, que aceitou estar ao meu lado nesta difícil caminhada.
Aos meus pais: sem vocês, eu não teria trilhado nem metade deste caminho.
Aos meus sogros, que, no momento de maior dificuldade, abriram suas portas e corações para nos acolher.
Aos meus amigos e demais familiares: sem vocês minha vida não teria graça nem sentido. Um agradecimento especial ao amigo e engenheiro cartográfico Renato Lopes, que em muito contribuiu com o enriquecimento desta obra, elaborando de forma brilhante os mapas aqui apresentados.
Aos exímios professores Álvaro Nascimento e Adriana Facina, por todo incentivo. Vocês são grandes referências e me fizeram enxergar em mim mesma um potencial que eu ainda desconhecia.
Por fim, Ana Liz, gostaria de lhe agradecer por você ter me escolhido para ser sua mãe. Espero que um dia você sinta tanto orgulho mim quanto hoje eu já sinto de você.
Obrigada por sempre acreditarem em mim!
Gratidão!
Pois tudo o que acontece no Rio de Janeiro
A culpa cai todinha na conta dos funkeiros
E se um mar de rosas virar um mar de sangue
Tu pode ter certeza, vão botar a culpa no funk.
(MC Cidinho e MC Doca, Não me Bate Doutor
)
PREFÁCIO
A fabricação do inimigo
Movimento Funk leva desesperança
. Este é o título de uma matéria do Jornal do Brasil do dia 25 de outubro de 1992, uma das muitas reportagens sobre o funk e os funkeiros publicadas nos jornais de grande circulação nos anos 1990. A disputa eleitoral entre Cesar Maia e Benedita da Silva para a prefeitura do Rio de Janeiro estava acirrada. Coincidência ou não, o fenômeno dos arrastões nas praias cariocas foram associados pela imprensa ao funk, à favela e, por extensão, à candidata negra do PT, moradora da favela do Chapéu Mangueira. Na matéria, os funkeiros eram definidos como agentes da crescente violência urbana e como eleitores do Partido dos Trabalhadores.
A redemocratização legou aos anos 1990 a Constituição Federal de 1988, ampliando direitos para a população, mas também foi marcada pela vitória neoliberal com a eleição de Fernando Collor de Mello. Os direitos assegurados pela Constituição são ameaçados pelo desemprego estrutural e pela desregulamentação da economia, acompanhados de um paradigma do Estado mínimo no quesito seguridade social. A questão social volta a ser questão de polícia, ampliando a violência estatal contra os pobres e o encarceramento como via de resolução de conflitos sociais. Saem de cena os subversivos, que eram apresentados como ameaça à sociedade na época da ditadura empresarial-militar. Em seu lugar, jovens favelados, em sua maioria negros, tornam-se o perigo a ser combatido, os inimigos públicos a que se declara guerra. É o momento em que a guerra às drogas definida pelo Departamento de Estado dos EUA influencia a geopolítica do continente americano, atingindo no Brasil prioritariamente aqueles que Orlando Zacconne chamou de acionistas do nada
. Jovens pobres enquadrados legalmente como traficantes ao serem flagrados com pequenas quantidades de drogas ilícitas.¹
Para legitimar o encarceramento e o extermínio dessa população excedente produzida pelo neoliberalismo era preciso desumanizá-la. No Rio de Janeiro, a criminalização desses jovens forjou-se pela criminalização de suas sociabilidades, estilos de vida e fruição cultural. Enquanto o funk entoava Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci
, os meios de comunicação, surdos para a poesia cantada pela juventude popular, estigmatizavam os frequentadores dos bailes, perseguiam artistas e empresários. Após rápida passagem pelos cadernos culturais, o funk se torna tema de segurança pública. Funk = violência. Funkeiro = bandido. Baile funk = lugar de violência e de bandidos. Essa narrativa persistente se disseminava enquanto milhões de jovens se reuniam toda semana em centenas de bailes para dançar, lançar moda, namorar. E também participar de rituais de briga, como os das torcidas organizadas de futebol ou das gangues de classe média do Rio de Janeiro.
O livro de Juliana Bragança disseca essa narrativa criminalizante a partir das páginas de um de seus principais veículos: o Jornal do Brasil. A estigmatização da juventude pobre, o racismo, a representação das favelas como lugar do medo na cidade aparecem em dezenas de reportagens nos anos 1990. A defesa da repressão e mesmo da segregação espacial ressonam o pensamento de uma classe média acuada pelo medo da violência urbana e, ao mesmo tempo, indiferente às suas causas, ligadas a violências estruturais históricas e profundas. O levantamento e a análise minuciosos do jornal na década de 1990 traz a pesquisa histórica para elucidar o processo de fabricação do inimigo. Nunca é demais lembrar que os anos 1990 são marcados por três grandes chacinas no Rio de Janeiro: a de Acari (1990) e as da Candelária e Vigário Geral (ambas em 1993), demonstrando que os porões da ditadura continuavam bastante ativos, indiferentes aos novos ares democráticos.
Nesse contexto, o funk veio desafiar a ordem. Jovens negros dançando, reunidos em milhares. Jovens negros cantando versos de crítica social, deboche, amor e exaltação de suas favelas. Juventude popular ocupando espaço na cidade com seu som grave e potente, seu canto gritado, seus corpos dançantes, seus desejos de consumo e beleza. Na contramão dos corpos dóceis e/ou matáveis que o neoliberalismo mói na superexploração do trabalho e na engrenagem do livre mercado.
A pesquisa empreendida pela historiadora Juliana Bragança nos permite compreender como esses jovens transformaram-se em símbolos do mal, engendrados numa sociedade ansiosa por punir os de baixo, evitando, assim, qualquer debate mais aprofundado sobre igualdade social ou racial. É difícil ler este trabalho, pois sabemos que o inimigo fabricado é também a vítima preferencial que hoje lota presídios e infla a monstruosa estatística dos 60 mil assassinatos por ano que este triste país registra. Mas o livro de Juliana também nos permite perguntar: e se não tivesse sido assim? Se o funk, a voz dessa juventude tivesse sido ouvida, como estaríamos hoje? E se, ao invés de criminalização, o caminho houvesse sido o da escuta e do diálogo? A completa ineficácia dessa política deliberada de marginalização acende esperanças. O funk sobrevive. A juventude negra, pobre, periférica, favelada persiste criando, cantando, dançando, cavando brechas como flores no asfalto, lembrando-nos de que podemos construir outra sociedade, aberta ao diverso, mais justa e fraterna, na qual seremos, apenas, felizes.
Adriana Facina
Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades/UFF. Pesquisadora do CNPq.
APRESENTAÇÃO
O ano é 1992: o verão está no auge e o calor de matar. Arrastões acontecem nas mais badaladas praias da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, assustando banhistas, moradores e turistas.
Quem promove os arrastões?
Pergunta simples que demanda resposta muito complexa. No entanto surge um bode expiatório: o funkeiro.
A mídia, como um todo, trata de abordar exaustivamente a ocorrência dos arrastões e culpabilizar os funkeiros como seus geradores, personificando neles todos os males, acusando-os de serem os principais promotores da violência na cidade. Sob o termo funkeiro foram condensados os conceitos de bandido, pobre, favelado, suburbano, traficante e todos os estigmas que eles carregam. É nesse sentido que os funkeiros, ao invés de serem vistos como vítimas da violência urbana, passam a ser considerados seus causadores.
A prisão do DJ Rennan da Penha, a partir de provas questionáveis, reacendeu o debate sobre a criminalização do funk e também sobre a criminalização das manifestações culturais negras de forma geral ao longo da História. Neste livro é demonstrado como a não aceitação do funk enquanto produção cultural e a perseguição levada a cabo contra seus adeptos e suas manifestações (sobretudo os bailes funk) encobrem o racismo e os preconceitos calcados em classes sociais. Aos jovens negros, pobres e favelados vem sendo negado, ao longo dos anos, o direito ao lazer e à livre manifestação.
Perguntemo-nos: até quando?
Sumário
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
O FUNK E OS FUNKEIROS
1.1 O FUNK
1.2 AS VERTENTES DO FUNK CARIOCA
1.3 QUEM SÃO OS FUNKEIROS?
1.4 FUNK: EXCLUSIVAMENTE CARIOCA?
1.5 O(S) BAILE(S) 66
CAPÍTULO II
CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK, RACISMO E PRECONCEITO SOCIAL
2.1 OS ARRASTÕES
2.2 LEGISLAÇÃO DO FUNK
2.3 OS PEDIDOS DE PAZ
CAPÍTULO III
O MOVIMENTO FUNK NAS PÁGINAS DO JORNAL DO BRASIL
3.1 O JORNAL DO BRASIL
3.2 JORNAL DO BRASIL E FUNK CARIOCA: UM RELACIONAMENTO CONTURBADO
3.3 A PRIMEIRA ONDA CRIMINALIZANTE
3.4 A SEGUNDA ONDA CRIMINALIZANTE E A OPINIÃO DOS LEITORES
3.5 GLAMOURIZAÇÃO
3.6 VIOLÊNCIA POLICIAL
3.7 A TERCEIRA ONDA CRIMINALIZANTE
NOTAS CONCLUSIVAS
REFERÊNCIAS
3.1 FONTES
3.1.1. Legislação
3.1.2. Músicas
3.1.3. Matérias e notícias de jornal
3.1.4 Cartas de leitores
3.2 REFERENCIAL TEÓRICO
ÍNDICE REMISSIVO
INTRODUÇÃO
A nossa juventude hoje chora
Porque o funk está preso na gaiola
Se a nossa justiça for fiel
Dê liberdade pra ele voar pro céu
(MCs Márcio e Goró)
Diga-me seu objeto de pesquisa que te direi quem és
.
Foi-se o tempo em que a pesquisa em História procurava vestir-se de objetividade, preocupada com fatos e como eles realmente
aconteceram.² A história tradicional, positivista, tinha um pacto
implícito a fim de compartilhar uma soberba Verdade. Mas, afinal, o que seria a
Verdade? Não existiriam, ao invés de uma verdade única, várias verdades? Não deveríamos nós, historiadores, interessarmo-nos sobre todas as versões de um mesmo fato e, assim, compreender a existência de verdades, no sentido de conceber diferentes pontos de vista?
Atualmente, nós, historiadores, já concebemos a objetividade como uma utopia desnecessária. Somos sujeitos inseridos em processos históricos e, ao olharmos em direção ao passado, não conseguimos nos desprender de todas as nossas ideias e ideais, lançando, assim, um olhar particular. E isto se aplica também aos objetos de pesquisa sobre os quais nos debruçamos.³
A escolha de um objeto de pesquisa está, portanto, calcada – conscientemente ou não – na subjetividade de quem se propõe a pesquisá-lo. Esta é uma escolha simplesmente impossível de ser feita sem considerar quem é que se propõe a desenvolver a pesquisa, a construção de sua identidade, sua história de vida, sua origem racial e social, sua visão de mundo. Nesse sentido, a escolha de um objeto de pesquisa é, sem dúvida, uma escolha política que muito revela sobre aquele/a que se debruça sobre ele.
E minha raiz negra gonçalense não me deixa mentir: o funk faz parte da minha história pessoal. Minha infância teve como trilha sonora os grandes sucessos lançados pela dupla Claudinho & Buchecha (artistas também gonçalenses), lá por meados da década de 1990. Na adolescência, apesar da identidade roqueira assumida por mim naquele momento, nunca consegui (ainda que houvesse tentado) me desvincular do funk, porque quando toca, ninguém fica parado
⁴. Por isso, mesmo assumindo a identidade roqueira, MC Sabrina, MC Smith, Gaiola das Popozudas, entre outros artistas, fizeram parte da trilha sonora da minha adolescência. Deve ser comentado também que os bailes funk eram muito mais acessíveis no que diz respeito às minhas realidades geográfica e financeira do que grandes shows de rock.
Ao iniciar a graduação em História e, em seguida, começar a pensar sobre possíveis objetos de pesquisa para monografia e iniciação científica, o funk foi o que mais chamou minha atenção, ainda que, no início de minhas pesquisas, eu carregasse forte juízo de valor. As posturas, os discursos e os comportamentos das mulheres do mundo funk despertaram grande curiosidade e este foi o tema da iniciação científica. A monografia, por sua vez, ficou centrada no debate que gira em torno da criminalização do funk, ao qual decidi dar continuidade.
A escolha do funk carioca como objeto de pesquisa é, como defendido anteriormente, uma escolha política – e toda escolha política exige coragem e determinação para ser defendida. Digo isso, pois, apesar do notável crescimento do número de pesquisas que tomaram o funk carioca como objeto de pesquisa nos últimos anos nas mais diversas áreas do conhecimento (tais como Comunicação, Direito, Sociologia, Linguística e, principalmente, Antropologia), o mesmo não ocorreu em História. Tanto é que, nesses cerca de dez anos em que me dedico ao estudo do funk carioca, não encontrei sequer uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado já concluída sobre o funk em História, muito menos um livro publicado nessa área.⁵
O fato de o funk carioca não ter sido eleito até então como objeto de pesquisa em pesquisas históricas coloca este livro numa posição, ao mesmo tempo, privilegiada e perigosa de ineditismo. O ineditismo o coloca em posição privilegiada porque este é o primeiro livro a ser publicado na área de História em que tenha sido proposta uma análise do funk carioca sob o rigor da escolha das fontes e da metodologia aplicada. Assim, foi aberto um grande leque de possibilidades a respeito do fértil campo de estudo e pesquisa que representa o movimento funk como um todo. Entretanto o ineditismo torna-se perigoso pelo fato de ter rendido muitas dificuldades, tanto no que diz respeito ao debate bibliográfico sobre o tema quanto na falta de referências nessa área específica.
A aproximação entre pesquisador e objeto de estudo também pode trazer certos entraves. Antes de qualquer coisa, eu sou um sujeito e estou inserida em uma sociedade, em uma história, em conflitos. Carrego comigo e em mim marcas de um passado que é meu, mas não somente meu. Em toda a minha vida o funk esteve presente; fosse com maior ou menor intensidade, ele sempre esteve aqui. Ao tratar sobre a criminalização do funk, tal como será demonstrado detalhadamente adiante, torna-se impossível não me identificar com os atores sociais em questão.
O racismo que permeia em nossa sociedade e que muitas vezes não foi sequer mascarado nas páginas do Jornal do Brasil, os preconceitos de classe que em diversos momentos esteve presente nas fontes analisadas e a perseguição do poder público contra os funkeiros muitas vezes me fizeram refletir que ali poderia ser um/a vizinho/a, um/a amigo/a, algum/a familiar ou até eu mesma. E isso causa dor. Dói na alma tanto quanto ao estudarmos a escravidão no Brasil nos exergamos ali e por vezes pensarmos: Poderia ter sido comigo
.
Porém, ao mesmo tempo em que fere, enche-nos de orgulho ao fazer perceber como, apesar de todos os pesares, somos sujeitos resistentes, que não aceitam o massacre. Seguimos reinventando nossa cultura, nossas práticas, nossa estética, tornando-as cada vez mais vivas. Prova disso é que o funk está completando três décadas de existência e resistência.
Outra dificuldade sentida por mim ao longo desse processo de pesquisa foi muitas vezes ter ouvido de pares que a pesquisa pretendida não se enquadrava na área da História. Além disso, em debates em eventos e até mesmo entre colegas de classe, ter sido insinuado algumas vezes que seria melhor eu tentar desenvolver essa pesquisa em outra área. Com muita garra e muita luta, este livro está aqui para provar que sim, é possível pesquisar o funk carioca em História. Porém, para tanto, é extremamente necessário que nós, historiadores, estejamos verdadeiramente abertos a novos objetos, novos atores, novas fontes e novas metodologias em pesquisas historiográficas, tal como sugeriram os grandes da Escola dos Annales e a Nova História.⁶
Além da preocupação em atender ao rigor científico-metodológico necessário para o reconhecimento de uma pesquisa em História, também me preocupei em tornar a linguagem utilizada neste livro o mais acessível possível. O objetivo deste livro é romper com as barreiras acadêmicas e universitárias e alcançar o maior número possível de pessoas.⁷ Portanto palavras muito rebuscadas foram deixadas de fora deste texto, com vistas a alcançar pessoa com diferentes níveis de escolaridade. Assim, o único pré-requisito para a leitura deste livro é o interesse pela história do movimento funk carioca.
O foco principal da pesquisa aqui apresentada é o processo de criminalização do funk carioca, entendido aqui como parte de um processo histórico maior e mais profundo de perseguição contra a população negra e suas manifestações culturais. Desde o início de nossa República, a população negra na cidade carioca vem sofrendo diversas formas de ataque, heranças racistas de um tempo escravocrata em que pessoas negras sequer eram consideradas, de fato, pessoas. A sociedade brasileira tem sua base fincada em preceitos racistas e elitistas que, ao longo da história, procuram desqualificar tudo o que diz respeito a nós, negros, e à nossa cultura.⁸
Antes, porém, de adentrarmos no tema da criminalização do movimento funk, é de suma importância que o/a leitor/a conheça seus passos ao longo dos anos. Tendo em vista o desconhecimento (inclusive e principalmente dos que fazem parte do universo acadêmico) sobre o que é, como surgiu e quem são os adeptos do movimento funk, o primeiro capítulo, intitulado O funk e os funkeiros, tem como objetivo principal traçar um perfil do movimento funk e abordar sua história de forma resumida, porém não reducionista. Este capítulo pode ser interessante também para quem já conhece e/ou faz parte do movimento, uma vez que ele se apresenta como um convite para mergulhar nas diversas fases e faces do funk carioca.
Nesse primeiro capítulo foi abordada a chegada do funk no Brasil e sua inserção na cultura nacional, a partir dos Bailes Black Rio na década de 1980,⁹ a importância dos DJs na promoção desses bailes e o surgimento das primeiras melôs
.¹⁰ Em seguida, abordamos a importância do lançamento do disco Funk Brasil, pelo DJ Marlboro (um dos grandes empresários do movimento funk), inteiramente em português. Este lançamento marcou não somente transformações na música funk em si, mas também moldou, como veremos adiante, toda a dinâmica empresarial do mundo funk (modelo este que persiste, inclusive, até os dias atuais).
Após a era das melôs e do marco da nacionalização
do funk, foram surgindo vertentes próprias da música funk. São elas: funk melody; funk consciente; funk proibidão e funk putaria. Todas estas vertentes são nativas do movimento e, destacados alguns dos mais notáveis artistas representantes de cada vertente, é possível perceber a riqueza e a pluralidade carregadas pelo gênero musical denominado funk carioca.¹¹
Para demonstrarmos com base em dados comprováveis quem são os sujeitos que se identificam como funkeiros, utilizamos os resultados de uma pesquisa realizada pelo Ibope Media no Brasil, que mapeou os ouvintes de rádio. Estes dados foram coletados e cruzados com canções funk, o que nos permitiu concluir que, de fato, o movimento funk carioca é composto por jovens em sua grande maioria negros, pobres e/ou favelados ou moradores de bairros periféricos.
Tendo como base canções¹² da década de 1990, deparamo-nos com o mapeamento e a constatação de que o funk, na verdade, ultrapassa as barreiras geográficas que o termo carioca
lhe compete. Isso porque percebemos que o funk carioca tem história marcante e forte presença até os dias atuais em cidades próximas, tais como São Gonçalo, Niterói e Duque de Caxias, por exemplo. Estas cidades se mostraram riquíssimos celeiros artísticos, de onde surgiram diversos artistas funk, e também onde se concentra, ainda hoje, grande parte da massa funkeira.
Por fim, apresentamos aos leitores ainda no primeiro capítulo, um panorama geral do epicentro do movimento: o baile funk. Este tópico é de extrema importância e mantém um elo com o capítulo seguinte, uma vez que é preciso entender as diferenças entre os tipos de baile funk que aconteciam na década de 1990 e sua importância para os funkeiros. Somente a partir de então é possível compreender a dimensão do golpe
promovido pela interdição de diversos bailes funk à época.
O segundo capítulo, Criminalização do funk, racismo e preconceito social, é aberto com um grande marco na história do movimento funk: os arrastões nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro no verão de 1992/1993. Este caso foi exaustivamente abordado na imprensa nacional como um todo e, na ocasião, os funkeiros foram eleitos como bode expiatórios
para um problema que era, na verdade, de competência da segurança pública. Além do mais, notamos, na cobertura do Jornal do Brasil (que, em certa medida, estava de acordo com a cobertura dos demais canais
midiáticos), que houve um alarmismo exacerbado em torno da ocorrência dos arrastões, que não deixaram mortos e sequer foram registrados grande número de feridos ou de roubos e furtos. Os arrastões serviram, em grande medida, para endossar os preconceitos baseados em raça e classe e demonstraram o ódio da classe média branca moradora da Zona Sul contra os pobres negros suburbanos que invadiam sua área
nos finais de semana, pondo em cheque, inclusive, o superestimado mito da democracia racial em nosso país. A revolta foi tanta que algumas pessoas chegaram ao ponto de reivindicar a suspensão das linhas de ônibus que faziam o trajeto Zona Norte/Oeste – Zona Sul, com o objetivo de barrar a presença dos usuários dessas linhas nas nobres praias aos fins de semana.
Assim, após a ocorrência dos arrastões, foi sendo delineada na mídia como um todo e no Jornal do Brasil especificamente (eleito aqui como fonte de pesquisa), a imagem do funkeiro como um ser maligno e causador de todas as ocorrências violentas na cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, após a construção dessa imagem negativa estereotipada sobre o jovem funkeiro (lê-se jovem negro/pobre/favelado), partiu-se para a investida contra uma de suas principais formas de lazer: o baile funk.
A partir de então são apresentadas as investidas legais do Estado contra o movimento funk através das leis criadas no sentido de coibir ou disciplinarizar os bailes funk. No entanto, longe de uma visão maniqueísta, percebemos e demonstramos que houve também diversas medidas legais em prol do movimento funk e de suas manifestações. Isso marca o relacionamento dúbio e conturbado entre o movimento funk e o poder público, que ora se empenhou em coibir e deslegitimar o movimento funk e ora desempenhou papel fundamental no reconhecimento de seu caráter cultural e popular e no incentivo às suas manifestações.
Assim, com o objetivo de romper com a visão violenta destinada aos funkeiros, muitos deles se dedicaram a construir uma imagem de si mesmos associada a não violência. Foram verificadas notícias de manifestações nas ruas da cidade em prol do estabelecimento da paz nos bailes funk e, principalmente, o esforço de diversos artistas funk em suas canções em clamar pelo clima de comunhão, paz e amizade entre os funkeiros, sob a real ameaça de os bailes funk