Devoções e Crenças Luso-Açorianas
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Devoções e Crenças Luso-Açorianas - Telmo Pedro Vieira
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS
À memória dos meus avós, Ana e João Vieira, Fermínia e Martinho da Cunha, e aos meus queridos amigos Maria e Manoel de Brito, avós da minha companheira, descendentes de açorianos que viveram e mantiveram a cultura religiosa de base açoriana.
A todos os emigrantes açorianos que fizeram desta terra (Santa Catarina – Brasil), uma terra de sonhos e de realizações.
Este livro é fruto da minha gratidão aos açorianistas que buscam e buscaram perpetuar a herança luso-açoriana, entre eles os professores Vilson Farias, Peninha, Sergio Luiz Ferreira, Nereu do Vale Pereira, Lélia Pereira da Silva Nunes e Walter Piazza
(in memoriam).
Não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião nem magia.
Bronislaw Malinowski
PREFÁCIO
Eu acabara de pousar na aerogare das Lajes, na Ilha Terceira, Açores, quando recebi mensagem do professor Dr. Telmo Pedro Vieira convidando-me para escrever este prefácio. Fiquei muito lisonjeado com o convite e já quis começar a ler os originais. Ao chegar à Ilha do Faial, contei ao Dr. Paulo Teves, diretor regional das Comunidades, que eu tinha essa incumbência. Ele prontamente mandou imprimir e encadernar Devoções e crenças luso-açorianas
para que eu pudesse ler com mais conforto. A leitura foi realizada nas ilhas do Faial, Terceira e Graciosa.
A obra tem um caráter didático bastante importante. Não se poderia esperar resultado diferente em virtude dos anos que o professor Telmo Pedro Vieira dedica ao magistério. O leitor tem em mãos uma obra que há de se tornar referência nos estudos sobre religião e religiosidade em Santa Catarina, sobretudo em seu litoral. As heranças deixadas pelos açorianos que chegaram à Santa Catarina entre 1748 e 1754 ainda são muito visíveis e vivenciadas com muito entusiasmo pelas gerações de seus descendentes espalhados pelo litoral de Santa Catarina.
O professor Telmo teve contato com personagens que vivenciam no seu dia a dia essa religiosidade tão rica e tão significativa. Registrar esses testemunhos é um grande serviço que o pesquisador presta à humanidade. Esse retrato tão sucinto e tão bem feito é um legado para que as futuras gerações conheçam suas raízes e entendam as idiossincrasias desse povo singular que habita o litoral de Santa Catarina há mais de 270 anos. Praticamente todas as manifestações religiosas praticadas pelos descendentes de açorianos em Santa Catarina estão explicadas e analisadas nesta obra. Tenha certeza, leitor, de que aqui está uma obra que alcança o objetivo a que se propôs.
Os açorianos e os africanos foram numericamente as etnias mais importantes para a formação da gente do litoral de Santa Catarina. As heranças deixadas por esses povos ainda estão muito presentes em nosso meio. Embora tenha virado moda, entre alguns acadêmicos nos últimos tempos, dizer que a identidade açoriana é uma invenção recente, a presente obra proclama o contrário. Ela demonstra-nos o lastro dessa identidade preservada há quase três séculos em Santa Catarina.
Obrigado, professor Telmo, por nos brindar com esta obra! Bem haja!
Ilha Graciosa, Arquipélago dos Açores, Portugal, 17 de dezembro de 2018.
Sérgio Luiz Ferreira
Professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, presidente da Casa dos Açores de Santa Catarina.
APRESENTAÇÃO
O presente livro, fruto de um capítulo da tese A transformação da cultura de base açoriana catarinense através do desenvolvimento da pesca e do turismo – Um estudo antropológico
, defendida no ano de 2008, no Programa de Doutorado Ibero-americano em Antropologia de Ibero-América, junto ao Departamento de Sociologia da Universidade de Salamanca, Espanha, busca mostrar os resultados de uma das muitas frentes de colonização europeia que aconteceram no Brasil em mais de 500 anos de história. Focaliza, mais especificamente, a colonização açoriana do século XVIII, no litoral catarinense, e suas expressões de religiosidade que marcam até hoje a vida dos seus descendentes.
A dinâmica sociocultural, religiosa e demográfica do açoriano contribuiu de forma decisiva para a feição dos padrões socioculturais da região litorânea de Santa Catarina. Esses padrões definiram-se ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX e seus frutos são, hoje, percebidos dentre um contingente de mais de 1.000.000 de habitantes, distribuídos pelos 45 municípios que compõem o que se define como uma área cultural, isto é, uma área geográfica onde se encontram características, traços, estilos e valores sociais semelhantes.
No plano de investigação para elaboração deste livro, exercitamos a etnografia no sentido pleno do termo, principalmente no que concerne à vivência intensiva nos contextos, transformando a aproximação feita com os grupos pesquisados em experiências criadoras para um trabalho interpretativo.
Este estudo foi construído a partir de um recorte teórico e da escolha de determinadas técnicas de campo que podem legitimar o fazer antropológico. Mas foi por meio de uma vivência que extrapola o sentido da observação participante que construímos boa parte desta pesquisa. Um olhar que circula por vários lugares e participa na construção de sentidos.
O presente estudo teve início em 2007, com uma imersão nas comunidades de base açoriana, utilizando a etnografia como método de trabalho de campo, mas também apoiou-se em uma pesquisa de registros históricos e no mapeamento cultural realizado pelo Núcleo de Estudos Açorianos – NEA/ Ufsc, em que colhemos depoimentos, observamos rituais, participamos de cerimônias e de festas, documentando, mediante imagens fotográficas, vídeos e diários, o dia a dia das comunidades que receberam os imigrantes vindos dos Açores.
O objetivo não foi mostrar uma continuidade cultural entre o arquipélago português e o litoral de Santa Catarina, mas destacar a contribuição das visões de mundo açorianas no desenvolvimento religioso catarinense. Para tanto, foi preciso que nos apoiássemos num arcabouço teórico que nos permitisse pensar nessa diáspora como constituidora de uma nova cultura e não como desagregadora dos valores e visões de mundo dos habitantes dos Açores do século XVIII. Com base na teoria interpretativa da cultura de Clifford Geertz¹, procuramos mostrar a cultura como uma teia de significados
tecida pelos homens na vida em sociedade.
Assim, trazemos, no primeiro capítulo, um embasamento teórico sobre religião, religiosidade popular e piedade popular, com o objetivo de levar o leitor a compreender as diferenças entre essas manifestações populares.
No segundo capítulo, refletimos sobre ritos e rituais à luz da antropologia e da sociologia da religião, com o objetivo de favorecer uma maior compreensão das manifestações simbólicas que nos aproximam do sagrado.
No terceiro capítulo, que tem como título Expressões históricas da cultura religiosa de base açoriana no litoral catarinense – um estudo etnocultural
, buscamos, a partir da etno-história, apresentar um rápido flash sobre a colonização açoriana, a formação de um estado multiétnico e o novo conceito de cultura de base açoriana
. Descrevemos também os cultos e as festas aos santos, o ritual de pagamentos de promessas, os rituais fúnebres, os mitos, as lendas e superstições, discorrendo um pouco sobre o rico imaginário açoriano, e ressaltando a influência do pesquisador e folclorista Franklin Cascaes na preservação dessas memórias, com suas bruxas, lobisomens e boitatás. Concluímos o capítulo apresentando a medicina popular, com suas benzeduras e as crendices do mau olhado.
No capítulo seguinte, dedicamo-nos a fazer um estudo pontual das manifestações públicas de fé no Senhor Jesus dos Passos, que ocorrem todos os anos, na semana que antecede a Semana Santa, em Florianópolis/SC, realizando uma etnografia religiosa dos ritos e rituais litúrgicos e das manifestações profanas.
No último capítulo, apresentamos uma análise etnocultural das festas ao Divino Espírito Santo, que ocorrem em dezenas de comunidades do litoral catarinense.
Como conclusão da obra, apresentamos uma reflexão sobre a fé católica e o ethos local.
Terminamos o estudo com um pequeno glossário de termos linguísticos utilizados nas comunidades de base açoriana do litoral.
Neste livro, optamos por manter as falas e escritas colhidas no campo de pesquisa, jutos aos entrevistados, resguardando, assim, a particularidade do jeito de falar e de escrever dos descendentes dos colonizadores açorianos. Ao citar obras de outros estudiosos, pesquisadores da cultura de base açoriana, mantivemos suas linhas de estudo e preservamos a literalidade do que disseram. As entrevistas foram referenciadas somente com as inicias dos nomes dos entrevistados, preservando, assim, o seu anonimato, somente as localidades e o ano da entrevista foram apresentados.
Concluindo este projeto, resta-nos deixar uma palavra de agradecimento a todos os que ajudaram na elaboração deste livro, de forma especial, ao professor José Alvin (Mano Alvim), por ceder suas obras artísticas – desenhos para ilustrar o livro –, ao fotógrafo José Valdonir Corrêa, que, juntos, fotografamos durante os últimos anos os rituais da Procissão do Senhor Jesus dos Passos de Florianópolis, e a Elizabeth de S. Neckel e Laura Alves Bohmann, que transcreveram as entrevistas e pesquisas, como também aos estudiosos e acadêmicos que dedicaram e dedicam suas vidas ao estudo das manifestações culturais de base açoriana.
Sumário
INTRODUÇÃO 21
1
RELIGIÃO, RELIGIOSIDADE POPULAR E PIEDADE POPULAR 25
2
RITOS, RITUAIS E SUAS BASES ANTROPOLÓGICAS 33
3
EXPRESSÕES HISTÓRICAS DA CULTURA RELIGIOSA DE BASE LUSO-AÇORIANA NO LITORAL CATARINENSE – UM ESTUDO ETNOCULTURAL 37
3.1 FLASH DA EPOPEIA AÇÓRICO – MADEIRENSE 37
3.1.1 Núcleos originais: 1748 –1754 38
3.1.2 Núcleos secundários: 1754 -1880 39
3.1.3 Núcleos terciários: 1880 aos dias atuais 40
3.2 SANTA CATARINA - UM ESTADO MULTIÉTNICO 41
3.3 CULTURA LUSÓFONA CATARINENSE DE BASE AÇORIANA – UM NOVO CONCEITO 42
3.4 CULTOS E FESTAS AOS SANTOS 44
3.4.1 Procissão dos Passos 45
3.4.2 Festa de Nossa Senhora dos Navegantes 45
3.4.3 Festa de São Pedro 46
3.4.4 Festas do Divino Espírito Santo 47
3.4.5 Outras festas de devoção a santos 48
3.4.6 Terno de Reis 48
3.5 PAGAMENTO DE PROMESSAS 49
3.6 RITUAIS FÚNEBRES 50
3.6.1 Coberta d’alma 52
3.6.2 Natal das almas do purgatório e almas penadas 54
3.6.3 Finados 56
3.6.4 Pão por Deus – lá e cá 57
3.7 MITOS, LENDAS, CRENDICES E SUPERSTIÇÕES 60
3.7.1 Conceito e distinção entre bruxaria, magia e feitiçaria 60
3.7.2 As bruxas no universo mágico de Franklin Cascaes 63
3.7.3 As cruzes de Franklin Cascaes 63
3.7.4 Bruxas, lobisomens, boitatás e mulas sem cabeça – suas referências históricas e sua presença no imaginário dos moradores do litoral/SC 68
3.7.4.1 Bruxas 68
3.7.4.2 Lobisomens 74
3.7.4.3 Boitatás 77
3.7.4.4 Mulas-sem-cabeça 79
3.8 CRENDICES: MAU-OLHADO, QUEBRANTOS E FEITIÇARIAS 81
3.9 BENZEDURAS E MEDICINA POPULAR – RITUAIS PRATICADOS NO LITORAL DE SANTA CATARINA 83
3.9.1 Benzeduras mais praticadas no litoral catarinense 88
3.9.2 Quadro com oração de benzedura e suas variações linguísticas ٩١
4
PRIMEIRO RECORTE – ESTUDO DE CASO: SENHOR DOS PASSOS – DAS ORIGENS AOS DIAS ATUAIS: UMA MANIFESTAÇÃO PÚBLICA
DE FÉ 95
4.1 AS IRMANDADES EM PORTUGAL (AÇORES) E NO BRASIL 96
4.2 A PROCISSÃO 102
4.2.1 O Gênese das procissões ١٠٢
4.2.2 As bases bíblicas para as procissões 104
4.2.3 A origem da Procissão do Senhor dos Passos 106
4.2.4 As procissões no Brasil 109
4.3 AS IMAGENS 110
4.3.1 A chegada da imagem – uma saga de fé 110
4.3.2 A imagem do Senhor Jesus dos Passos 112
4.3.3 A imagem de Nossa Senhora das Dores 113
4.3.4 O cuidado com as imagens 115
4.3.4.1 O cabeleireiro – devoção e cuidado 116
5.3.4.2 A estilista – fé e delicadeza 117
4.4 RITUAIS 118
4.4.1 A lavação da imagem 118
4.4.2 Procissão do carregador 119
4.4.3 Procissão do translado das imagens 119
4.4.4 A dor de Verônica e de Cristo 121
4.4.5 Procissão do encontro – procissão principal 123
4.4.6 O encontro 125
4.4.7 Trajetos das procissões (sábado e domingo) 126
4.4.7.1 Trajeto de sábado 127
4.4.7.2 Trajeto de domingo 127
4.4.8 Programação das atividades religiosas da Procissão do Senhor dos Passos no ano de 2018 128
4.5 OS DEVOTOS E AS GRAÇAS ALCANÇADAS
129
4.6 O OLHAR DO CRONISTA ILHÉU 131
4.6.1 Primeira crônica – Visita a Dos Passos
131
5.6.2 Segunda crônica – Rosários e alfaias
133
4.7 PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO 135
5
SEGUNDO RECORTE – UMA ANÁLISE ETNOCULTURAL:
DIVINO ESPÍRITO SANTO: FESTA, DEVOÇÃO E CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE 139
5.1 A ORIGEM 139
5.2 A PRESENÇA NO LITORAL CATARINENSE 144
5.3 UM RITUAL QUE ENVOLVE O PROFANO E O SAGRADO 146
5.4 FESTA, TURISMO E CULTURA BRASILEIRA 150
5.5 PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DE SANTA CATARINA 154
6
FÉ CATÓLICA E O ETHOS LOCAL 157
GLOSSÁRIO DAS EXPRESSÕES LINGUÍSTICAS DE BASE
LUSO-AÇORIANA 159