Helena de Eurípides e seu duplo
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Helena de Eurípides e seu duplo - Trajano Vieira
Críticos
HELENA E SEU DUPLO
Imaginemos um escritor de ficção científica, habitante da maior potência econômica e militar de seu tempo. Estamos em março de um ano ensolarado, meses depois de um outono extremamente difícil para seu país, em guerra há dezenove anos contra um inimigo cada vez mais ameaçador. Há pouco mais de um ano, o adversário ergueu um forte a apenas vinte e dois quilômetros de sua pátria. Um quarto dos homens aptos a servir o exército perdeu a vida numa batalha naval sem precedentes. Impossível não recordar com temor a pena brutal que sua própria cidade impusera à outra, três anos antes, quando determinou que todos os homens ali fossem mortos, e as mulheres e crianças fossem vendidas como escravas. É nesse ambiente que o escritor concebe seu enredo, que tem como ponto de partida o resgate da mulher de um general, não muito dotado intelectualmente, sem maior brilho no campo de batalha, mas exemplo de militar eficiente e honrado, irmão do líder do enorme contingente de países empenhados na recuperação da esposa sedutora. Não se sabe ao certo até que ponto essa mulher de beleza ímpar deixara-se levar por um jovem de igual encanto, membro da mais nobre família do país assediado. De qualquer modo, a guerra chegara ao fim depois de dez anos. Junto de sua mulher, o general navega há sete anos pelo mar revolto, ansiando aportar na cidade natal. Apesar dos contratempos no oceano cinza, convive com ela, satisfeito, imagina-se, com o reencontro tão sonhado. Provavelmente, o casal recorda episódios do passado e faz projetos para o futuro, que incluem o casamento da filha. O charme daquela mulher permanecera inalterado.
A brusca tempestade reduz a embarcação a um monte de destroços, de que se salvam ele, a mulher e uns poucos companheiros. Agarrados aos restos do navio, chegam a um país desconhecido. O general deixa a esposa aos cuidados dos companheiros numa caverna e sai à procura de ajuda. Chega a um palácio, diante do qual há um mausoléu. Depara-se com uma mulher que logo o reconhece e corre para seus braços, afirmando ser sua esposa. É idêntica à outra que ele instalara há pouco na gruta. Apesar da semelhança, o homem a rechaça, mesmo quando ela profere seu nome: Helena. Ele pergunta-se ensimesmado se é possível que um mesmo nome designe duas pessoas idênticas. É possível que dois deuses, em países diferentes, recebam o mesmo nome de Zeus? Perdido na divagação, resolve partir, abandonando aquela que, a seus olhos, parecia ser a réplica perfeita da esposa verdadeira. Teria retornado aos braços da outra, alojada na caverna, quem sabe para reatar a conversa sobre as núpcias de sua filha Hermíone, não fosse a chegada de um companheiro afoito, que lança palavras duras contra Helena: Filha de Leda, quer dizer que aqui estavas?
E esclarece: pouco antes, a mulher pela qual haviam lutado dez anos deixara o refúgio, subira ao céu, não sem antes dizer: Imagináveis que Páris tinha quem não teve nunca: Helena
. Só então o general acolhe a verdadeira esposa, aceitando a versão que ela lhe contara: um simulacro seu fora concebido por Hera, sequestrado por Páris e mantido em Troia por dez anos. A esposa de Zeus plasmara outra Helena usando como matéria-prima parte do céu, que recortara.
Não me arriscaria a cometer a paráfrase da extraordinária peça de Eurípides, plena de ironia e sutileza, com aspectos romanescos e cômicos que têm dificultado sua classificação por parte dos especialistas. Se é possível considerá-la tragédia, devemos fazê-lo com certo cuidado. Dois argumentos principais têm sido apresentados pelos comentadores: ou os aspectos que consideramos típicos da tragédia foram definidos num período relativamente tardio por Aristóteles ou Eurípides foge ao padrão da tragédia, experimentando a fusão de gêneros. Os dois pontos de vista são defensáveis, embora me agrade mais o segundo, lembrando inclusive a longa paródia que Aristófanes apresentou desse drama de Eurípides, um ano depois de sua encenação, nas Tesmoforiantes, em que se refere à nova Helena
.
O adjetivo pode suscitar interpretações diferentes (nova
em que sentido, se Estesícoro já escrevera, segundo Platão, que a verdadeira Helena jamais desembarcara em Troia; se Heródoto afirmou ter ouvido de uma sacerdotisa no Egito que Helena permanecera naquele país durante a famosa guerra?), mas destacaria outro ponto, mais especificamente o termo que, em grego, designa a outra Helena: eidolon, traduzido imprecisamente por fantasma
. Um rápido exame no verbete do dicionário etimológico de Chantraine esclarece sua ligação com eidos, uma das palavras que protagonizam o discurso filosófico do século V em Atenas: aspecto, forma
. Eurípides foi o único poeta a empregar outro vocábulo, que se associa a eidolon, recorrente em Platão: mímema (versos 74 e 875), cujo significado, no contexto do drama, é reprodução exata
, réplica
, cópia
. A outra Helena não deve ser considerada um fantasma
, como comumente é apresentada, como se fosse uma imagem inconsistente e fugaz. A outra Helena confunde-se com a verdadeira, é seu simulacro perfeito, tanto que Menelau convive com ela durante sete anos no mar, (re)conhece aspectos de sua intimidade (é de se supor), sem suspeitar de sua falsa identidade; tanto que a verdadeira – ou, talvez fosse prudente dizer, a derradeira – responsabiliza-se pelas mortes provocadas por ela mesma em Troia, ao falar da outra.
Eurípides duplica a personagem, constitui um simulacro, com o intuito de sugerir que não passa de ilusão o universo em que estamos imersos (antecipação de Borges?), que é impossível distinguir o original da cópia. Não é difícil entrever nessa construção cênica um gesto metateatral, uma reflexão sobre a própria natureza da representação no palco, que reproduz (em que medida?) algo que transcende o espaço ocupado por personagens com suas máscaras.
O recurso de construção do teatro dentro do teatro fica claro no episódio final da fuga do Egito. A passagem surpreende, pois parece que estamos diante da outra Helena, da astuciosa e ambígua personagem que esteve em Troia, do simulacro. Até então o leitor acostumara-se com uma figura recatada, recolhida ao mausoléu de Proteu, avessa às investidas de Teoclimeno, filho do rei virtuoso. Pois bem, depois do reencontro com Menelau, Helena concebe o plano de fuga e encena uma situação diante do novo basileu para justificar o uso da embarcação: apresenta-lhe Menelau como mensageiro da morte de seu marido. Como ela, Menelau parece ser quem não é ou não parece ser quem de fato é. Como um dramaturgo que manipula o comportamento das personagens, Helena assegura que se casará com Teoclimeno, depois de realizada a cerimônia fúnebre no mar, antigo costume grego, conforme alega. Observo, de passagem, que a atitude de Teoclimeno não guarda semelhança com a que anteriormente lhe foi atribuída: estamos diante de uma personagem razoável, cordata e piedosa. O episódio revela a similitude entre as duas Helenas, diante de um marido silencioso que, como em Troia e em Esparta (recorde-se, no livro 4 da Odisseia, a lerdeza de Menelau no reconhecimento do recém-chegado Telêmaco e na interpretação do voo da ave; em ambas as situações, Helena o antecede), ocupa posição secundária. Mais surpreendente ainda é o que ocorre a seguir, quando a embarcação com Helena, Menelau e seus sócios, além da tripulação enviada pelo rei, já navega pelo mar. A certa altura, é a própria Helena que ergue a voz para encorajar os companheiros de Menelau a dizimarem os marujos egípcios. Seu perfil voluntarioso destoa do comportamento recatado manifestado anteriormente. Mas o mais relevante são suas palavras impetuosas. Ora, melhor do que ninguém, Helena sabe que os gregos lutaram em vão em Troia, por um simulacro. Se a guerra, ao final, não atinge seu objetivo, se ela se revela inútil, a aura de grandeza se perde. O resgate de um simulacro lança uma luz diferente sobre os dez anos de conflito em Ílion. Esse desfecho frustrante esmaece o brilho heroico. Uma coisa é o herói lutar para que a poesia do futuro eternize sua atuação gloriosa, outra é o herói lutar por algo que, no final, se evidencia como ilusão. O que os poetas irão cantar a não ser que, apesar do empenho, heróis guerrearam por dez anos e perderam inúmeros companheiros pela conquista de uma quimera? Nesse caso, poderíamos até continuar admirando a bravura de Aquiles, mas seria difícil não avaliar a inutilidade de seu ímpeto, já que o desenlace mostraria sua face desdenhosa e implacável. É possível entrever em Helena a sugestão de que é necessário olhar com outros olhos o patrimônio do repertório épico, mantido durante séculos como parâmetro de conduta na Grécia.
Mas retomemos o trecho em questão, referente à cerimônia simulada no mar. Não estranhamos