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Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000)
Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000)
Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000)
E-book423 páginas4 horas

Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000)

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Sobre este e-book

Este livro busca refletir sobre a experiência migratória de mulheres nordestinas que se deslocaram para a cidade de Boa Vista, Roraima, entre os anos de 1985 e 2000. Questiona as tensões no lugar de origem ou referência que contribuíram para as saídas; quais as características dessas mulheres; em que medida as mudanças relacionadas ao papel feminino, na segunda metade do século XX, colaboraram para esse processo e até que ponto as questões de gênero favoreceram a iniciativa da partida; que tipos de rede se constituíram entre o Nordeste e o Norte; bem como a chegada e inserção na capital roraimense. Também indaga sobre os significados da experiência migratória; e quais mudanças marcaram a vida dessas mulheres diante dos desafios e possibilidades da vida no extremo norte da Amazônia. Para tanto, toma como principal fonte a história oral. Realizou-se um total de 16 entrevistas temáticas semiestruturadas em forma de roteiro flexível. Além dessa fonte, também são utilizados jornais, periódicos locais, catálogos e uma documentação variada, incluindo músicas da época estudada, no sentido de captar permanências e mudanças relacionadas às questões de identidade. Busca, por fim, questionar certas temáticas como o deslocamento, o cotidiano e as relações de gênero, procurando na história dessas mulheres como cada uma desenhou suas experiências migratórias e construiu sua narrativa em meio a uma pluralidade de papéis e como, enquanto sujeito histórico, cada uma entrou em cena tocada pelos desafios contemporâneos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de fev. de 2020
ISBN9788593955631
Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000)

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    Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades - Raimunda Gomes da Silva

    Raimunda Gomes da Silva

    Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades:

    experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000)

    São Paulo

    e-Manuscrito

    2020

    PREFÁCIO

    Mulheres em movimento - rumo ao Norte do país:

    sonhos, desafios e identidades

    Eu sou aquela mulher

    a quem o tempo muito ensinou.

    Ensinou a amar a vida.

    Não desistir da luta.

    Recomeçar na derrota.

    Renunciar a palavras e pensamentos negativos.

    Acreditar nos valores humanos.

    Ser otimista.

    Creio numa força imanente que vai ligando a família humana numa corrente luminosa de fraternidade universal.

    Creio na solidariedade humana.

    Creio na superação dos erros e angústias do presente.

    Acredito nos moços.

    Exalto sua confiança, generosidade e idealismo.

    Creio nos milagres da ciência e na descoberta de uma profilaxia futura dos erros e violências do presente.

    Aprendi que mais vale lutar do que recolher dinheiro fácil.

    Antes acreditar do que duvidar.

    (Ofertas de Aninha, Cora Coralina)

    Como apontado nos versos de Cora Coralina, esta obra recobra trajetórias de mulheres a quem o tempo muito ensinou... a amar a vida, a não desistir, a recomeçar, acreditar nos sonhos, a enfrentar desafios e a buscar novas possibilidades.  

    Com o desejo muito próprio dos historiadores de estabelecer pontes entre passado e presente, Raimunda Gomes da Silva compôs seu livro Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista/Roraima (1985 - 2000). Neste enfrenta o desafio de recuperar o protagonismo feminino, discutindo o ocultamento das mulheres nordestinas que se deslocaram para Roraima nas décadas finais do século XX. 

    Fundamentada na tese de doutorado defendida com brilhantismo na PUC/SP, a obra revela uma pesquisadora incansável e meticulosa. As principais fontes desta investigação foram entrevistas elaboradas criteriosamente através da metodologia da história oral. As mulheres entrevistadas partilharam com a autora suas memórias dos lugares de origem, do processo de deslocamento, a chegada e inserção na cidade de Boa Vista, as vivências de gênero e os significados das experiências migratórias. Somam-se a essas fontes um mosaico documental (jornais e periódicos locais, catálogos e iconografias) e uma ampla bibliografia, com os quais a autora dialoga criticamente, resultando numa interpretação plena de significados e muito construtiva para os estudos da temática.

    Visitando o passado recente sob a perspectiva da história e gênero, a autora analisa de forma crítica e inovadora os deslocamentos femininos, recobrando trajetórias de vida, estratégias de ação, exercícios de participação, arranjos e rearranjos, desvendando práticas, recompondo ocultamentos e questionando perspectivas.

    Destaco que o livro traz uma abordagem inédita ao recobrar as experiências de mulheres nordestinas que se deslocaram sozinhas para a cidade de Boa Vista/Roraima. A análise possibilitou descortinar trajetórias e lutas políticas, em particular em relação às questões de gênero e às experiências migratórias. A obra inicia contextualizando a sociedade de acolhimento - a cidade de Boa Vista. Na sequência, partindo das narrativas femininas, recupera o protagonismo feminino, as partidas, as redes estabelecidas, o processo de apropriação dos territórios urbanos, as configurações e reconfigurações das relações cotidianas e de trabalho, priorizando o processo de construção e reconstrução das identidades de gênero. 

    A obra revela uma exímia conhecedora do seu ofício, que desvelou segredos encobertos por evidências inexploradas e silêncios impostos, trazendo contribuições significativas para difundir criticamente relações e tensões cotidianas e dar visibilidade ao protagonismo feminino. Dessa forma, restabeleceu personagens, remontou cenários, recompôs práticas, discursos, ações e gestos, descobrindo o inesperado, trazendo à tona o que até então estava submerso (ocultado) no passado, ao produzir uma análise que não se caracteriza por uma descrença no presente e pela falta de perspectivas futuras, preocupando-se com as relações/tensões da contemporaneidade e vislumbrando possibilidades de mudança.

    Entre outras virtudes, o texto proporciona uma leitura envolvente, fundamentada na extensa investigação e na erudição da escritora, que usou toda a sua sensibilidade de pesquisadora e narradora. Recomendaria ao leitor deixar-se levar por estes escritos, tendo a autora como uma guia no desafio de descobrir os segredos, sonhos e lutas dessas mulheres que foram abrir as fronteiras nortes do país.

    Boa leitura!

    Maria Izilda S. Matos 

    SP, 2020

    À memória de:

    Francisco Gomes da Silva, o meu querido e amado pai.

    AGRADECIMENTOS

    Ao Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, pela forma carinhosa como fui acolhida ao longo do desenvolvimento deste estudo, elaborado a partir da tese produzida durante o Doutorado nessa instituição, pelo quadro de docentes, pelo capital de conhecimento e pelos outros olhares proporcionados. Em especial à querida orientadora Professora Maria Izilda, agradeço pela oportunidade dos encontros ricos de discussão, por outras possibilidades de leitura, pelo apoio e compreensão dos bons e desafiadores momentos de construção desta pesquisa. Vivência que também me ensinou outras qualidades de ser professora/pesquisadora.

    Agradeço pelas observações e contribuições aos(às) professores(as) que gentilmente aceitaram participar das bancas examinadoras, ocupando seu valioso tempo com a leitura do trabalho.

    Expresso o meu agradecimento à CAPES, por me conceder bolsa durante os quatro anos do Doutorado. Apoio que permitiu me dedicar mais à pesquisa, morar com mais tranquilidade em São Paulo.

    À Universidade Estadual de Roraima, pelo apoio institucional, ao me conceder afastamento para estudar em São Paulo. Aos(Às) colegas do Colegiado de História o meu carinhoso agradecimento pelo incentivo e compreensão em todos os momentos que precisei. Aos(Às) alunos(as) do Curso de História, especialmente às alunas que digitalizaram entrevistas.

    À Secretaria de Estado de  Educação  e Desportos (SECD - Roraima), que concedeu liberação todas as vezes que precisei me afastar para estudar. Também agradeço o apoio e carinho de todas(os) os(as) colegas das repartições ligadas à SECD em que trabalhei (EJA - Educação de Jovens e Adultos, UNIVIR - Universidade Virtual de Roraima, CEFORR - Centro Estadual de Formação dos Profissionais da Educação de Roraima).

    Às mulheres que de boa vontade compartilharam suas experiências de vida nesta pesquisa: Antonia, Ana Lúcia, Déborah, Evilene, Goretti, Célia, Lúcia Taveira, Elenira, Lena, Maria Helena, Maria Maria, Raimunda dos Anjos, Raimunda Mendes, Regina, Roseli, Zilma. E a outros personagens que contribuíram para esta pesquisa, como Aparecida, Raimundo Nonato e Francisca Marques, o meu agradecimento especial por concederem um pouco do seu tempo precioso para contar suas experiências migratórias, pelos ricos momentos de aprendizagem, além da solidariedade, do diálogo descontraído.

    Agradeço às instituições onde pesquisei: a Casa da Cultura, especialmente Meire Saraiva Lima, pelo carinhoso atendimento; a Biblioteca da PUC-SP, pelo agradável período de pesquisa entre 2011 e 2012; a Biblioteca do Estado de Roraima; a Biblioteca da UFRR; o Núcleo de Documentação Histórica de Roraima (NUDOCHIS). Também ao R. C. Caleffi, fotógrafo da UFRR, que gentilmente abriu o arquivo de fotos dessa instituição. A todos muito obrigada.

    À minha família, deixo meus agradecimentos aos meus pais, que possibilitaram os meus estudos, incentivaram-me a lutar pelos meus sonhos, assim como deram a referência de um pai além do seu tempo e de uma mãe autêntica, a exemplo das mães da maioria das entrevistadas desta pesquisa.

    Um agradecimento especial ao Nonato, meu esposo, companheiro, amigo de sonho e luta, pelo apoio e ajuda incondicional em todos os momentos deste estudo, e à Laís, minha querida sobrinha e afilhada, pela paciência e pela grande ajuda na digitalização das entrevistas e outras contribuições para esta pesquisa. Ao Sérgio, meu mano, pelo apoio, pois mesmo longe sempre foi muito solidário. E a todos(as) os(as) meus(minhas) irmãos(ãs) e cunhados(as) pela compreensão pelas várias ausências em função da pesquisa. Ao Gustavo e sua equipe pelo valioso trabalho de revisão e formatação do estudo. E outras amigas queridas, como Carla, Maria Luiza e as companheiras do NUMUR, obrigada pelo apoio.

    E, finalmente, a todos(as) que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desta pesquisa e me apoiaram, principalmente a Deus e aos meus guias espirituais que me iluminaram nesse momento de construção do estudo, o meu muito obrigada.

    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO

    CAPÍTULO I – DESLOCAMENTOS: CIDADE, LUTAS E REPRESENTAÇÕES

    1.1 Fontes: escritas, orais e iconográficas

    1.2 Cidade: deslocamentos e sonhos

    1.3 Nordestinos em Roraima: representações

    1.4 Mulheres em deslocamento: questões e relações

    1.5 Lutas femininas: paridade dos direitos

    CAPÍTULO II – DESLOCAMENTOS: PROTAGONISTAS, SONHOS E SUBJETIVIDADES

    2.1 Mulheres: da invisibilidade ao protagonismo

    2.2 Mulheres: sociedade de partida e deslocamento

    2.3 Mulheres: perfis biográficos

    2.3.1 Primeira geração

    2.3.2 Segunda geração

    2.3.3 Terceira geração

    2.4 Mulheres: redes e recepção

    2.4.1 Relações entre familiares

    2.4.2 Relações entre colegas e amigos: oportunidade de inserção no magistério

    2.4.3 Subjetividade e deslocamento: alternativa para recomeçar

    CAPÍTULO III – DESLOCAMENTOS: CAPITAL CULTURAL, DESAFIOS E POSSIBILIDADES

    3.1 Chegada: impressões e impactos

    3.2 Desafios: magistério como missão

    3.3 Possibilidades: educação superior

    3.4 Espaços profissionais: apropriação e outras inserções

    CAPÍTULO IV – DESLOCAMENTOS: IDENTIDADES, EXPERIÊNCIAS E ESTÉTICAS

    4.1 Mudanças e permanências: sós ou acompanhadas

    4.1.1 As mulheres sozinhas

    4.1.2 Mulheres casadas

    4.2 Identidades: nordestina e gênero

    4.3 Experiências migratórias

    4.4 Estéticas de si

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    FONTES E BIBLIOGRAFIA

    APRESENTAÇÃO

    Ao observar os processos de urbanização e deslocamento da segunda metade do século passado no Brasil, pode-se perceber a feminização dos fluxos, a crescente presença das mulheres no espaço público e nas ações e lutas cotidianas. Enquanto sujeitos históricos ativos, mulheres de diferentes segmentos atuaram nas lutas por políticas públicas específicas para mulheres, na busca por cidadania e por realização profissional e pessoal.

    A Região Amazônica é constituída por uma população majoritariamente masculina, particularmente Roraima, onde as ações de ocupação foram motivadas pelo garimpo, pela coleta da borracha, pecuária, entre outras atividades vinculadas ao masculino. Mesmo em minoria e muitas vezes ocultadas, as mulheres marcaram esse processo e foram atuantes.

    Observando-se a cidade de Boa Vista nas décadas de 1980 e 1990, é possível notar que as mulheres se fizeram presentes colocando em questão a participação no mercado de trabalho, a dupla jornada e a participação política, problematizando as relações de gênero e apresentando alternativas às relações. Também foram ativas em outros movimentos, como os ligados à Igreja Católica, os vinculados aos indígenas, em defesa da cultura, ações sindicais e reivindicações sobre as condições urbanas de vida.

    Assim, as mudanças ocorridas na região e no estado de Roraima, a urbanização, a transformação do estado em Território Federal dinamizaram fluxos de deslocamento de pessoas de diferentes estados, incluindo os sujeitos desta pesquisa: as mulheres nordestinas.

    A proposta desta obra – intitulada Deslocamentos, sonhos, desafios e identidades: experiência de mulheres nordestinas em Boa Vista (1985-2000) – é estudar a experiência migratória de mulheres que se deslocaram sozinhas ou que protagonizaram seu deslocamento para a cidade de Boa Vista, no sentido de verificar que questões suscitaram e contribuíram para a saída do lugar de origem ou referência em direção à capital roraimense. Além de descobrir quem eram essas mulheres; em que medida as mudanças relacionadas ao feminino contribuíram para esse processo; até que ponto as questões de gênero estimularam o deslocamento, a iniciativa de sair do lugar de origem; e, por fim, quais os significados da experiência migratória em Boa Vista e como essa mudança marcou suas vidas.

    A principal fonte desta pesquisa foi construída através da história oral. Dezesseis (16) mulheres foram entrevistadas, a partir da técnica de entrevista temática semiestruturada, em forma de roteiro flexível, composto de cinco aspectos centrais: lembrança do lugar de origem; processo de deslocamento; inserção em Boa Vista; relações de gênero; e significado da experiência migratória. Fora essa fonte, também são utilizados jornais e periódicos locais (Igreja a Caminho, Tribuna de Roraima, jornal Folha de Boa Vista), em particular seções específicas com entrevistas, colunas sobre as mulheres, algumas charges, além de catálogos da Universidade Federal de Roraima e iconografia.

    No manejo de todas as fontes, busca-se fazer leituras sobre o deslocamento, o cotidiano e as relações de gênero. De uma forma ou de outra, as questões de gênero permeiam todas as etapas, buscando-se a história dessas mulheres, como cada uma desenha sua experiência migratória, além da narrativa sobre o ser mulher em meio aos desafios e possibilidades de se viver no Nordeste e em Boa Vista.

    O estudo encontra-se estruturado em quatro capítulos. O primeiro – Deslocamentos: cidade, luta e cotidiano – focaliza Boa Vista como uma cidade plural e dinâmica. Procura revisitar o processo de mudanças e permanências nas relações cotidianas e de gênero nessa cidade, propondo questões sobre a migração nordestina, a presença das mulheres e observando, especificamente, a influência das mulheres nordestinas que se deslocaram sozinhas ou protagonizaram o próprio deslocamento nas duas últimas décadas do século XX.

    Já o segundo capítulo – Deslocamentos: protagonistas, sonhos e subjetividades – trata das subjetividades de gênero e dos deslocamentos das mulheres a partir das narrativas de suas experiências, especialmente daquelas que se deslocaram sozinhas para a cidade de Boa Vista, nas décadas de 1980 e 1990. Busca-se observar em que medida elas protagonizaram o próprio deslocamento; que perfis de mulher se descortinam em suas narrativas; que questões contribuíram para seus deslocamentos; que redes migratórias se configuraram; que sentidos elas teceram em suas narrativas sobre as subjetividades de gênero vividas em seus lugares de origem; e que mudanças elas perseguiam no processo de construção e reconstrução da identidade de gênero. Ou seja, que questões e deslocamentos ocorreram na vida dessas mulheres que se direcionaram para a Amazônia.

    O terceiro capítulo – Deslocamentos: capital cultural, desafios e possibilidades – tem por finalidade observar como se deu o processo de apropriação dos espaços na cidade de Boa Vista pelas migrantes. Pretende, a partir de suas narrativas, identificar diferentes atitudes de apropriação do cotidiano da cidade, da rua, do trabalho e, especialmente, dos espaços alternativos que contribuíram para o desfecho de inserção e também para outras configurações e reconfigurações das relações cotidianas e de gênero na capital roraimense.

    Por fim, no quarto capítulo – Deslocamentos: identidades, experiências e estética – a preocupação é observar como e se foi constituída uma identidade de gênero no processo migratório e na experiência de vida em Boa Vista. Também, em que medida a experiência, envolvendo sofrimento, discriminação ou situações alternativas e vivência em outros lugares, possibilitou a essas mulheres construir certa estética de si. Além disso, até que ponto essas mulheres contribuíram e contribuem para a atualização de valores e códigos étnicos.

    CAPÍTULO I – DESLOCAMENTOS: CIDADE, LUTAS E REPRESENTAÇÕES

    A cidade é como um texto que possibilita várias leituras depende de quem fala e como se apropria do espaço ocupando e conferindo um novo significado; então escrevendo um novo texto. É como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras e frases.

    Raquel Rolnik

    Considerando Boa Vista como uma cidade plural e dinâmica, este trabalho busca revisitar o processo de mudanças e permanências nas relações cotidianas e de gênero nessa cidade, indagando que questões foram configuradas sobre a migração nordestina e o que as mulheres propunham no final do século XX. Busca-se verificar em que medida essas mudanças e permanências faziam parte do cotidiano das mulheres nordestinas em estudo, ou seja, mulheres que se deslocaram sozinhas ou protagonizaram o próprio deslocamento nas duas últimas décadas do século XX.

    Tomam-se como fonte de investigação documentos escritos e iconográficos do jornal Igreja a Caminho, principalmente a página A Mulher na Sociedade; do jornal Tribuna de Roraima, especialmente a coluna Mulher/Mulher; e do jornal Folha de Boa Vista, particularmente as páginas Cidade e Opinião; além de outros autores locais. São fontes que, direta ou indiretamente, suscitaram, no dia a dia da cidade de Boa Vista, questões migratórias, relações cotidianas e de gênero no final do século passado.

    A abordagem de gênero tem como referência Joan Scott, entendendo gênero como uma categoria construída nas relações sociais, baseada na diferença entre os sexos.¹ Trata-se, portanto, de uma categoria relacional entre homens e mulheres, o que significa que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir por meio de um estudo que os considere totalmente separados. Além de ser uma forma primeira de significar as relações de poder, gênero também é um termo dinâmico que faz variar os perfis masculinos e femininos, tanto no tempo como no espaço.

    Nessa perspectiva, estudar gênero não se limita apenas à análise das identidades, mas também das instituições, da política, da família, da economia, considerando ainda suas interlocuções com classe, etnia, raça, geração, assim como o valor simbólico do gênero. Portanto, tais questões estão presentes em todos os espaços que constituem representações de gênero, como um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diferentes formas de interação,² que, por conseguinte, são relações de poder.

    Também se compreende aqui que as fontes fazem parte de um tempo histórico carregado de sentido e relações de poder:

    O passado não nos lega testemunhos neutros e objetivos e que todo documento é suporte de prática social, e por isso, fala de um lugar social e de um determinado tempo, sendo articulado pela/na intencionalidade histórica que o constitui.³

    Nesse sentido, os dados trazidos pela leitura das fontes da imprensa – escrita e iconográfica –, tanto os relacionados à migração nordestina como à questão de gênero, fazem parte das representações de um tempo, de grupos, construídas em espaços de tensões e disputas.

    1.1 FONTES: ESCRITAS, ORAIS E ICONOGRÁFICAS

    O jornal Igreja a Caminho, veículo de formação e informação da Diocese de Roraima, coordenado pela Pastoral de Comunicação,⁴ circulou por dez anos, a partir de 1984. Durante esse o período, o referido pasquim foi além das questões religiosas, atuando principalmente enquanto um periódico de vanguarda, sensível ao debate de diferentes grupos sociais, com destaque para a questão indígena. Todavia, dependendo das discussões do momento nacional, regional e local, o periódico abria espaço para entrevistas de lideranças de diferentes grupos considerados excluídos, como negros, migrantes pobres e mulheres, inclusive com página específica.

    Entre as temáticas específicas, a mulher conquista espaço nesse jornal, ocupando uma página intitulada A Mulher na Sociedade, coluna que circulou regularmente nos anos de 1986 e 1987. A referida página focava temas relacionados à mulher como: a mulher no mercado de trabalho; a dupla jornada; a participação política; a educação diferenciada; a violência contra a mulher; a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres; os perfis de comportamentos de homens e mulheres,⁵ além de acompanhar o debate sobre a mulher na constituinte. Dessa forma, tratava-se de distintos aspectos ligados aos desafios de ser mulher no final do século XX. Questões que nem sempre eram específicas de Roraima, pois faziam parte das mudanças relacionadas à mulher, não só no Brasil, mas em vários outros países.

    Os anos de 1980 foram marcados pela abertura política, momento significativo de articulação de diferentes movimentos sociais, como o das Diretas Já, a movimentação em torno do debate da Constituinte e, principalmente, os movimentos feminista e de mulheres, que tiveram participação significativa nessa mobilização do processo constituinte, com os lemas Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher e Constituinte para valer tem que ter Direitos das mulheres. A campanha foi realizada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher a partir de 1985, fruto de articulação nacional envolvendo os conselhos estaduais e municipais dos direitos das mulheres, incluindo as mais diversas organizações, como trabalhadoras rurais, empregadas domésticas, grupos feministas.

    Outra questão que figurava no contexto nacional era a presença da Teologia da Libertação em diferentes locais do Brasil, especialmente nas comunidades eclesiais de base e em espaços populares, em que a prática de evangelização, baseada no Concílio Vaticano II, proporcionava maior inserção nas questões sociais e políticas. O Concílio encontrava na América Latina o contexto sociopolítico propício para integrar fé, política e transformação social, uma vez que:

    A Teologia da Libertação partiu diretamente dos pobres materiais, das classes oprimidas, dos povos desprezados como os indígenas, negros marginalizados, mulheres submetidas ao machismo, das religiões difamadas e outros portadores de estigmas sociais. Mas logo se deu conta de que pobres-oprimidos possuem muitos rostos e suas opressões são, cada vez, específicas. Não se pode falar de opressão-libertação de forma generalizada. Importa qualificar cada grupo e tomar a sério o tipo de opressão sofrida e sua correspondente libertação ansiada.

    Em Roraima, esse movimento também se fez presente e provocou alguns deslocamentos na prática de evangelização e do ser cristão. Abriu espaço para uma evangelização mais sintonizada com a realidade dos excluídos, em um momento em que a cidade de Boa Vista passava por um intenso crescimento migratório, de forma desordenada, motivado por vários aspectos: garimpos, assentamentos agrícolas, restruturação do quadro de funcionários públicos... Pois se trata do período de mudança de Território Federal de Roraima para estado de Roraima, fase de possibilidades de trabalho e conquista de novos espaços, em especial para as mulheres – questões observadas nos relatos das migrantes nordestinas entrevistadas nesta pesquisa.

    Desse modo, o cenário revisitado através das fontes selecionadas registrava algumas presenças: um movimento da Igreja Católica ligado à Teologia da Libertação; o debate na mídia pautando as lutas do feminismo; os movimentos indígenas. Tudo isso localizado numa cidade com uma população composta por diferentes migrantes, ou seja, num espaço de múltiplos sujeitos que configurava mudanças para além das estruturas políticas, com destaque para aquelas relacionadas às relações de poder, à alteridade, ao processo de formação de outros sujeitos protagonistas de seus espaços. Nessa perspectiva, a respeito do novo perfil da mulher,

    [...] não se tratava apenas de estratégias para consolidar as alterações conquistadas e proporcionar novas conquistas, mas de criar o espaço político propício para a consolidação de um novo modelo de sociedade. Para isso, seria preciso ampliar os debates, forçando modificação de leis necessárias ao surgimento de outro cenário social favorável a mudanças, o que o distanciava cada vez mais do modelo de sociedades tradicionais.

    Nesse contexto, identifica-se o jornal Igreja a Caminho como veículo de construção de um discurso em busca de uma sociedade mais justa, em que fé e participação política se interlaçam na ideia de transformação, de um mundo melhor.

    Outro órgão da imprensa era o jornal Tribuna de Roraima, veículo de comunicação criado na segunda metade da década de 1980, pertencente ao grupo empresarial Elson Rodrigues e Péricles Perrucci. Esse periódico começou circulando semanalmente (a partir de 1986)⁹, e a sua página 2 era um espaço independente em que colaboradores(as) exploravam uma variedade de temas, em que profissionais liberais, conservadores e radicais defendiam seus interesses, fosse numa perspectiva normativa ou numa visão crítica.

    Entre esses profissionais encontrava-se a militante feminista que se identificava como Advogada e funcionária pública na assinatura de sua coluna, intitulada Mulher/Mulher. Nesse espaço ela abordava reflexões sobre a condição da mulher e seus novos desafios na cidade de Boa Vista, em sintonia com as discussões nacionais, como a questão da mulher na Constituinte, tendo como principal referencial o movimento feminista.¹⁰

    Essa coluna foi contemporânea da página A Mulher na Sociedade do jornal Igreja a Caminho, que circulou também entre os anos de 1986 e 1987. Portanto, trata-se de duas colunas de princípios e concepções distintos em que ora o debate sobre a mulher as aproxima, ora as opõe. São, assim, duas visões que podem registrar diferentes inquietações relacionadas à mulher na cidade de Boa Vista.

    Também se pode revisitar o cotidiano da cidade por meio do jornal Folha de Boa Vista¹¹, periódico de maior tempo de circulação em Roraima. Nesse jornal as seções

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