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"Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão"
"Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão"
"Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão"
E-book192 páginas2 horas

"Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão"

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Sobre este e-book

Em "Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão..." promove leituras e interpretações do cancioneiro caboclo, analisando a constituição de sujeitos e representações do sertão. Percorreu o contexto e a cultura a partir do cenário em que Tonico e Tinoco conceberam as letras de suas canções. A base teórica passa pelas obras e reflexões de Michel de Certeau, Michel Foucault, com alguma ancoragem em Sigmund Freud. Também adentramos a história do mercado fonográfico, do rádio e da televisão, que consideramos como espaços aproveitados pelos compositores para falar dos sonhos de melhores condições de vida e do êxodo rural ocorridos no Brasil da segunda metade do século XX.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jan. de 2020
ISBN9788546220182
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    "Este é o Brasil caboclo, este é o meu sertão" - Anderson Teixeira Renzcherchen

    Grossa

    INTRODUÇÃO

    As letras musicais, assim como qualquer outro tipo de texto, podem ser estudadas como evidências da constituição de sujeitos, mas, também, como fontes para se perceber os atos de consumo da produção elaborada pela cultura dominante, reaproveitamento que se faz no âmbito do cotidiano. As músicas sertanejas emergem de uma situação de contato entre o meio rural e o urbano, tematizando a vida dos homens e mulheres do campo, mas também situações que podemos classificar como temáticas urbanas. A tradição oral, característica da ruralidade, é uma das fontes principais para a composição das letras musicais estudadas neste livro, restrita à discografia da dupla sertaneja Tonico e Tinoco.

    Como discurso, essas canções sertanejas são investigadas enquanto mecanismos que constituem sujeitos, no caso, o caboclo. No rol das fontes consultadas, se observa que boa parte das letras se refere ao ambiente em que tal sujeito vive e de onde se origina o sertão. Neste caso, trata-se geograficamente do estado de São Paulo e das regiões circunvizinhas. O sujeito constituído no discurso sobre o caboclo é, como se verá adiante, alguém que vive ou é originário do sertão.

    Essa sinalização, vinda das fontes consultadas, demandou a discussão do espaço construído, e daí a do espaço praticado, donde tais letras passaram a ser vistas como atos de consumo de algumas produções racionalizadas e impositivas, tais como os discursos da modernização agrícola, da urbanização, da mecanização da lavoura, da ideologia do progresso e até mesmo do patriotismo militarista difundido no país durante o regime militar. Tal atividade implicou a constituição do sertão, no caso a região  nteriorana de São Paulo, como um produto posto à fruição para diferentes segmentos da sociedade nas primeiras décadas do século XX. As mencionadas letras musicais, enquanto práticas de espaço e atos de consumo, constituem e reconfiguram o sertão presente nas letras de canções da discografia de Tonico e Tinoco; elas serão lidas como partes de uma região e como lugares de consumo. É que os sujeitos desfrutam, processam, reaproveitam certas proposições, projetos, arquiteturas culturais, econômicas e político-sociais que lhes são impostos, criando espacialidades e subjetividades correspondentes.

    O interesse por este tipo de fonte para a pesquisa em história vem desde o trabalho de conclusão de curso. De início, as análises se pautaram apenas em letras musicais encontradas na internet. Mais tarde, ampliou-se para obras escritas, donde veio o contato com o livro autobiográfico de Tonico e Tinoco. As canções reunidas neste texto intitulado Da beira da tuia ao Teatro Municipal – Tonico e Tinoco a dupla coração do Brasil, formam o conjunto básico do corpo documental para a execução, inicialmente, de uma dissertação de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) e agora deste livro.

    A primeira edição do livro de Tonico e Tinoco é de 1983. A segunda e última, de 1984. Nesta obra autobiográfica, encontra-se um relato da trajetória dessa dupla, desde suas vivências de juventude, as experiências como trabalhadores nas fazendas paulistas, as relações que mantinham com a família, os percalços iniciais da carreira artística profissional, em 1942. Além disso, o livro reúne grande parte das canções compostas pela dupla, bem como músicas de outros compositores e que foram gravadas pelos autores da publicação. Ao todo, são mais de quinhentas letras musicais que consideraram como marcantes para sua carreira. Há, também, uma cronologia dos LPs gravados de 1957¹ a 1983 e as letras das canções de início da carreira, como as da primeira apresentação em rádio e do concurso que despontou a dupla. A delimitação temporal se deu com base na primeira música cantada na carreira de Tonico e Tinoco em uma rádio, a Jorginho do Sertão, no início da década de 1940, e a última música gravada que possuía a palavra sertão em seu título, Museu do sertão, de 1981.

    O contato com a obra evidenciou a amplitude do universo da música sertaneja no Brasil, e foi decisivo para o estabelecimento do recorte tanto temporal quanto das fontes, que se manteve restrito à discografia de Tonico e Tinoco. A dupla sertaneja era formada por João Salvador Perez (Tonico) e José Perez (Tinoco). O primeiro nasceu na cidade São Manuel, a 2 de março de 1917 e faleceu em 13 de agosto de 1994. O segundo, em uma fazenda de Botucatu, atualmente pertencente ao município de Pratânia, em 19 de novembro de 1920. As duas cidades pertencem ao estado de São Paulo.

    O nome artístico da dupla foi dado por Capitão Furtado,² apresentador do programa Arraial da Curva Torta. Esta programação radiofônica era levada ao ar por meio da Rádio Difusora, na década de 1950. A dupla, no início de carreira, apresentava-se como Irmãos Perez. Em um ensaio, após a vitória em um concurso para eleger a melhor dupla de São Paulo a apresentar-se no Programa do Capitão Furtado, surgiu a ideia de que uma dupla com características tão brasileiras não deveria ser conhecida por um nome espanhol. Daí veio o nome que adotaram até o fim da carreira: Tonico e Tinoco (Tonico; Tinoco, 1984, p. 8-42).

    Depois de vencerem o mencionado concurso, tornaram-se marcantes expressões da Rádio Difusora nos anos 1940, ao lado de Rosalina³ e Florisbela. Devido às características da voz anasalada, da fala com sotaque regional, das brincadeiras e anedotas típicas, contribuíram para pôr em evidência o cancioneiro sertanejo. Ficaram conhecidos como a dupla Coração do Brasil, chamada assim pelos apresentadores de rádio e televisão (Caldas, 1987, p. 57).

    O primeiro contato com este tipo de tema e fontes se deu a partir da disciplina intitulada Cultura Cabocla, ofertada pelo curso de licenciatura em História da Unicentro, campus de Irati/PR. Era o ano de 2013. Durante as aulas houve um debate sobre cultura e identidade, especificamente versando sobre a categoria caboclo. Um dos objetivos consistia em discutir a presença dos caboclos no Sul do Brasil e como foram construídas suas relações com outros grupos sociais na região. O debate evidenciou as potencialidades de pesquisa nesta área. A partir daí, resultou o já referido trabalho de conclusão de curso, sob o título Representações da cultura cabocla na discografia de Tonico e Tinoco. Na época, o conceito básico, como se pode deduzir do título, foi o de representação.

    No decorrer da pesquisa evidenciou-se a necessidade de avançar em relação ao conceito de representação,⁴ até mesmo porque, como foi mencionado, as fontes sinalizavam para a constituição do sujeito e dos atos de consumo. Ocorre ser interessante escrever a história sob a alegação de que os sujeitos constroem suas representações (no caso, o caboclo do sertão) de acordo com seus interesses. É factível, demonstrável e interessante, mas um tanto problemático na hora de expor os pretensos objetivos. Na maioria dos casos são tidos como pressuposições. Por isso, o conceito de discurso como constituinte do sujeito nos parece mais viável: pode ser demonstrado na letra. Do mesmo modo, a noção de consumo pode ser cotejada a certo produto demonstrável. Daí o recurso a Foucault e a Certeau.

    A letra musical como fonte sempre está ligada ao meu gosto pela música, mas não por um respectivo gênero. Em 2017 ministrei um minicurso no III Congresso de História da Unicentro/UEPG, intitulado História e música: "Que país é esse?". Nele refletimos sobre história e música no Brasil a partir de composições do período entre 1930 e 2001, sugerimos um ambiente democrático de gêneros e linguagens musicais no âmbito de suas contribuições para a identidade e a diversidade da cultura brasileira.

    Além disso, durante o período⁵ em que lecionei na Escola Dom Bosco, Irati/PR, trabalhei com paródias que envolviam o ensino de História, para o sexto e sétimo ano do ensino fundamental. Pude perceber a atenção e a abertura que os alunos demonstravam. A música possibilitou uma melhora no seu desempenho, notada na avaliação da matéria. A participação deles permitiu uma sensível melhora na comunicabilidade de alguns alunos que não se expressavam espontaneamente em sala.

    Para dar conta de todas essas implicações e possibilidades recorremos às reflexões de Foucault e Certeau. A proposta certeauniana, como se verá aqui, é focada na leitura freudiana deste autor, pois consideramos que a psicanálise e não a filosofia seja a base de sua reflexão. Resumidamente, significa dizer que os indivíduos reagem a certas imposições sociais, a certas regras que lhes são impostas, por conta da psiquê, das memórias ancestrais, dos traumas e dos impulsos. Por este motivo, as imposições econômicas e políticas, sejam da coloração que forem, não são absolutas. Daí decorre que o militarismo brasileiro, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, não será considerado com imposição de eficácia total e absoluta. Houve fissuras, criaram-se brechas, e assim por diante. A visão certeauniana empresta esse princípio freudiano para dar encadeamento aos estudos do cotidiano. De Foucault utilizaremos, mais especificamente, o conceito de discurso para nortear o estudo de constituição do caboclo e do sertão.

    No primeiro capítulo tratamos da música e sua inserção na indústria cultural e dos compositores, que em sua maioria eram os próprios sertanejos. Tratamos também da fundamentação teórica numa aproximação dos escritos certeaunianos e foucaultianos, no que diz respeito aos atos de consumo, ao espaço praticado e à constituição do sujeito caboclo. Enfatizando a perspectiva freudiana, falamos da imposição das normas sociais opressivas sobre os sujeitos que vão driblá-las, modificá-las, dando forma ao espaço de consumo e da invenção do cotidiano.

    No capítulo segundo, discutiremos a complexidade da utilização da música como fonte para a História, suas possibilidades para o livro e inserção dessas canções, tidas como narrativas, para o historiador produzir conhecimento no campo da história. Além disso, discutiremos a constituição do espaço sertanejo, o lugar em que vive ou viveu o caboclo, a partir das letras das canções situando-as no tempo em três fases: da década de 1920-1960, de 1960-1970, e de 1970-1981. Nesse capítulo utilizamos 15 letras musicais para demonstrar a forma pela qual os compositores constituíram o sertão, relacionando-o ao contexto local e nacional.

    No terceiro capítulo discutimos mais diretamente a constituição do sujeito. Apuramos os enunciados a respeito de suas características físicas e sociais, dos estigmas e do seu ímpeto de subsistência; as paisagens em que vive, o mundo que o rodeia, partindo do pressuposto de que o discurso tem como objetivo constituir sujeitos. Dentre as imagens que dão forma a esse sujeito, apresentamos a viola e o gênero musical sertanejo tido como inerente ao mundo caboclo. Tal construção é feita a partir de diversos saberes, tais como a biologia, a etnografia, a história e a geografia. Trataremos da terminologia utilizada por alguns autores na tentativa de mapear uma consolidação da palavra caboclo, sua utilização e as formas de tratamento na sociedade. Faremos um apanhado nos três principais tipos de caboclos inseridos no âmbito acadêmico: o catarinense, o amazônico e o paulista. Trataremos, também, da violência como característica atribuída ao caboclo. O caboclo é identificado como produto e produtor (compositor) de uma arte específica: a música sertaneja e a cantoria da roça, do trabalho e da reza.


    Notas

    1. Essa data marca a primeira gravação da dupla utilizando o formato LPs (Long Plays) ou discos de vinil, diferente dos discos anteriores que suportavam uma música em cada lado, esses possuíam a compatibilidade de aproximadamente vinte minutos.

    2. Capitão Furtado na verdade não era capitão, segundo Ferrete (1985, p. 49), foi um autoapelido por ter sido furtado em uma negociação em uma rádio, onde acabaram cancelando seu programa em início de carreira e o capitão surgiu pelo papel de coronel que fazia em uma radionovela, mas como não queria ser um título em escala mais alta, optou por este, também faz menção a uma família caipira conhecida de Botucatu por sua comicidade que eram chamados de os capitãzinho. Surgiu com isso o nome artístico de Capitão Furtado.

    3. Rosalina, depois, passou a usar o nome de Hebe Camargo.

    4. As representações aqui tinham como embasamento a conceituação proposta por Pesavento (2004), são matrizes geradoras de conduta e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Estas representações articulam muito mais do que exprimem, ou seja, trazem consigo sentidos ocultos, perspicazes, construídos social e historicamente, muitas vezes se internalizam no inconsciente coletivo apresentando-se como naturais, dispensando reflexão por parte daqueles que as compartilham, em dado espaço e momento histórico; também Chartier (1990) delineia o conceito de uma forma mais particular e historicamente mais determinado: para ele, a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente por meio da sua substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é.

    5. De fevereiro a julho de 2017.

    CAPÍTULO 1

    Neste capítulo discutiremos a constituição do espaço caboclo a partir dos conceitos de saber e de lugar, com enfoque no cotidiano tal como o entende Michel de Certeau (1998). Será conveniente, no entanto, esclarecer alguns pontos a fim de evidenciar a leitura que fazemos deste autor que em seus estudos combina a história, a filosofia,

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