Brasil em transe: Bolsonarismo, nova direita e desdemocratização
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- Nota: 5 de 5 estrelas5/5Um livro obrigatório para esse momento terrível que estamos vivendo.
Pré-visualização do livro
Brasil em transe - Rosana Pinheiro-Machado
UERJ)
© Adriano de Freixo et alii, 2019
© Oficina Raquel, 2019
EDITORA
Raquel Menezes
REVISÃO
Luis Maffei
CAPA
Thiago Pereira
FOTO DE CAPA
José Cruz/Agência Brasil
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Daniella Riet – Voo Livre Editorial
PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books
www.oficinaraquel.com
facebook.com/Editora-Oficina-Raquel
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Brasil em transe: Bolsonarismo, Nova direita e Desdemocratização / Rosana Pinheiro-Machado, Adriano de Feixo (organizadores) – Rio de Janeiro : Oficina Raquel, 2019.
164 p.
Bibliografia
ISBN: 978-85-9500-039-1
1. Brasil – Política e governo 2. Ensaios brasileiros 3. Brasil – Bolsonarismo – Nova Direita – Desdemocratização
16-1210
CDD 320.981
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil – Política e governo
COLEÇÃO PENSAR POLÍTICO
O início da abertura política e da chamada transição democrática
, no período final da ditadura civil-militar, marcou também o começo de um ciclo político caracterizado, por um lado, pela formação de uma inédita sociedade civil e, por outro, por um processo de construção institucional que perpassaria as décadas seguintes e que teria um de seus principais marcos na promulgação da Constituição de 1988. No entanto, mais de quarenta anos depois, esse processo está longe de terminar.
Apesar de, ao longo dessas quatro décadas, inúmeros avanços terem ocorrido, a jovem democracia brasileira se encontra longe de estar consolidada. Em uma sociedade profundamente desigual — mesmo com a notável melhora dos nossos indicadores sociais nestes primeiros anos do século XXI —, fortemente hierarquizada e marcada pela violência, real e simbólica, a tentação autoritária, muitas vezes travestida em salvacionismos, continua a ser um espectro a nos rondar e a cidadania plena ainda é um horizonte distante.
Compreender a dinâmica política dessa sociedade tão complexa e multifacetada e as complicadas tramas e teias nela presentes é sempre um desafio para os acadêmicos e intelectuais que se propõem a fazê-lo. Afinal, como assinala o historiador francês Pierre Rosanvallon, em Por uma História do político (Alameda, 2010), o político deve ser entendido como um processo social cuja natureza não está dada de forma imediata, e ao qual devem ser restituídas a espessura e a densidade das contradições a ele subjacentes — para tentar apreendê-lo, é necessário reconstruir o modo por que indivíduos e os grupos elaboraram a compreensão de suas situações, enfrentar os rechaços e as adesões a partir dos quais eles formularam seus objetivos e, fundamentalmente, retraçar de algum modo a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e organizaram o campo de suas ações.
É este desafio que a coleção Pensar político, da Oficina Raquel, se propõe a enfrentar, ao levar a um amplo público leitor os principais temas e debates da agenda política brasileira contemporânea, situando-os dentro de processos históricos mais longos e indo além das questões meramente conjunturais. Escritos em linguagem menos formal, mas sem perda do rigor acadêmico e da qualidade intelectual, os artigos que compõem cada um dos volumes da coleção — sempre articulados em torno de um eixo temático — são elaborados com o intuito de estimular a reflexão, o pensamento crítico e o debate político qualificado, vetores que são fundamentais para a construção de uma sociedade democrática e plural.
Adriano de Freixo
(Coordenador da coleção)
Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Dias de um futuro (quase) esquecido: um país em transe, a democracia em colapso
A cosmovisão da nova
direita brasileira
Golpe de Estado: o conceito e sua história
Democracia genocida
Quem é o inimigo? Retóricas de inimizade nas rede sociais no período 2014-2017
Há solução sem uma revolução?
Ninguém viu, ninguém vê: comentários sobre o estado da violência na atual democracia (de poucos)
Cidadania, semi-cidadania e democracia no Brasil contemporâneo
Sobre os autores
Dias de um futuro (quase) esquecido: um país em transe, a democracia em colapso
Adriano de Freixo
Rosana Pinheiro-Machado
A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção
em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda
sejam possíveis não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.
Walter Benjamin, Sobre o conceito de História, 1940
6 de junho de 2013. Na capital paulista, uma manifestação contra o aumento das passagens dos ônibus urbanos, convocada pelo Movimento Passe Livre (MPL) e por diversas organizações estudantis, reúne cerca de quatro mil pessoas e é violentamente reprimida pela polícia militar. No dia seguinte, um novo protesto termina com quinze estudantes presos, ao mesmo tempo em que manifestações similares começam a pipocar em outras capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e Goiânia. Dez dias depois, em 17 de junho, milhares de pessoas haviam tomado as ruas de diversas cidades brasileiras, com pautas bastante heterogêneas e perspectivas bastante distintas: os protestos localizados e modestos, organizados por grupos e movimentos que desde a década passada se articulavam em torno da questão do transporte público urbano, deram lugar a um gigantesco movimento de massas que culminou em algumas das maiores manifestações da história recente do país.
Assim, nas semanas e meses seguintes, iniciar-se-ia uma verdadeira disputa pelas ruas
que colocou, de um lado, os segmentos radicalizados da juventude − organizados em novos grupos e coletivos −, mas também organizações e partidos de esquerda, movimentos populares, sindicatos e organizações estudantis tradicionais, e, do outro, setores mais à direita e partidos da oposição conservadora que buscavam instrumentalizar aquelas manifestações como forma de tentar enfraquecer a hegemonia político-eleitoral do bloco articulado em torno do PT. Pode-se dizer, portanto, que junho de 2013 trouxe duas grandes novidades para o cenário político brasileiro:
1)
o ciclo de manifestações que se iniciaria foi o primeiro desde o início da chamada transição democrática
, na segunda metade da década de 1970, que não teve o Partido dos Trabalhadores − ou os movimentos que estiveram no cerne de sua formação como Partido-Movimento
(KECK, 1991) − como um de seus principais protagonistas. Pelo contrário: quase sempre o PT e o seu modo de governar foram os principais alvos de boa parte das críticas dos manifestantes;
2)
a descoberta
das ruas pela direita, que passaria a ocupar também esses espaços, lócus por excelência das forças e movimentos democráticos e progressistas, desde os anos da ditadura. Esta direita incluía desde organizações nacionalistas extremistas até jovens manifestantes que mesclavam a retórica de uma antipolítica
rasa − contra tudo e contra todos
− com um liberalismo difuso, passando por grupos de skinheads, monarquistas, defensores do retorno da ditadura militar, grupos religiosos conservadores e cidadãos de classe média com um extemporâneo e caricato discurso anticomunista somado a um genérico sentimento anticorrupção.
Tal heterogeneidade dos manifestantes e dos atores políticos envolvidos no processo possibilitou – e possibilita – uma multiplicidade de narrativas sobre os sentidos e os significados de junho, trazendo a disputa também para o campo simbólico. Nessa disputa pela memória, algumas explicações e análises têm ganhado centralidade e relevância nos debates do campo progressista, entre as quais:
I –
a percepção das Jornadas de Junho
dentro de um contexto global de desilusão com a democracia de matriz liberal e de falência dos modelos clássicos de representação política, com os questionamentos à política tradicional
partindo principalmente da juventude (GOHN, 2014). No Brasil, em 2013, essa desilusão aparecia, de forma distinta, tanto entre os jovens da classe média tradicional quanto entre os das regiões periféricas, vinculados aos segmentos que ascenderam socialmente e se beneficiaram das políticas implementadas durante os anos dos governos petistas;
2 –
o esgotamento do modelo petista
ou lulista
, baseado em políticas distributivistas e no aumento do papel do Estado, que, no entanto, tinha por limite a incapacidade − ou a falta de vontade política – de realizar reformas estruturais ou de radicalizar a democracia brasileira (IASI, 2013).
Neste sentido, pode-se afirmar que o ciclo de manifestações e protestos de rua iniciado em 2013 demonstrou ser a expressão mais visível do esgotamento de um modelo político que começou a se estruturar durante o processo de transição democrática e atingiu o seu auge nos anos Lula. Tal modelo combina, por um lado, a conciliação entre as forças políticas que ocupam o executivo e setores que controlam o congresso através da distribuição de cargos, verbas públicas e emendas parlamentares, garantindo a formação de uma maioria parlamentar − naquilo que Marcos Nobre chamaria de peemedebismo
− e a consequente blindagem do executivo e, por outro, já nos anos Lula, um reformismo fraco
que aposta na redução da pobreza sem enfrentar a ordem, dentro de uma lógica de conciliação de classes (ver NOBRE, 2013 e SINGER, 2012 e 2018).
Ao esgotamento desse modelo somam-se, externamente, os impactos de uma prolongada crise econômica global, bem como os rearranjos na ordem mundial, decorrente, dentre outros fatores, da reação das potências centrais à relativa perda de influência por elas sofrida desde a década passada (ver FERNANDES, 2016) e, internamente, uma série de questões conjunturais, entre as quais a incapacidade do governo petista em responder às demandas da sociedade que vieram à tona em 2013 e de rearticular sua base de apoio social, optando por manter a política conciliatória, traduzida, por vezes, em escolhas econômicas extremamente questionáveis.
Porém, nas eleições presidenciais de 2014, as mais disputadas desde 1989, a presidenta Dilma Rousseff acabaria sendo reeleita, derrotando Aécio Neves, ex-governador de Minas Gerais, contrariando assim inúmeras análises feitas a partir de 2013, que identificavam nos protestos de junho um sentimento geral de mudança que poderia se refletir nos resultados do pleito. Só que, mais uma vez, o segundo turno acabou sendo disputado pelas coligações lideradas pelo PT e pelo PSDB, respectivamente, com a presidenta sendo vitoriosa por estreita margem (51,64 % a 48,36%) e com o eleitorado profundamente dividido.
Com isto, nos primeiros meses após a reeleição, assiste-se, por um lado, à tentativa da presidenta reeleita de recompor sua base de apoio no congresso e de reeditar o pacto lulista, através da indicação de inúmeros nomes de perfil mais conservador e/ ou ligados ao campo do peemedebismo
e, por outro, a manutenção da polarização política existente na sociedade, alimentada pela recusa de Aécio Neves e do PSDB em reconhecer o resultado das eleições, contestando-os, inclusive, na justiça. O fracasso da estratégia presidencial de recomposição da governabilidade
e a insatisfação das bases tradicionais do PT e da esquerda em geral com essa política de conciliação, que levou, entre outras coisas, à adoção de políticas de austeridade econômica que contrariavam os compromissos assumidos por Dilma durante a campanha, acabaram levando a presidenta para um crescente isolamento.
A continuidade e o aprofundamento da chamada Operação Lava Jato, com novas denúncias sobre pagamento de propinas e outras irregularidades na Petrobras, a clara postura oposicionista dos principais meios de comunicação do país, a piora da crise econômica e os inúmeros equívocos da articulação política do governo Dilma agravariam ainda mais esse quadro. Isto levaria, já nos primeiros meses de 2015, à ocorrência de grandes manifestações contra o governo, que se estenderiam até o ano seguinte, com o discurso anticorrupção assumindo cada vez mais centralidade. No entanto, apesar da crença na corrupção generalizada do sistema político, a indignação dos que foram às ruas era dirigida quase exclusivamente contra o PT, havendo assim a presença clara de um forte componente antipetista nas manifestações. Essa indignação seletiva
pode ser explicada pela habilidade das lideranças desses protestos em canalizar o descontentamento generalizado em direção a um único foco (o Partido dos Trabalhadores), por certa blindagem midiática em torno das forças de oposição –favorecendo o discurso recorrente do PT como o partido mais corrupto da história do Brasil
− e pela disseminação de narrativas formuladas por colunistas de orientação conservadora da grande imprensa e de inúmeras teorias conspiratórias através das redes sociais e de grupos de WhatsApp.
O agravamento da crise política no início de 2016, com mais acusações de corrupção, delações premiadas, vazamentos de ligações telefônicas e um intenso bombardeio da grande imprensa, isolou ainda mais o governo Dilma e deu fôlego aos protestos de rua que exigiam o impeachment da presidenta, cujo admissibilidade havia sido aceita no final de 2015 pelo então presidente da câmara, Eduardo Cunha, deputado de base evangélica e um dos grandes responsáveis pelo avanço das pautas conservadoras no Congresso Nacional. Ao mesmo tempo, a polarização e a radicalização políticas cresciam exponencialmente no país.
No quadro geral dessa crise, um fato de grande relevância foi a crescente politização
do judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal que, por inúmeras vezes, levou-os à extrapolação de suas funções e à realização de atos e procedimentos considerados ilegais por inúmeros juristas, no âmbito da Operação Lava-Jato e em outros processos. Garantidos pela blindagem da grande imprensa e pelo apoio de amplos segmentos da sociedade, juízes de primeira instância e procuradores da república vêm sendo recorrentemente acusados de atropelar a ordem jurídica e as garantias constitucionais vigentes em nome de uma lógica salvacionista
, em que