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Fora dos pobres não há salvação
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E-book263 páginas3 horas

Fora dos pobres não há salvação

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Sobre este e-book

A obra de Jon Sobrino encaixa- se perfeitamente na coleção, que pretende reunir uma série de respostas à questão crucial: "Qual é a verdadeira função da Igreja nas atuais situações de pluralismo de ofertas religiosas? Quais atitudes esperam-se dos cristãos em tais contextos?"

A resposta de Sobrino, que perpassa os diferentes textos aqui reunidos e dá unidade ao conjunto, é de que a Igreja encontrará somente nos pobres o caminho da salvação. Por pobres se entendem os povos crucificados, que devem ser considerados na história e em nossa realidade atual, o verdadeiro servo de Javé, pelo seu sofrimento e pela sua possibilidade de salvação. A humanidade se desumaniza na civilização da riqueza, marcada pela hiper-valorização das coisas temporais, que degrada o ser humano. A salvação da humanidade está em contrapor-lhe uma civilização da pobreza, suscitar e sustentar o povo que há de triunfar dos ricos e dos poderosos.

Sobrino explica o que a Igreja deve fazer em favor dos pobres e o que os pobres podem fazer em favor da Igreja - e, mais radicalmente, da sociedade. Os pobres realizam a missão da Igreja, que é salvar da morte, da indignidade, da não-existência e reverter o rumo da história, acabar com a civilização da riqueza (injustiça, crueldade e morte = desumanização) e caminhar para a civilização da pobreza - uma nova lógica para entender a salvação. Fora dos pobres, portanto, não há salvação.

Aos três textos fundamentais que desenvolvem essas teses, acrescentam-se três outros consagrados à centralidade do Reino, à ressurreição dos mortos e ao papel decisivo que desempenham na Igreja as testemunhas vivas da fé, como o são, para a América Latina, Monsenhor Romero e Inácio Ellacuría.

A obra é sobremaneira atual, dada a discussão sobre o sentido da esperança que salva, tema da Encíclica de Bento XVI sobre a Esperança, de 30 de novembro de 2007, em que se observa uma forma diversa de entender a ação da Igreja na civilização da riqueza em que vivemos.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento13 de ago. de 2019
ISBN9788535645309
Fora dos pobres não há salvação

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    Fora dos pobres não há salvação - Jon Sobrino

    esperança.

    Apresentação

    O autor deste livro quer oferecer-nos uma reflexão fundamental sobre o estado em que se encontra nosso mundo, numa cada vez mais escandalosa situação de desigualdade entre os povos. Citando seu amigo e companheiro de vida cristã martirial, Ignacio Ellacuría, convoca-nos para uma missão tão clara quanto radical: reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção.

    Será esta uma missão da Igreja? Será este o novo jeito de ser Igreja neste século XXI? E haverá ainda alguma esperança de cura para esta nossa civilização do capital e da riqueza? Será que esta Igreja que chega ao século XXI ainda sob o influxo da arejada eclesiologia do Concílio Vaticano II está suficientemente renovada para aprofundar seu caminho de coerência eclesial com o mandato evangélico?

    O período que antecedeu o citado Concílio foi de grande crise. Havia medo de assumir descontinuidades, rupturas, inovações, conflitos, emergência de novas teologias e superação de velhas tradições. Na aurora deste século, multiplicaram-se os desafios, mas também os temores.

    Este livro de Jon Sobrino é um libelo contra tais temores mas também um testemunho de autêntica esperança. Por isso, foi acolhido nesta coleção, cujo propósito é servir de espaço para os ensaios a que a reflexão eclesiológica não pode se furtar, caso pretenda ser farol e companhia de viagem no caminho que as novas gerações de discípulos do Nazareno deverão seguir e nos novos areópagos que cruzarão. Para tanto, Ecclesia XXI considera em seus volumes a realidade e a missão da Igreja de vários ângulos: espiritual, bíblico, dogmático, histórico, intercultural, ético e pastoral.

    Este olhar multifacetado impõe-se, pois a nova realidade não mais comporta uniformismos. De modo especial, temos verificado no Brasil uma notável reapropriação das camadas populares de elementos subjacentes à sua cultura. Os portões foram escancarados após a perda da estrutura rural que sustentava a religiosidade popular católica. Contemporaneamente, foi intensificado o processo de descriminalização de muitas expressões culturais populares.

    A repercussão que têm hoje religiões e espiritualidades palatáveis à new age, bem como o crescente sucesso do neopentecostalismo (evangélico e católico) sugerem seu forte apelo à necessidade popular do maravilhoso. Órfão dessa qualidade, outrora tão comum ao catolicismo rural – rico em elementos de origem africana, indígena e também lusitana – o povo cristão vai a seu encalço para além dos limites da paróquia tradicional – aí incluídas também as CEBs.

    Alguns autores pretendem explicar o quadro alegando que tais tendências religiosas não têm uma grande bagagem de conteúdos mentais que promovam a pessoa mediante novos conhecimentos – como, por exemplo, faz a Bíblia. Apenas oferecem, com oportunismo, um novo espaço à sensibilidade e à afetividade que supre a dimensão lúdica do catolicismo festivo. Mas não se trata apenas disso, a saber: Bíblia = conteúdos mentais = conhecimento. O simbólico, a comunidade e o processo de iniciação devem ser considerados como parte integrante do processo do conhecimento. Mas, o fato é que nem todos os sedentos por essa espiritualidade do maravilhoso estão dispostos a enfrentar um longo e exigente caminho iniciático.

    Por fim, essa autêntica feira mística representa uma notável ruptura de dois elementos decididamente caros à Igreja: a palavra (Bíblia) e os sacramentos. Todavia, isso não requer – como fazem, em geral, os movimentos religiosos pentecostais – um distanciamento institucional. O católico que busca tais espiritualidades não se sente no dever de abandonar a Igreja, e procura manter as duas pertenças, vendo-as como complementares na resposta a suas necessidades religiosas.

    Alternativas de sabor espiritualista e/ou new age atraem sempre mais o apelo religioso das pessoas. Os ritos católicos de integração da biografia individual já vêm sendo repetidos sem muita clareza e convicção, deixando progressivamente o espaço a outras ofertas religiosas. Para alguns, tal tendência poderá reduzir ou eliminar a ambigüidade da prática religiosa das pessoas.

    De outra parte, não se deve esquecer de que, tanto as Igrejas pentecostais quanto a new age levam vantagem nas estruturas acentuadamente aliviadas do peso hierárquico-piramidal, com a conseqüente homogeneização das classes. Daí resulta a crescente aproximação entre membros e lideranças. Some-se a isso a efetiva rede assistencial que tais organizações têm em mãos, e que fazem estrepitoso sucesso em meio aos milhões de doentes, abandonados pelos órgãos públicos.

    O final do século XX também viu a vitória – pírrica, segundo alguns críticos – da secularização e da modernidade, sempre mais sentidas em ambientes outrora hermeticamente católicos. Os grandes fluxos migratórios em direção aos pólos industriais do sul e a recrudescente penetração do paradigma burguês nos sertões e florestas tiraram da Igreja Católica seu secular berço-reservatório de cristãos. A sociedade patriarcal a poupou, durante um longo período, da preocupação de obter dos fiéis uma resposta cristã adulta, fruto de convicção pessoal e independente do ambiente. Mas esse tempo acabou.

    Nesse inédito contexto de pluralismo religioso em que vivemos hoje, com a conseqüente necessidade de ampliar o diálogo entre as religiões, há várias perguntas incontornáveis. E esta nova coleção de Paulinas Editora pretende encará-las. Por exemplo, como deverá ser enfocada hoje a convicção católica, reafirmada no II Concílio Ecumênico do Vaticano, da necessária função salvífica da Igreja (Lumen Gentium 14)? Uma maior atenção teológica à maneira como Deus quis revelar-se a todos, somada à devida deferência pelas culturas autóctones, não deveria levar a Igreja Católica a repensar alguns modelos eclesiológicos seculares? O que significa, na prática, respeitar o ritmo e os tempos de nossos povos? Não é concebível que haja maneiras distintas, ao longo da história, de acolher a oferta gratuita de Deus? Quem, como e a qual preço, deve assumir hic et nunc a tarefa da (nova) evangelização?

    O âmago dessa discussão encontra-se nos fundamentos da identidade cristã e na possibilidade mesma de aceder a tal fé. Já se vislumbram as primícias de uma nova teologia da revelação, mais apta a incluir em seus circuitos outros trajetos possíveis da autocomunicação divina na história. Com isso, os teólogos já ousam inferir possíveis conseqüências de tal perspectiva em vista da possibilidade da inculturação da fé cristã nas realidades locais. Ecclesia XXI quer acompanhar as reflexões mais sugestivas a propósito.

    Um desafio prometéico, pois, como já disse Pe. José Comblin,¹ o discurso sobre a inculturação é o ponto de encontro de todas as ambigüidades. Alguns imaginam uma situação em que a Igreja entregaria aos povos uma cultura já pronta. Outros, mais progressistas, vêem a inculturação como promotora da diversidade cultural.

    Seja como for, qual é a verdadeira função da Igreja nessas situações de pluralismo de ofertas religiosas? Quais atitudes esperam-se dos cristãos em tais contextos? Fazer o bem ao povo equivale a convertê-lo (em sua totalidade) a um cristianismo mais ortodoxo? Em suma, salvação-libertação do povo de Deus é sinônimo de madura adesão das pessoas a esta comunidade chamada Igreja?

    Ao longo da história, a concepção da Igreja sobre si mesma sofreu, de modo talvez imperceptível em boa parte do tempo, uma determinante mudança de paradigma. De um grupo social constituído em função de uma tarefa – pregar o Evangelho, sendo dele um sinal – esta se rendeu, mais tarde, à idéia de constituir uma comunidade fundada na participação de um privilégio.

    Daqui ao casamento com o conceito de religião universal foi apenas um passo que, conseqüentemente, fez a Igreja estruturar-se como distribuidora de um privilégio essencial: os meios especiais para alguém entrar em relação com Deus e obter dele especiais prerrogativas. Um privilégio que, a todo custo, se devia estender ao maior número possível de seres humanos. O esforço para atingir tal meta fez dessa instituição religiosa, nas palavras de E. Hoornaert, mestra imbatível em lidar com a religião do povo. E isso apesar da exagerada eclesialização da idéia cristã, levada adiante no pós-Trento.

    Em meio à atual e dramática realidade latino-americana, e diante da inevitável opção, profética e exclusiva, pelos pobres e oprimidos, o problema volta à tona, embora em outra perspectiva. A Conferência Episcopal de Medellín, que procura traduzir na América Latina os novos ventos soprados pelo II Concílio Ecumênico do Vaticano, tornou tal escolha improcrastinável, colocando a hierarquia e os agentes de pastoral numa encruzilhada. Que fazer: radicalizar a nova (teologia) pastoral da missão ou permanecer fiéis àquela, já clássica, do privilégio (embora meio desnorteada pelo tornado conciliar)?

    Não obstante a alvorada conciliar, a fundamental preocupação missionária da Igreja continua sendo, conforme a Evangelium Nuntiandi, como levar ao homem moderno [e ao não-moderno] a mensagem cristã (EN 3). Todavia, quanto tempo e quais atitudes são desejáveis para que tal evangelização não se processe de maneira decorativa, como um verniz superficial, mas de modo vital, em profundidade e até as raízes (EN 20)?

    Quantos séculos serão necessários? Quais as conditiones sine quibus non para que as pessoas apreendam, se assim o desejarem, a real novidade cristã? E que fazer enquanto isso? Dar um voto de confiança a suas intenções mais genuínas e pressupor que sua prática habitual já seja de fato cristã e eclesial, embora à maneira popular? Ou não seria mais ortodoxo aliviar as Igrejas cristãs de todas as opções vitais e práticas rituais (tidas como) ambíguas? Contudo, uma vez escolhida a segunda opção, quem estaria habilitado a (e teria legitimidade para) separar o ambíguo do autêntico?

    Este livro de Jon Sobrino ajuda-nos a pôr o foco no que realmente importa, para que não percamos uma energia preciosa na defesa de ilusórias cercas confessionais. E talvez possa esta obra nos ajudar a reler numa perspectiva verdadeiramente missionária o recente documento produzido pelos bispos latino-americanos reunidos em Aparecida em 2007.

    Como vemos, não são poucos os problemas que se descortinam para uma Igreja que pretenda adentrar o novo século fiel ao espírito de Jesus, aberta ao diálogo, coerente em seu testemunho do Reino e solícita na comunhão com Deus e com o próximo. Em 21 textos, cuidadosamente selecionados dentre as mais diversas perspectivas, Ecclesia XXI oferece seu espaço como pequena contribuição aos enormes desafios a que nenhum cristão poderá se omitir nas próximas décadas.

    Afonso Maria Ligorio Soares

    ²

    Prólogo

    Neste livro recolhi artigos escritos nos últimos três anos. A reflexão fundamental versa sobre nosso mundo atual, um mundo de pobres e opulentos, vítimas e verdugos; sobre a urgente salvação e humanização de que ele necessita; e de onde podem provir as duas coisas. Na base de tudo estão algumas palavras de Ignacio Ellacuría em seu último discurso, em Barcelona, em 6 de novembro de 1989, dez dias antes de ser assassinado. Esta civilização está gravemente enferma — ‘enferma de morte’, diz agora Jean Ziegler — e, para evitar um desenlace fatídico e fatal, é necessário tentar mudá-la. E formulou isso com absoluta clareza e total radicalidade: É preciso reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção.

    O mundo de hoje, o mundo oficial e politicamente correto, não dá atenção a elas, e, de qualquer modo, não age com a radicalidade correspondente à suma gravidade do problema. Um dado de nossos dias. Em Nairobi, onde acaba de ser celebrado o Fórum Social Mundial, 2,6 milhões de pessoas, 60% da população, vive em tugúrios infames. Só em Kibera, 800 mil pessoas vivem com uma latrina sórdida para cada duzentas pessoas.

    Poder-se-á dizer que, em nosso mundo oficial, já despertamos do sonho dogmático, do qual Kant queria libertar-nos. Continuamos, porém, sem despertar do sonho de desumanidade cruel, do qual aquele frade [Antônio de Montesinos] do século XVI, em La Española, acusava os encomenderos, responsáveis por crueldade e extermínio, no terceiro domingo do Advento de 1511: Estes não são seres humanos? Não têm almas racionais? Não vedes isto? Não sentis isto? Como estais a dormir em sono tão letárgico?.

    É verdade que hoje também se ouvem algumas vozes proféticas, embora não muitas, e o rumor da miséria e o clamor de morte escorre pelas entranhas da indiferença. E se escutam vozes de esperança. Casaldáliga, fustigando este mundo nosso, reconhece também que a humanidade se move, que está dando uma volta para a verdade e a justiça, que há muita utopia e muito compromisso neste planeta desencantado.

    E o mais importante é que nos foi dada a desmesura da esperança, embora esteja também encoberta no e pelo nosso mundo: pode-se curar esta nossa civilização do capital e da riqueza. Ellacuría dizia que para curá-la era preciso fazer todo tipo de esforços intelectuais, sociais e políticos, evidentemente. Mas falamos de desmesura, pois propomos como superação da civilização da riqueza a civilização da pobreza — linguagem surpreendente que explicou em repetidas ocasiões, mas que manteve até o final para que ficasse claro que a solução tinha de ser, em medida muito boa, contrária àquela que agora nos é oferecida. No discurso citado afirmou, ao mesmo tempo, a esperança e o escândalo da solução: Só com utopia e esperança se pode crer e ter ânimo para tentar, com todos os pobres e oprimidos do mundo, reverter a história.

    Estas são as reflexões que reunimos nos três primeiros capítulos deste livro. Nos dois seguintes, analisamos duas realidades fundamentais da tradição bíblico-cristã: o Reino de Deus e a ressurreição dos mortos. Exprimem a esperança radical de nossa fé, a práxis que a acompanha e a graça do dom. Podem muito bem fazer o papel de pano de fundo teológico das reflexões mais históricas dos capítulos anteriores, o que nos parece importante também em sociedades secularizadas, pois a globalização, a democracia e o progresso não costumam propor, mesmo que seja de forma secularizada, símbolos que orientem a vida humana e social com tal radicalidade e a encaminhem à fraternidade.

    No último capítulo, recordamos explicitamente monsenhor Romero e Ignacio Ellacuría, e o fazemos de forma bem precisa: lembramos o que, em nossa opinião, Ellacuría disse de mais importante sobre o monsenhor. Penso que também serve para iluminar a temática dos capítulos anteriores, embora agora a reflexão também chegue ao fundo das pessoas. É uma pequena mostra, se se preferir, de como fazer teologia a partir de testemunhas, o que não torna supérflua, certamente, a teologia de textos, mas a enriquece e aprofunda.

    O leitor verá que no livro não aparecem temas atuais, como o diálogo inter-religioso, o feminismo, a ecologia, a bioética... São limitações, evidentemente. Mas não creio que isso faça de nossas reflexões relíquias do passado. Voltar a Ignacio Ellacuría e a monsenhor Romero, a Medellín e à Igreja dos pobres, não é cair na saudade gratificante nem lançar âncoras, impenitentemente, num passado que pode ter sido glorioso, mas que, no final das contas, já é passado. Penso que é voltar ao fundo do poço do qual correm águas vivas, a uma raiz escondida de cuja seiva vivemos, sem que por enquanto apareçam outras que as substituam. Creio que é como o evangelho de Marcos, ao qual é sempre preciso voltar para manter o viço do que é eu-aggelion e Reino de Deus, fé e seguimento de Jesus, e muito especialmente para saber o que é a graça, a graça cara, que tão freqüentemente dilapidamos, transformando-a em graça barata — e não só no âmbito religioso, mas também no âmbito da vida cotidiana, ao trivializá-la, coisificá-la, privando-a do seu mistério.

    Além do que acabamos de dizer, tenho outras razões mais específicas para recordar. Trata-se, fundamentalmente, de manter monsenhor Romero e Ignacio Ellacuría vivos. No tocante ao monsenhor, parece-me importante recordá-lo em sua verdade real para mantê-lo tal qual foi e assim como se lembram dele e o amam hoje os pobres e os homens e mulheres honrados e generosos, sem diluí-lo, como se isso facilitasse seu acesso aos altares. No tocante a Ellacuría, em muitos setores está vivo o Ellacuría filósofo, pensador agudo, crítico e autônomo, e também o Ellacuría da práxis, capaz de fazer com que uma universidade se encarne na realidade real de um país sofredor e de colocá-la ao seu serviço; o Ellacuría negociador realista, apegado à justeza e distanciado de ingenuidades... Sinto, porém, que é preciso falar também do Ellacuría que chamei de Ellacuría esquecido, o do povo crucificado e da civilização da pobreza, o seguidor de Jesus, que pôs na frente o mistério de Deus, lutando com ele — penso — como Jacó... Recordar o Romero total e o Ellacuría total parece-me muito importante, por honradez para com suas pessoas, mas também porque penso que essa lembrança historizada só pode trazer bens ao nosso mundo atual. Não é refugiar-se no passado, mas continuar semeando bens no presente.

    O título do livro é o do capítulo terceiro: Extra pauperes nulla salus [Fora dos pobres não há salvação]. É novidade, é escandaloso e, certamente, contracultural. O leitor julgará quão racional, ou razoável, é nossa afirmação. Pessoalmente, ao escrever sobre o tema, sempre me assalta a perplexidade e o desassossego. Mas também me fica a esperança de que outros criticarão, melhorarão e completarão. Em qualquer caso, mantenho o título como sacudida para levar absolutamente a sério a prostração de nosso mundo, e o que há de salvação debaixo da história, que tantas vezes se ignora, não se compreende e se despreza.

    Refletimos a partir da teologia e de dados e análises ao nosso alcance sobre o mundo atual, também a partir da experiência e da fé. Em seu conjunto, sobretudo no tocante ao extra pauperes, a reflexão não parece ser mais mistagógica que autonomamente analítica. Também é teologia negativa para exprimir o que nos ultrapassa. E penso que para compreender — ou criticar — o que escrevemos ajudará muito o esprit de finesse que Pascal recomenda.

    Procurei evitar as repetições, mas não me foi totalmente possível. Talvez ajudem a recalcar o importante, que não é por repetido que se deve dar por sabido.

    O leitor notará que no livro não abordo temas especificamente eclesiais. Só gostaria de dizer que o núcleo fundamental do que expomos, a vida e a morte da criação de Deus, com todas as limitações da análise e com todas as correções necessárias, pode bem ser hoje um articulus stantis vel cadentis ecclesiae. "Gloria Dei vivens pauper" [A glória de Deus é o pobre que vive], dizia monsenhor Romero. É isso que está em jogo hoje. Negativamente me aflige que, ao que parece, ninguém se responsabiliza por como está nosso mundo inumano. Não aparecem propostas de conversão própria para mudar o mundo. Oxalá a Igreja dê exemplo disto. Os pobres deste mundo agradecerão.

    Dediquei este livro ao bispo dom Pedro Casaldáliga. Conheci-o em São Paulo, em 1980, um mês antes do assassinato de monsenhor Romero, sobre quem conversamos longamente. Dedico a ele com agradecimento por sua palavra de profeta, de poeta e de portador, sempre, de eu-aggelion. Agradecimento, muito especial, por sua vida, toda ela entregue a todos, mas sempre partindo dos e através

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