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Na companhia das estrelas
Na companhia das estrelas
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E-book390 páginas5 horas

Na companhia das estrelas

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Sobre este e-book

Em um mundo devastado pela doença, Hig conseguiu escapar à gripe que matou todo mundo que ele conhecia. Sua esposa e seus amigos estão mortos, e ele sobrevive no hangar de um pequeno aeroporto abandonado com seu cachorro, Jasper, e um único vizinho, que odeia a humanidade, ou o que restou dela.
Mas Hig não perde as esperanças. Enquanto sobrevoa a cidade em um avião dos anos 1950, ele sonha com a vida que poderia ter vivido não fosse pela fatalidade que dizimou todos que amava. Hig é um guerreiro sonhador. E tem uma imensa vontade de gente, apesar da desilusão que se abateu sobre ele. Por isso é capaz de arriscar todo seu futuro quando, um dia, o rádio de seu avião capta uma mensagem...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de mai. de 2013
ISBN9788581632445
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    Pré-visualização do livro

    Na companhia das estrelas - Peter Heller

    < Sumário >

    < Capa >

    < Sumário >

    < Folha de Rosto >

    < Créditos >

    < Dedicatória >

    < LIVRO UM >

    < I >

    < II >

    < III >

    < IV >

    < V >

    < VI >

    < LIVRO DOIS >

    < I >

    < II >

    < III >

    < IV >

    < LIVRO TRÊS >

    < I >

    < II >

    < III >

    < Agradecimentos >

    < Nota sobre o autor >

    < Notas >

    Às vezes, um bom coração é tudo de que um homem precisa

    Tradução

    Rosana Watson

    Para Kim

    < LIVRO UM >

    < I >

    Mantenho sempre a Fera em funcionamento. Mantenho o combustível do avião disponível em grandes quantidades; faço o prognóstico de ataques. Sou jovem o suficiente, sou velho o suficiente. Antigamente eu adorava pescar trutas mais do que qualquer outra coisa na vida.

    Meu nome é Hig, um nome apenas. Grande Hig, se quiser saber meu nome completo.

    Se algum dia eu acordar gritando no meio de um sonho, não que eu já tenha feito isso, é porque todas as trutas acabaram. As do tipo brook, as arco-íris, as marrons, as cutthroats, as cutbows, todas.

    Os tigres se foram, também os elefantes, os chimpanzés, os babuínos, a chita. O chapim, a fragata, o pelicano (cinza), a baleia (cinza), a rola-turca. Triste. Não chorei até a última truta nadar contra a correnteza, talvez procurando por águas mais frias.

    Melissa, minha esposa, era uma velha hippie. Não tão velha. Ela era bonita. Nesta história, ela poderia ter sido Eva, mas eu não sou Adão. Estou mais para Caim. Eles não tiveram um irmão como eu.

    Você já leu a Bíblia? Estou falando de sentar e ler a Bíblia como se fosse um livro. Dê uma espiada em Lamentações. É praticamente onde estamos. Muito lamentável. É como ter o coração transbordando como água.

    Disseram que no fim ficaria mais frio depois de ter ficado mais quente. Muito mais frio. Ainda estou esperando. Esta velha Terra é uma surpresa, uma grande surpresa depois da outra desde que se separou da Lua, que gira e gira como o companheiro de um ganso baleado.

    Não há mais gansos. São poucos agora. Em outubro, ouvi o velho balido depois do pôr do sol e os vi, cinco gansos contra o azul frio lavado do céu, no cume das montanhas. Eram cinco, todo o outono, acho; no mês de abril seguinte, nenhum.

    Bombeio à mão o combustível 100LL[1] do avião, tirando-o do tanque do velho aeroporto quando o Sol não está brilhando, e também tenho o caminhão que fazia a entrega do combustível. Mais combustível do que a Fera pode queimar durante toda a minha vida se eu mantiver minhas incursões militares pelas redondezas, que é o que pretendo fazer, tenho de fazer. A Fera é um avião pequeno, um Cessna 182 de 1956, uma beleza de avião. Creme e azul. Imagino que estarei morto antes que a Fera desista do último fantasma. Vou comprar a fazenda. Oitenta acres de leito de rio com relva e milho em uma região onde ainda há um riacho que nasce nas montanhas roxas, repletas de trutas.

    Antes que isso aconteça, farei minhas rondas. Indo e vindo.

    < >

    Tenho um vizinho. Um. Somos só nós em uma pequena região no campo com um aeroporto que fica a poucos quilômetros de distância das montanhas. Um campo de treinamento onde construíram um bando de casas para as pessoas que não conseguiam dormir sem seus pequenos aviões, como golfistas que moram perto dos campos de golfe. Bangley é o nome no documento de seu caminhão velho que não funciona mais. Bruce Bangley. Achei o documento no porta-luvas enquanto procurava um medidor de pressão que pudesse levar comigo na Fera. Um endereço na cidade de Wheat Ridge, Colorado. Eu não o chamo pelo nome, não vejo motivo, somos apenas nós. Só os dois em um raio de pelo menos 13 quilômetros, que é a distância do campo aberto até o primeiro bosque de zimbros ao pé da montanha. Eu apenas digo Ei!. Acima dos zimbros ficam os bosques cerrados de carvalho e de madeira preta. Bom, na verdade, marrom. Mortas pelos besouros, ressequidas. Muitas dessas árvores estão de pé, mas mortas agora, balançando como milhares de esqueletos, suspirando como mil fantasmas, mas não todas. Há faixas de terra de mata verde e eu sou o maior fã delas. Procuro por elas daqui da planície. Vai, vai, vai, cresce, cresce, cresce! Esse é nosso hino de guerra. Grito o hino pela janela enquanto voo baixo sobre a mata. As faixas verdes estão crescendo ano a ano. A vida é obstinada se você lhe der um pouco de ânimo. Juro que elas me escutam. Elas balançam de volta, acenando com seus braços cobertos de folhas de um lado para outro, lembrando mulheres com quimonos. Dão passos minúsculos ou permanecem paradas, acenando, acenando com as mãos nas laterais.

    Vou até lá a pé quando posso. Até os bosques mais verdes. É engraçado dizer isto: não que eu esteja com a agenda ocupada. Subo para respirar o ar diferente. É perigoso, é muita adrenalina, poderia passar sem ela. Tenho visto sinais de alces. Não muito velhos. Se é que ainda existem alces. Bangley acha que não tem como. Tem, sim, mas... Nunca vi um. Tenho visto muitos veados. Levo o calibre .308, atiro em uma corça e a arrasto até um caiaque cujo convés serrei para transformá-lo em trenó. Meu trenó verde. Os veados permaneciam com as lebres e os ratos. A grama nativa permanecia, acho que isso é o bastante.

    Antes de subir as montanhas, sobrevoo a região duas vezes. Uma vez durante o dia, uma vez à noite com os óculos de aviador. Os óculos de aviador são ótimos para ver lá embaixo, através das árvores, se não forem muito espessas. As pessoas parecem sombras verdes pulsantes, até mesmo dormindo. Melhor isso do que não checar. Sobrevoo fazendo uma alça pelo sul e pelo leste, voltando do norte. Quarenta e oito quilômetros, pelo menos um dia para um viajante. Tudo aberto, tudo planície, sálvias e grama, matagais e as antigas fazendas. Os círculos marrons dos campos são como a pegada de uma muleta desaparecendo na pradaria. Cercas vivas, quebra-ventos, metades das árvores caídas, derrubadas pelo vento, algumas ainda verdes por algum gotejamento, ou por estarem ao lado de um riacho. Depois relato tudo para Bangley.

    Percorro os 13 quilômetros arrastando o trenó vazio em duas horas; dali em diante, tenho cobertura. Ainda consigo me mover. Contudo, é um caminho e tanto para voltar carregando um veado. Em campo aberto. Bangley me dá cobertura a partir da metade do caminho. Ainda temos os rádios e eles ainda podem ser recarregados nos painéis solares. São japoneses, coisa boa. Bangley tem um fuzil CheyTac calibre .408 guardado em uma plataforma que ele mesmo construiu. É um fuzil que mede a distância até o alvo. Para minha sorte. Um fanático por armas. Um fanático por armas bastante impiedoso. Ele diz que consegue atirar em um homem a um quilômetro e meio de distância. Já fez isso. Vi mais de uma vez. No verão passado, ele atirou em uma menina que estava me perseguindo pela planície. Uma jovem, uma menina esfarrapada. Ouvi o tiro, parei, saí do trenó, voltei. Ela foi lançada sobre uma pedra, um buraco onde sua cintura deve ter sido quase cortada ao meio. Seu peito arfava, arquejante, a cabeça caída para o lado, um olho negro brilhante, olhando para mim, sem medo, como que perguntando, ardendo. De tudo o que já testemunhei, essa foi difícil de acreditar. Assim mesmo. Assim mesmo, que droga. Por quê?

    Foi o que perguntei a Bangley, por que essa droga?

    Ela teria pegado você.

    E daí? Eu tinha uma arma, ela tinha uma faca pequena. Para protegê-la de mim. Talvez ela quisesse comida.

    Talvez. Talvez ela fosse cortar sua garganta no meio da noite.

    Encarei-o, sua mente ia longe demais, no meio da noite, eu e ela. Meu Deus. Meu único vizinho. O que posso dizer a Bangley? Ele salvou minha pele outras vezes. Salvar minha pele é o trabalho dele. Eu tenho o avião, sou os olhos, ele tem as armas, é o músculo. Ele sabe que eu sei que ele sabe: ele não sabe pilotar, eu não tenho estômago para matar. Se fosse diferente, provavelmente seria um de nós. Ou nenhum.

    Também tenho Jasper, filho de Daisy, o melhor alarme de nossa fronteira.

    Quando estamos enjoados de comer lebres e peixes do lago, caço um veado. Quase sempre tudo o que quero é subir as montanhas. A sensação é a mesma de estar em uma igreja, santificada e fria. A floresta morta balançando e sussurrando, a floresta verde cheia de suspiros. O cheiro almiscarado do refúgio dos veados. Os riachos onde sempre rezo para ver uma truta. Mesmo que fosse bem pequena. Uma velha sobrevivente, com sua sombra verde nadando lentamente contra as sombras verdes das pedras.

    Treze quilômetros de terreno plano até começar a montanha, as primeiras árvores. Esse é o nosso perímetro. Nossa zona de segurança. Esse é o meu trabalho.

    Ele pode concentrar seu poder de fogo na direção oeste dessa maneira. É assim que Bangley fala. Por serem 48 quilômetros até o final, com planícies altas em todas as outras direções, seria mais de um dia de caminhada, mas seriam apenas algumas horas a oeste até as primeiras árvores. As famílias estão a 16 quilômetros ao sul, mas não nos incomodam. É assim que as chamo. Elas são algo parecido com os menonitas com uma doença no sangue que apareceu depois da gripe. Como uma peste, mas que age vagarosamente. Parecida com a AIDS, acho, talvez mais contagiosa. As crianças nascem com a doença, o que faz com que sejam todas fracas e que, todo ano, algumas delas morram.

    Temos o perímetro. Mas e se houver alguém escondido? Nas casas da fazenda. No meio da vegetação. Nos salgueiros ao longo do riacho. Nos regatos também, com as margens em erosão. Certa vez, ele me perguntou: como eu sei? Como sei que ninguém está dentro do nosso perímetro naquela planície toda, escondido, esperando para nos atacar? O que acontece é que consigo ver bastante. Não como a palma da mão, tão simples assim, mas como um livro que li e reli muitas vezes, talvez como a Bíblia para alguns camaradas de mais idade. Eu saberia. Uma frase fora do lugar. Uma lacuna. Dois pontos onde deveria haver um. Eu sei.

    Eu sei, eu penso: quando morrer — não se vou morrer— vai acontecer em uma dessas viagens às montanhas. Cruzando o terreno aberto com o trenó cheio. Atingido nas costas por uma flecha.

    Há muito tempo Bangley me deu um colete à prova de balas, um dos coletes de seu arsenal. Ele tem todo tipo de tralha. Disse que é para proteger de qualquer revólver, flecha, mas, se for fuzil, depende, aí vai da sorte. Pensei naquilo. Devemos ser as únicas almas além das famílias em um raio de centenas de quilômetros quadrados, os únicos sobreviventes, aí vai da sorte. Visto o colete porque ele me esquenta, mas no verão quase não o uso. Quando uso o colete, é como se estivesse esperando que alguma coisa acontecesse. Será que eu ficaria parado em uma plataforma esperando por um trem que não vem há meses? Talvez. Talvez essa coisa toda seja exatamente isso.

    < >

    No início havia o Medo. Não tanto pela gripe até aquele momento; naquela época eu caminhava, falava. Não falava tanto, mas eram os sons do corpo — e da mente, você que o diga. Duas semanas inteiras de febre, três dias entre 40 ºC a 40,6 ºC, sei que cozinhou meus miolos. Encefalite ou algo do gênero. Calor. Pensamentos que já foram concatenados, harmônicos, agora eram confusos, incertos, depressivos, assim como aqueles pôneis noruegueses peludos levados pelo professor russo para o Ártico Siberiano, segundo uma história que eu lera antes. Ele estava tentando recriar a Era do Gelo, com muita grama, fauna e poucas pessoas. Se ele soubesse o que estava por acontecer, teria buscado outro passatempo. Metade dos pôneis morreu, talvez de saudades de suas florestas escandinavas, e a outra metade ficou na estação de pesquisas, alimentada com grãos, mas mesmo assim morreu. É assim que meus pensamentos surgem às vezes. Quando estou estressado. Quando alguma coisa está me incomodando e não me deixa em paz. Meus pensamentos são bons porque têm sua finalidade, mas muitas vezes estão deslocados, é meio triste. Às vezes imagino se os pensamentos não deveriam estar a milhares de quilômetros daqui em um lugar com milhões de hectares de abetos da Noruega. Às vezes não confio em meus pensamentos. Não para fugir do perigo... Provavelmente não é meu cérebro; provavelmente é normal para a situação em que estamos.

    Não quero ficar confuso: estamos há nove anos assim. A gripe matou quase todos, depois a doença sanguínea matou mais. Os que sobraram são na maioria Nada Legais. É por isso que vivemos aqui na planície, por isso faço a patrulha todos os dias.

    Comecei a dormir no chão por causa dos ataques. Sobreviventes, parece que eles selecionavam no mapa. Perto de riacho grande? Sim. Tem água? Sim. Deve ter combustível? Sim. Era um aeroporto? Sim. Qualquer um que soubesse ler saberia, também, que era um modelo de energia sustentável? Sim. Todas as casas têm aquecedor solar e uma BFO funcionando quase que totalmente com energia eólica? Sim. BFO significa Base Fixa de Operações. Também poderia ter dito Caras que Mantêm o Aeroporto Funcionando. Se eles soubessem o que teriam pela frente, não teriam complicado tanto as coisas.

    A maioria dos invasores vinha à noite. Vinham sozinhos ou em grupos, vinham com armas, com fuzis de caça, com facas, vinham até a luz da varanda, que eu deixava acesa, como mariposas em busca da luz.

    Tenho geradores solares de 460 watts na casa onde não durmo. Portanto, uma lâmpada LED acesa a noite toda não é problema.

    Eu não estava na casa. Estava dormindo debaixo dos cobertores a céu aberto atrás da berma, a cerca de 90 metros de distância. É um aeroporto antigo, é tudo planície. O rosnado baixo de Jasper. Ele é uma mistura de Blue Heeler com um focinho grande. Acordo. Chamo Bangley pelo rádio. Para ele, acho que aquilo era esporte. Era mais ou menos uma higiene mental, como subir as montanhas para mim. A berma era alta, uma grande inclinação de terra, nós a deixamos mais alta. Alta o suficiente para andarmos por trás dela. Bangley sobe e se senta ao meu lado no topo da berma, onde já estou à espreita com os óculos de aviador, sentindo sua respiração ofegante. Ele também tem óculos de aviador; na verdade, ele tem uns quatro e me deu um. Ele disse que com o uso que fazemos, o díodo durará dez anos, talvez vinte. E depois? Comemorei meus 40 anos no ano passado. Jasper pegou um fígado (de corça), eu comi uma lata de pêssegos. Convidei Melissa, e ela veio como costuma vir sempre, um sussurro e um arrepio.

    Em um espaço de dez anos, o aditivo não conseguirá manter o combustível em boas condições. Em dez anos, será o fim de tudo. Talvez.

    Metade do tempo, se a Lua está alta, se há estrelas e neve, Bangley não precisa dos óculos. Ele tem uma mira holográfica com ponto vermelho luminoso na lente, ele só mira o ponto vermelho nas silhuetas que se movem, nas que estão paradas, agachadas, sussurrando, mirando na sombra perto do velho contentor de lixo, direciona o ponto vermelho no torso. Bangue. Ele espera o tempo que for necessário, planeja a sequência, bangue, bangue, bangue. A respiração, um pouco antes, fica mais pesada e mais ofegante. Como se ele estivesse prestes a foder alguém, e acho que vai.

    O maior grupo que tivemos foi de sete. Ouvi Bangley se deitar ao meu lado contando baixinho. SOS, ele murmurou e riu como sempre fazia quando não estava feliz. Quer dizer, muito menos feliz que de costume.

    Hig, sussurrou ele, você vai ter de participar.

    Tenho a AR-15 semiautomática, sou bom com ela. Ele me deu a arma com mira noturna. E eu quase...

    Atirei.

    Três deles sobreviveram à primeira saraivada e depois disso tivemos nosso primeiro autêntico combate armado. Mas eles não tinham óculos de aviador noturno e não conheciam o terreno, por isso não durou muito.

    Foi assim que comecei a dormir ao relento. Jamais seria pego em uma armadilha dentro da casa. Como o dragão que dorme sobre a pilha do tesouro, mas não eu. Prefiro ficar atrás.

    Depois do segundo verão, eles foram gradualmente diminuindo, como se uma torneira tivesse sido desligada, ping, ping. Um visitante por estação, talvez, depois nem um mais. Não por pelo menos um ano, depois um bando de quatro marginais que quase acabaram conosco. Foi então que comecei a voar regularmente como se fosse um trabalho.

    Agora não tenho de dormir no chão. Temos nosso sistema, confiamos nele. O Medo é como a lembrança de um enjoo. Você não consegue se lembrar do quanto era ruim ou que você quase pediu para morrer. Mas durmo. Durmo no chão. No inverno, debaixo de uma pilha de cobertores que devem pesar quase dez quilos. Gosto disso. De não estar encaixotado. Ainda durmo atrás da berma, ainda deixo a luz da varanda na entrada acesa, Jasper ainda se encolhe nas minhas pernas, ainda choraminga em seus sonhos, ainda treme debaixo de seu cobertor, mas acho que está quase surdo agora e é inútil como alarme, o que não deixaremos Bangley saber. Bangley... Nunca se sabe o que ele vai fazer. Ele se protege. Pode se ressentir da carne que eu compartilho, vai saber. Ele acha que tudo tem utilidade.

    Já tive um livro sobre constelações, não tenho mais. Minha memória é boa, mas não a memória estelar. Então, invento constelações. Criei uma para o Urso e para o Capricórnio, mas talvez não onde elas devessem estar. Criei uma para os animais que já existiram, os que conheço. Também criei uma constelação para Melissa, seu eu completo está ali, meio que sorrindo, alta, olhando para mim aqui embaixo, nas luzes do inverno. Olhando para mim enquanto a geada enruga meus cílios e infiltra-se em minha barba. Fiz uma constelação para o pequeno Anjo.

    < >

    Melissa e eu morávamos perto de um lago em Denver. A somente sete minutos do centro da cidade, da livraria grande, dos restaurantes, do cinema. Gostávamos disso. Podíamos ver grama, água e montanhas pela janela ampla de nossa casinha. Os gansos. Tivemos um bando de gansos não migratórios e um bando de gansos-do-canadá que vinha no outono e na primavera em grandes formações em V. Misturados com os locais, talvez acasalassem, depois iam embora. Decolavam novamente, em ondas estridentes. Eu sabia diferenciar os gansos de passagem dos selvagens. Pelo menos achava que sabia.

    Em outubro, novembro, andando ao redor do lago nas tardes antes do jantar, apontávamos os gansos um para o outro. Eu sempre achava que ela estava errada. Ela ficava meio brava. Melissa era muito inteligente, mas não conhecia os gansos como eu. Nunca me achei muito, muito inteligente, mas sempre soube coisas instintivamente.

    Quando pegamos Jasper ainda filhote, tive a confirmação: ele corria atrás dos selvagens, que eram ariscos, desconfiados, mas não atrás dos maldosos gansos sedentários, os não migratórios.

    Não tínhamos filhos. Melissa não podia. Fomos a um médico. Ele tentou nos vender tratamentos que recusamos. Estávamos bem um com o outro. Um dia aconteceu, como um milagre. Ficou grávida. Estávamos acostumados um com o outro e eu não tinha certeza se conseguiria amar alguém mais do que a amava. Observava Melissa dormindo e pensava: amo você mais do que qualquer coisa.

    Algumas vezes, naqueles tempos, pescando com Jasper nas águas sulfurosas, chegava a meu limite. Sentia que meu coração poderia explodir. Explodir é diferente de romper, quebrar. É como se não houvesse como conter tanta beleza. Não é isso também, não é só a beleza. É como tudo se encaixa. Essa pequena inclinação de pedras lisas, os penhascos. O cheiro do abeto. Pequenas trutas fazendo círculos silenciosos nas águas negras de uma piscina. E não é preciso agradecer. Apenas ser. Apenas pescar. Apenas subir o riacho, escurecer, esfriar, tudo é um pedaço. De mim, de algum modo.

    Melissa faz parte do mesmo círculo. Um pouco diferente porque estamos comprometidos com algumas almas. Como se eu pudesse segurá-la com cuidado nas minhas mãos em concha, carregando-a delicadamente; o campo, eu não posso, mas ela, sim; mas talvez o tempo todo fosse ela me carregando.

    O hospital St. Vincent era do outro lado do rio. Os helicópteros laranja aterrissaram lá. No final, chegamos a falar sobre pegar um avião e ir para a região oeste, mas já era tarde demais e tínhamos de ficar no hospital, então fomos para lá. Para um dos prédios que foram dominados. Ocupados pelos mortos.

    < >

    Bangley sempre aparece do nada. Estou trocando o óleo. Ele poderia bater na lateral de aço da janela, mas não, ele gosta de me provocar um ataque do coração. Aparece ao meu lado como se fosse um fantasma.

    O que estamos aprontando agora?

    Meu Deus, se eu tivesse algum problema de coração, quem faria suas patrulhas?

    Encontraríamos alguém, não é? Poríamos um anúncio no jornal.

    Seu sorriso forçado vai até os olhos que nunca sorriem.

    De qualquer modo, aposto que consigo pilotar essa porcaria de avião.

    De vez em quando, ele diz isso. É como um aviso. Para quê? Se ele quisesse esse lugar exposto ao vento só para si, poderia ter tido. Há muito tempo.

    Agora Jasper está acordado sobre seu cobertor empoeirado, rosnando. Jasper não tolera Bangley, a menos que seja como visitante em uma situação de emergência. Neste caso, mantém a boca fechada, sabe trabalhar em equipe. Certa vez, logo depois de Bangley aparecer, Jasper avançou em seu braço, fazendo Bangley puxar uma arma do tamanho de uma frigideira, então gritei. Foi a única vez. Eu disse: Se você atirar no cachorro, todos nós morremos.

    Bangley piscou, mantendo seu sorriso irônico. O que quer dizer com todos nós morremos?

    Quero dizer que faço a patrulha aérea, a única maneira de saber como podemos proteger o perímetro.

    Aquela palavra. Era a única palavra que atingia o alvo. Eu quase pude vê-la atravessando seu ouvido pelo canal auditivo até entrar em seu cérebro. Perímetro. Única forma de proteção. Ele piscou. Mexeu a mandíbula de um lado para outro. Fedia. Como sangue velho quando um veado é abatido.

    É a única razão para eu ainda estar vivo. Como você acha que vivo aqui sozinho?

    Assim o acordo foi selado. Sem ao menos uma negociação. Nenhuma palavra além dessas. Eu voava. Ele matava. Jasper rosnava. Deixávamos cada um fazer o que fazia.

    Estava contando que estava trocando o óleo da Fera quando ele apareceu ao meu lado como um fantasma.

    Por que você visita os druidas? Pergunta ele.

    Não são druidas, são menonitas.

    Ele resmunga.

    Coloco a chave do filtro na caixa. Pego os alicates dos arames de segurança.

    Bangley fica parado ali. Sinto seu cheiro antes de vê-lo. Passo o arame pelo buraco do flange na base do filtro, torcendo-o com o alicate. É arame de segurança. Segura o filtro no lugar. Tudo conforme as especificações. Regulamentações da Administração Federal da Aviação (AFA). Não queremos que o filtro de óleo se solte com a vibração, caindo, derramando todo o óleo no ar e destruindo o motor. Já aconteceu. Dizem que todas as regras da AFA resultaram de um acidente real. Então, o fio de segurança .032 talvez seja um tipo de homenagem a algum piloto. Talvez à sua família também.

    Bangley está palitando os dentes com uma lasca de madeira enquanto me observa. Em cima da caixa de ferramentas há um pano quadrado feito de uma camiseta velha. O desenho está apagado, mas consigo ver fileiras de personagens femininas pintadas em rosa: seios grandes, seios pequenos, de todos os formatos e abaixo melões, pêssegos, peitões, ameixas, passas, um grande Cabo na parte de cima. Leio todas as frutas antes de pegá-lo e limpar tudo mais uma vez. Uma pontada aguda de dor. Apenas isso. Dobro o pano. Um desenho. Pelo qual temos uma ligação inata. Dois pequenos arcos ou círculos dos peitos de um desenho conseguem remexer em lembranças, mudança de temperatura, um aperto no estômago, um formigamento na virilha. Acho curioso. Engulo em seco, fico parado por um segundo, respiro.

    Melissa tinha melões.

    O Cabo fica na extremidade de uma península de aproximadamente 1.500 metros de comprimento. Provavelmente está cheio de peixes. Será que há algum sobrevivente como eu no velho aeroporto municipal, trocando o óleo de um avião Maule velho, fazendo voos de inspeção todos os dias e usando um pano feito com uma camiseta escrita Ski Colorado? Pescando em um fim de tarde em um píer dilapidado que ainda fede a creosoto? Fico pensando como deve ser esquiar.

    Por que as camisetas do Colorado nunca têm peitos? Pergunto a Bangley.

    O velho B não tem muito senso de humor.

    Ele vai até uma das paredes do hangar e retira uma caixa com 50 embalagens de Aeroshell, apoiando-a em um banquinho de madeira. A luz do Sol está escondida atrás da laje de concreto da porta da frente aberta. Bangley está usando sua arma pendurada de lado. Noite e dia. Certa vez, ele foi até o lago na parte baixa do rio para pegar um bagre, e

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