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Distorção
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E-book348 páginas4 horas

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Sobre este e-book

Mais horripilante do que isso, está perdendo a capacidade de distinguir entre realidade e distorção. À beira da loucura e sem saber como lidar com sua mente cada vez mais dilacerada, Daniel precisa desvendar depressa o mistério, pois pode haver um assassino à solta em Beldon. Que pode matar novamente
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mar. de 2017
ISBN9788542811001
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    Distorção - Steven James

    1

    Uma semana antes

    Aprimeira distorção ocorreu no velório de Emily Jackson.

    Às 15h54, três minutos antes de acontecer, Daniel Byers estava olhando pela janela do carro, observando as sombras profundas sobre o asfalto à medida que seu pai avançava pela estrada rural do norte de Wisconsin, ladeada por pinheiros e bétulas. Um punhado de folhas de outono agitava-se ao longo da estrada à frente deles. O céu era de um azul de aço.

    Embora ainda fosse setembro, já nevara duas vezes. A maior parte da neve tinha derretido, mas algumas manchas teimosas continuavam nos cantos da floresta que o sol nunca alcançava. Logo haveria mais neve. O inverno não era muito generoso nesta parte do estado.

    – Já estamos chegando? – perguntou Daniel baixinho, sem desviar o olhar da janela.

    O pai permaneceu em silêncio.

    – Pai?

    – A igreja é um pouco depois da Autoestrada Quatorze. Talvez uns quinze minutos.

    Lá fora, uma intrincada rede de folhas passou por sobre suas cabeças. Mergulhou na luz. Tornou a afundar na sombra.

    – E sua dor de cabeça? – perguntou o pai. – Passou?

    Daniel não quis preocupá-lo.

    – Está tudo bem – mentiu ele.

    Prepare-se. Você está quase por ver o corpo.

    De repente, ele sentiu frio e ligou o aquecedor do carro.

    O que, aparentemente, não ajudou muito.

    Treze minutos antes da distorção

    Seu pai diminui a marcha quando chegam ao estacionamento da Igreja Comunitária da Estrada Beldon.

    – Não se preocupe – disse ele a Daniel. – Não vamos demorar muito.

    Daniel não soube o que dizer. Como é que se lida com o fato de uma garota que frequentou o ensino médio com você, que você viu atravessando o corredor alguns dias antes, agora estar morta?

    Eles entraram no estacionamento.

    – Você ouviu o que eu disse, Dan?

    – Ouvi.

    – Não vamos demorar.

    – Certo.

    Entrar na igreja pareceu um pouco estranho. Ele e o pai só tinham ido à igreja duas vezes desde que a mãe os deixara seis meses antes – uma vez na Páscoa e, então, uma semana depois, como se estivessem prestes a adquirir um hábito, mas nunca tiveram o entusiasmo necessário para levá-lo adiante.

    As vagas para estacionar mais próximas do edifício estavam tomadas, de modo que o pai avançou até o fundo do terreno e desligou o motor. Depois de um momento estranho, ele disse o óbvio:

    – Chegamos.

    Nenhum dos dois se mexeu.

    Por fim, o pai deu duas pancadas secas no volante e disse:

    – Tudo bem, vamos lá.

    E abriu a porta.

    – Eu mal a conhecia, papai.

    O pai hesitou.

    – Eu sei – disse ele, ainda sentado no carro, mas com um pé para fora. – Mas é importante estar aqui.

    Daniel sequer havia sido apresentado formalmente a Emily Jackson, nem sabia o nome dela até a notícia chegar. Afinal, ele estava na penúltima série, e ela era caloura, de modo que não faria mesmo sentido que ele chegasse a conhecê-la bem. O fato é que ele estava mesmo triste por ela ter se afogado, estava mesmo – e, contudo, de certa forma, ele se sentia vagamente culpado por não estar ainda mais triste.

    Emily Jackson.

    Uma garota que passava facilmente despercebida.

    Ele tinha visto o que acontecia sempre que ela entrava na cantina e se sentava a uma mesa. De repente, os outros jovens que já estavam por ali se lembravam de alguma coisa que tinham de fazer, levantando-se todos ao mesmo tempo e saindo. Ou quando um grupo de jovens estava conversando no corredor e ela se aproximava: eles apertavam o círculo para que não sobrasse lugar para ela.

    Então, ela passava por eles. Sozinha.

    Ela não achava que eles a tratassem assim de propósito; era coisa que os jovens fazem de vez em quando.

    Sempre que ele a via, ela estava sozinha.

    E agora estava morta.

    Uma garota de quem ninguém parecia querer se aproximar quando estava viva.

    Mas agora o estacionamento estava cheio de carros.

    Agora todos tinham vindo para ver a Emily.

    Agora que ela estava morta.

    Onze minutos antes da distorção

    Daniel e o pai atravessaram o estacionamento em direção à igreja. Ele se pegou notando o que havia nos carros das pessoas à medida que passavam por eles: papéis de lanchonetes e garrafas d’água no chão, o pelo dos bichos de estimação no banco de trás, os brinquedos de bebês e as mochilas. Por algum modo, tudo parecia estar sendo registrado em sua mente mais que o normal. Mais que nunca.

    Um velho com cabelo ralo que estava saindo da igreja acenou para o pai de Daniel:

    – Xerife.

    – Tony.

    Daniel o reconheceu: o Sr. Kettner, o homem que narrava seus jogos de futebol. Então, ele disse:

    – Lamento tudo isso, filho. Sei que vocês estavam na mesma escola.

    Daniel não teve certeza de como responder.

    – Obrigado – foi o que conseguiu dizer.

    O Sr. Kettner hesitou por um instante, como se estivesse pensando no que devia dizer em seguida. Por fim, ele disse ao pai de Daniel:

    – Foi bom vocês terem vindo.

    – Achamos que era importante.

    O Sr. Kettner deu um pequeno suspiro.

    – Uma tragédia. Isso que aconteceu com ela.

    – É verdade.

    Apesar de breve, a conversa parecia já ter durado tempo demais, e ninguém mais sabia como continuar com ela.

    – Então, tudo bem. Vejo vocês depois, Xerife.

    – Tudo bem.

    – Daniel – disse o Sr. Kettner com um aceno de cabeça. Foi sua maneira de se despedir.

    – Até logo, Sr. Kettner.

    À medida que ele se afastou, o pai de Daniel tornou a lhe dizer baixinho:

    – Não precisamos ficar muito tempo.

    Obrigado, pensou Daniel.

    – Tudo bem – respondeu ele.

    E subiram os degraus da igreja.

    2

    Uma dezena de homens e mulheres estava reunida em três grupos à porta da igreja, e, ao passar por eles, Daniel ouviu-os dizer:

    – Ela está com uma boa aparência.

    – Está mesmo.

    – E as flores são bonitas.

    – Ela ficaria muito contente de ver você aqui.

    Surpreendeu-o a estranheza de as pessoas estarem dizendo coisas como essas.

    Emily não podia estar com uma boa aparência, não depois de ter ficado dois dias no fundo do lago Algonquin. E que diferença fazia se as flores eram ou não bonitas? Essa gente não entendia que a garota deitada em meio àquelas flores estava morta, e para sempre? E por que Emily ficaria contente em ver um bando de gente que ela mal conhecia? Por que, se, quando viva, eles a ignoravam?

    E você também. Você nunca conversou com ela. Nem uma só vez.

    Uma pontada de culpa.

    Daniel passou pelo pórtico e entrou na igreja.

    Por todo o santuário, seus amigos e outros jovens que reconheceu serem colegas de escola estavam ao lado dos pais e pareciam pouco à vontade.

    Alguns dos jovens pareciam ansiosos; outros, como Brad Talbot, pareciam aborrecidos. Mas todos pareciam deslocados, com os rapazes usando as gravatas dos pais e as garotas usando roupas escuras e sombrias que as faziam parecer muito mais velhas.

    No ar pairava um cheiro de pinheiro e livros velhos.

    Alguém tocava piano.

    Lá em cima, a poeira flutuava no ar e passava pelas listras de luz que se esgueiravam pelos vitrais altos e estreitos. Essa luz dava a tudo uma aparência irreal e etérea.

    Seus colegas, mesmo os rapazes do outro time de futebol, pareciam tão frágeis. Tão machucados. Algumas garotas choravam, e também alguns dos rapazes – mas Daniel percebeu que estavam fazendo o que podiam para esconder isso. Muitos rapazes estavam olhando para ele, como faziam no campo, enquanto esperavam que ele indicasse a jogada seguinte.

    Isso o deixou sem jeito.

    Lá fora, ele sabia o que fazer, como armar a defesa, como responder. Aqui, não tinha a mínima ideia.

    E evitou os olhares.

    A dor de cabeça de Daniel parecia estar piorando. Ele pressionou o polegar com força contra a têmpora, mas isso não ajudou em nada.

    Educadamente, seu pai pediu licença e foi até o fundo da igreja para conversar com o Sr. McKinney, um dos professores de Beldon High, deixando Daniel sozinho.

    Tudo em torno dele ficou em silêncio, até a música do piano que vinha da frente da igreja parecia ficar mais oca, mais fraca do que devia.

    Ele viu o caixão perto do piano.

    Você a ignorava.

    Não, você apenas não a conhecia. É diferente.

    Tentando afastar esses pensamentos, olhou para a esquerda, onde parecia não haver tantas pessoas. Perto do último banco, Stacy Clern, uma garota que acabara de se transferir para a escola, estava em pé ao lado de uma mulher que Daniel supôs ser sua mãe.

    Stacy era atraente, mas não linda. Cabelo castanho escuro. Olhos suaves. E, ao contrário das garotas fúteis que ele aparentemente atraía como moscas, Stacy parecia o tipo de garota realista e pés no chão com quem ele realmente gostaria de se relacionar.

    Na verdade, ele sempre quis pedir-lhe para sair com ele desde que a viu pela primeira vez na escola, mas nunca teve coragem suficiente para fazer o convite. No campo de futebol ou na quadra de basquete, ele se saía bem – não tinha nenhum problema em saber o que fazer ali. Mas ao lado de uma garota como Stacy, ficaria o dia inteiro procurando a coisa certa para dizer.

    De onde estava, não conseguiu perceber se ela havia chorado, mas a moça parecia realmente triste, e ele teve vontade de ir conversar com ela, de lhe dizer que tudo estava bem, mas não conseguiu imaginar exatamente o que poderia dizer. E duvidou de que teria coragem de dizer qualquer coisa depois de se aproximar dela.

    Por fim, ofereceu-lhe um aceno de cabeça e ela lhe devolveu o mesmo gesto.

    Uma fila havia se formado em direção ao caixão de Emily.

    Todos se moviam lentamente, como sombras animadas, circulando e pairando uns em torno dos outros em grupos compactos. Tudo o que diziam era sussurrado.

    Você tem que conversar com ela.

    De alguma forma, parecia normal e anormal se sentir culpado por não ter conversado com Emily. Ele sentia que agora precisava fazer isso, vendo-a pela última vez. Talvez se redimir, de alguma forma, por não a ter conhecido melhor. Talvez render-lhe a última homenagem – qualquer que fosse ela – o ajudaria a acalmar a vergonha obscura que sentia rastejando dentro dele.

    Daniel entrou na fila.

    3

    Oito minutos

    Havia dezesseis pessoas à frente de Daniel Byers, e ele ficou bem atrás do cara que tirava as fotos de seu time. Uma das garotas de sua classe, Nicole Marten, entregou-lhe um folheto da igreja. A maquiagem ao redor de seus olhos estava borrada.

    – Obrigado – disse ele.

    – É muito triste, não? – comentou ela. Daniel conhecia Nicole há seis anos, uma amizade muito estreita, mas que nunca passou do estágio de apenas bons amigos. – Como é que isso pôde acontecer?

    – É mesmo – replicou ele. – Eu não sei.

    Ela enxugou uma lágrima errante, e, então, sem avisar, encostou-se no ombro de Daniel e lhe deu um abraço. Isso o fez se sentir um pouco observado, mas ele não se afastou. Por um instante, colocou o braço em torno dela; então, ela se ergueu, tornou a esfregar os olhos, deu-lhe um breve sorriso e se afastou para entregar mais folhetos.

    Ele notou que Stacy estava olhando em sua direção.

    Não foi a hora mais conveniente para ver outra garota abraçada a ele. Especialmente uma garota tão popular quanto Nicole.

    Ele enfiou o nariz no folheto que Nicole havia lhe dado.

    No topo do folheto estavam o nome de Emily e sua data de nascimento.

    Mas não a data da morte.

    Ela vivera durante quatorze anos, quatro meses e vinte dias.

    Imediatamente, e sem se dar conta disso, Daniel calculou que ele já vivera 845 dias a mais que ela.

    Ele não abriu o folheto. Não queria ver todos os quatorze anos, quatro meses e vinte dias da vida dela resumidos em um ínfimo parágrafo. Não parecia justo.

    A fila avançou depois que as primeiras pessoas olharam o corpo de Emily, juntando-se a um semicírculo de pessoas de aparência abatida, presumivelmente a família de Emily, em pé junto ao piano.

    Oitocentos e quarenta e cinco dias.

    A ideia de que a morte é o fim, o fim de todos os sonhos e memórias que uma pessoa terá, de cada esperança, de cada sorriso e de cada lágrima… era perturbadora.

    Os adolescentes não deviam pensar em coisas como essa.

    Oitocentos e quarenta e cinco dias.

    O caixão estava enfeitado com flores. Só a parte esquerda havia sido deixada aberta.

    A fila de pessoas desfilava lentamente em direção a ele.

    Alguém havia colocado quinze fotos emolduradas de Emily numa mesa próxima.

    Duas delas eram fotos de festas de seu aniversário quando criança; uma a mostrava na praia andando sozinha. Em outra, ela estava dentro de uma cabana com um homem mais velho que devia ser seu avô. Na foto maior – uma foto de estúdio –, ela estava ajoelhada ao lado de um cão golden retriever. Nas fotos mais recentes, ela usava uma corrente de prata com um pingente em forma de coração.

    Em todas as fotos Emily estava sorrindo, mas Daniel ficou surpreso ao lembrar que nunca a vira sorrindo na escola.

    Duas pessoas passaram pelo caixão e se puseram de lado. À medida que Daniel avançava, um homem que passava tocou-lhe o ombro. O rosto do homem estava abatido e triste. Daniel não o reconheceu.

    – Você era amigo da Emily? – perguntou o homem.

    Na verdade não era. Eu mal a conhecia.

    – Bem… de certa forma.

    O homem balançou a cabeça e tornou a tocar-lhe o ombro, dizendo:

    – Obrigado por vir. Isso significa muito para nós. – E, então, foi-se colocar junto ao piano. Daniel percebeu que provavelmente era um parente de Emily, talvez o pai dela, e lamentou ainda mais por não a ter conhecido melhor, como se, de alguma forma, pudesse ter sido de mais ajuda a esse homem se tivesse sido um bom amigo de Emily.

    Daniel desejou ir até ele e dizer:

    – Sabe de uma coisa? Ela era uma das garotas mais legais que eu já conheci.

    Mas, em vez disso, permaneceu na fila.

    Agora ela estava se movimentando com mais rapidez. Só havia oito pessoas à frente dele.

    Ele gostaria que sua dor de cabeça passasse.

    Ao dar outro passo, ocorreu-lhe que, se Emily tivesse ido para outra escola ou morasse numa cidade a 80 ou 160 quilômetros de distância, ele poderia nem ter ouvido falar de sua morte, e, nesse exato momento, estaria no treino de futebol – que havia sido cancelado em respeito ao funeral – e tudo correria de outra forma. Pessoas anônimas morrem em lugares distantes a cada minuto, todos os dias, mas a morte não parece ter nenhum significado até que, de alguma forma, interfira em nossas vidas.

    Quatro pessoas.

    Por fim, ele viu, de relance, o rosto de Emily Jackson.

    4

    Um minuto

    Na verdade, ele só conseguiu ver o alto do rosto dela, a testa, uma franja loira de cabelo. De algum modo, fizeram com que não parecesse que ela havia ficado embaixo d’água todo aquele tempo, mas, mesmo assim, seu rosto não parecia natural.

    Seus olhos estavam fechados. A acne da testa havia sido coberta com a maquilagem usada para os mortos. Ele nunca tinha pensado nisso, mas alguém da funerária ganhava a vida maquiando os mortos.

    Era assim que essa pessoa pagava as contas.

    Daniel se forçou a não pensar mais nisso.

    Só havia três pessoas entre ele e o cadáver.

    Agora, ele sentiu o coração batendo mais rápido e ficou nervoso devido a um tipo de medo trêmulo e ansioso.

    Então, viu o resto do rosto dela.

    Algumas pessoas dizem que os mortos parecem estar dormindo, mas não era o caso de Emily. Ela parecia morta e mais nada.

    Duas pessoas.

    Então, uma.

    Em seguida, Daniel estava diante do caixão, olhando para o rosto com a palidez da morte de Emily Jackson.

    A distorção

    Os lábios estavam cerrados como os olhos. As mãos, dobradas por sobre o peito.

    Ela parecia menor, mais frágil do que ele se lembrava dela.

    Durante um instante breve e macabro, ele desejou tocar a mão dela, para, de algum modo, confortar esta garota que nunca iria para um baile alegre, nunca ficaria acordada até tarde na noite de formatura, não iria à faculdade, não se casaria nem formaria uma família.

    Como será tocar a pele de uma pessoa morta?

    A ideia se evaporou num redemoinho de medo e repulsa.

    Você a ignorou.

    Ela parecia familiar e estranha ao mesmo tempo.

    E estava quieta, tão quieta.

    E, então, Emily Jackson abriu os olhos.

    5

    Daniel ficou arfante e retrocedeu, chocando-se com a pessoa que estava atrás dele. Ele se virou e viu uma velhinha olhando preocupada para ele.

    – Desculpe – murmurou ele. – A senhora viu aquilo? – perguntou ele, com a voz soando como poeira.

    – O quê?

    – Ela.

    Ele apontou para Emily. E não conseguiu dizer mais nada.

    A mulher se inclinou para o lado e voltou o olhar para o caixão, mas agiu como se não houvesse nada de incomum e olhou para ele com uma leve suspeita.

    Devagar, com o coração martelando, Daniel tornou a olhar para o caixão.

    Um arrepio profundo.

    Emily ainda estava lá, mas tinha virado a cabeça e olhava para ele, com os olhos fantasmagoricamente brancos, sem nenhuma cor. Ela abriu um pouco a boca e dela saiu um desagradável fio de água.

    Ela está morta, está morta, está morta. Isso não está acontecendo. Isso não pode estar acontecendo!

    Ele beliscou o braço com força, mas a imagem de Emily olhando para ele não desapareceu.

    Então, seus lábios se moveram e ele ouviu seu nome pronunciado por uma voz molhada e suave:

    – Daniel.

    Aquilo não era real!

    Bem diante dos olhos dele, algas do fundo macio do lago apareceram no cabelo dela. Suas roupas estavam encharcadas. A cor da pele havia mudado de uma imitação de branco caucasiano para um tom cinza-azulado que devia ser o que viram os dois pescadores quando a encontraram. Então, ela tornou a falar com ele, a voz úmida e gorgolejante, com mais água escapando-lhe da boca a cada palavra:

    – Trevor estava no carro.

    A dor zumbiu dentro da cabeça dele.

    O momento o arrebatou. Ficou petrificado e não conseguia se mover.

    – Trevor não devia estar no carro – disse ela. Então, com um movimento rápido e brusco, ela se sentou. – Encontre os meus óculos – disse ela, estendendo o braço em direção a ele e apertando os dedos mortos em seu braço. – Por favor, Daniel. – E outro fio de água suja saiu de sua boca aberta.

    Ele liberou o braço e tornou a tropeçar para trás, a cabeça latejando, palpitando, e o mundo ficando cada vez mais de um negro vertiginoso. Emily tornou a deitar no caixão e, então, tudo começou a girar num círculo amplo e lento, e ele percebeu que estava no chão da igreja, com as pessoas se inclinando para ele, perguntando-lhe o que havia acontecido, se ele estava bem.

    A escuridão que se enrodilhava em sua mente transformou-se numa brilhante lâmina de luz que penetrava em tudo.

    – Ela está viva – disse ele o mais alto que pôde, mas não conseguiu se fazer ouvir de modo nenhum. – Emily ainda está viva.

    E essa foi a última coisa de que Daniel se lembrou antes de apagar.

    6

    Ele acordou desorientado, os pensamentos nebulosos. Pelo que percebeu, estava deitado em um dos duros sofás do saguão. Seu pai e alguns adultos que não reconheceu estavam olhando para ele.

    As luzes do teto brilhavam acima dele. Ele teve que piscar e desviar o olhar.

    – Dan? – Havia preocupação e alívio na voz do pai. – Você está bem?

    Daniel tornou a piscar. Agora, tudo estava lhe voltando à mente: a entrada na igreja, a aproximação do caixão, a vista de Emily…

    Ela falou com você. Ela o chamou pelo nome.

    – Você está bem? – repetiu o pai.

    – Estou – disse ele, balançando a cabeça. – Ah, ela está…?

    – Quem?

    – A Emily. Ela está… – Puxa, isso ia soar estranho. – Ela está mesmo morta?

    O pai confirmou com um sombrio aceno de cabeça.

    – Podemos conversar mais sobre isso em casa, certo?

    – Então ela…?

    – Está.

    A visão de Emily no caixão, a visão da água saindo de sua boca, o som gorgolejante de sua voz, sua mão agarrando-lhe o braço com firmeza, tudo tinha parecido tão real…

    Como isso tudo podia ter acontecido se ela estava morta?

    Mas também não podia ter sido real. Emily tinha se afogado e estava morta, e os mortos não abrem os olhos, não se sentam no caixão, não conversam com a gente e, com certeza, não agarram nosso braço.

    Você só está vendo coisas. É só isso. Sua mente está lhe pregando peças.

    Mas tudo parecera tão real quanto a conversa que estava tendo com o pai.

    Ele ainda estava tonto e fez um pequeno esforço para se levantar. Duas pessoas que estavam ao lado do pai abriram-lhe caminho. Então, as outras pessoas fizeram e mesma coisa, até que Daniel ficou sozinho com o pai.

    – Você desmaiou – disse-lhe o pai, como se estivesse antecipando uma pergunta que, na verdade, Daniel nem tinha a intenção de fazer.

    – Eu nunca desmaiei antes.

    – Foi a dor de cabeça.

    – Não sei.

    O pai o ajudou a ficar em pé e, entre os olhares curiosos e ansiosos de alguns de seus colegas de classe, os dois saíram da igreja.

    – Acho que foi o choque – disse o pai. – Sabe, o choque de vê-la daquele

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