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Ousadia em estar feliz
Ousadia em estar feliz
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E-book469 páginas4 horas

Ousadia em estar feliz

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Sobre este e-book

Que desafios você enfrenta no dia a dia para vivenciar a sua felicidade? E por que não somos verdadeiramente felizes? Se fizermos essas perguntas a qualquer pessoa, certamente obteremos as mais diferentes respostas. Por meio de 27 obras cinematográficas dos mais diferentes gêneros e da análise dos personagens, o tema felicidade é debatido aqui sob a ótica das mais diversas correntes científicas: Filosofia, Sociologia, Neurociência, Psicologia e até Economia. Na contemporaneidade, vemos a humanidade cada dia mais "perdida" em meio a opções e obrigações para ser feliz, mas nem todos estão preparados para vivenciar a felicidade. Debateremos o porquê, bem como refletiremos sobre como a vida pode ser melhor se estivermos felizes. Como Günther Anders escreve: "mudar o mundo não basta. Nós o fazemos de qualquer maneira. E, em larga medida, essa mudança acontece até sem a nossa colaboração". Que tal fazermos parte dessa mudança também?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de jul. de 2017
ISBN9788542812312
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    Ousadia em estar feliz - Dinael Corrêa de Campos

    Cinema.

    Primeira cena

    É isto um homem?

    Vocês que vivem seguros

    em suas cálidas casas,

    vocês que, voltando à noite,

    encontram comida quente e rostos amigos,

    pensem bem se isto é um homem

    que trabalha no meio do barro,

    que não conhece paz,

    que luta por um pedaço de pão,

    que morre por um sim ou por um não.

    Pensem bem se isto é uma mulher,

    sem cabelos e sem nome,

    sem mais força para lembrar,

    vazios os olhos, frio o ventre,

    como um sapo no inverno.

    Pensem que isto aconteceu:

    eu lhes mando estas palavras.

    Gravem­-nas em seus corações,

    estando em casa, andando na rua,

    ao deitar, ao levantar;

    repitam­-nas a seus filhos.

    Ou, senão, desmorone­-se a sua casa,

    a doença os torne inválidos,

    os seus filhos virem o rosto para não vê­-los.

    Primo Levi

    Do que me nutro, me destrói

    Vai, vai agora e trabalha com coragem

    em todas as imagens em ti aprisionadas,

    para que as sobrepujes, porém, não as conheces.

    Rainer Maria Rilke

    Nietzsche (2016, p. 19), em O crepúsculo dos ídolos, escreve: na Escola Bélica da Vida – o que não me faz morrer me torna mais forte, uma verdade que poderia ser incontestável se não fosse a pujança de uma necessidade diária nossa: nos sentirmos vivos, e não tão somente sobreviventes em nossa sociedade. Ao optar por viver nosso cotidiano, o desejo que aflora é o de que possamos nos relacionar com o mundo, sem máscaras, sermos verdadeiros em nossos pensamentos e ações, estando nossos relacionamentos pautados na mais absoluta verdade, e que de fato ocorra o encontro com o outro para que assim estejamos felizes.

    No entanto, não é fácil, pois sempre temos a sensação de que estamos respirando por trás de uma máscara que julgamos precisar usar, que necessitamos da representação de um papel, de uma personagem, o que pode vir a definir nosso estilo de vida, nossa maneira de encarar o dia a dia, nossa predisposição para realizar algo em busca da felicidade.

    Muitas teorias explicam qual é o comportamento do homem na atualidade; atualidade definida aqui como pós­-modernidade, que a todo instante demanda respostas para nossa adaptação pessoal, profissional, afetiva, institucional, emocional e tantas outras… Autores como Freud, Jung, Adler, Rollo May, Rogers, Erikson, Touraine, Bauman, Tillich, entre outros, tentam explicar através de suas teorias como se constitui a máscara, a persona, a personalidade que nos fará sobreviver às demandas sociais para nossa convivência (e até sobrevivência por vezes).

    As diversas teorias de personalidade produzem conhecimentos para que possamos compreender o homem contemporâneo: Freud (1902), com sua teoria psicanalítica; Jung (EM: MONTE; SOLLOD, 2003), com sua psicologia analítica; Adler (EM: ALEXANDER, EISENSTEIN, GROTJAHN, 1966), com os preceitos da psicologia individual; Rollo May (1953; 1960), com sua fenomenologia existencial; Rogers (1981; 1967) e as bases da teoria humanista e de autorrealização; Erikson (1998), com a psicologia psicanalítica do ego; Touraine (1998) e sua sociologia da ação através do resgate do sujeito; Bauman (2005; 2001a; 2001b; 1997) e sua visão sociopsicológica do homem contemporâneo (líquido); Tillich (1952) questionando nossa existência hoje; e tantos outros pensadores que também querem compreender por que nos aprisionamos atrás de máscaras que nos possibilitam manifestar uma persona.

    São pertinentes as colocações Monte; Sollod (2003, p.1) que se utilizam de Allport e Freud para explicar que:

    Persona provém de uma expressão latina mais antiga: personare, que significa soar através de, emitir som através de, embora Freud, por sua vez, utilize o termo caráter, e não personalidade, tanto quanto a maioria dos pensadores e teóricos europeus, que preferem utilizar o termo caráter (derivado da palavra grega, que significa entalhe ou impressão, algo inato). Por outro lado, os estadunidenses dão ênfase à palavra personalidade, que deriva de persona, ou máscara. Assim sendo, Allport afirma, em se tratando da diferenciação, que o termo personalidade dá mais ênfase às relações sociais, à aparência e ao contato com o mundo, enquanto a caracterologia europeia acentua mais o que está gravado por dentro.

    Uma breve reflexão se faz necessária à medida que apresentamos a necessidade de nos fazer soar, emitir­-nos, independentemente de nos apoiarmos na teoria europeia ou estadunidense, através da máscara. Ou seja, em detrimento da máscara que use, em qualquer situação, queremos nos fazer ouvir, pois somos vivos e nem sempre concordamos com os papéis que representamos, muitas vezes nos obrigando (ou sendo obrigados) a representar para que, na dinâmica social à qual pertençamos, possamos buscar equilíbrio mental. Mas por que concordamos, aceitamos, nos obrigamos a papéis que exigem o uso de máscaras? Talvez a resposta seja: por questão de sobrevivência, quer emocional, quer afetiva.

    Os pressupostos da teoria de Adler (EM: ALEXANDER, EISENSTEIN, GROTJAHN, 1966, p. 86ss), por exemplo, enfatizam as metas, os planos e os valores das pessoas que adquirem de si e para si. Ora, uma vez que vivemos em uma sociedade em que as metas são postas e impostas (nos referimos a qualquer tipo de metas) e somos obrigados a, cada vez que as alcançamos, superar mais e mais os planos (pessoais, profissionais), adquirimos valores que muitas vezes não supúnhamos serem nossos. No convívio social, é comum criarmos necessidades e as incorporarmos ao nosso modo de vida, e muitas vezes nem imaginamos que caímos (ou nos deixamos cair) em uma armadilha idiossincrática. Palahniuk (1996, p. 44s) descreve muito bem essa armadilha:

    Você compra móveis. E pensa, este é o último sofá que vou comprar na vida. Compra o sofá, e por um par de anos fica satisfeito porque, aconteça o que acontecer, ao menos tem o seu sofá. Depois precisa de um bom aparelho de jantar. Depois de uma cama perfeita. E cortinas. E de tapetes. Então cai prisioneiro de seu adorável ninho, e as coisas que antes lhe pertenciam passam a possuir você […]. Eu tinha uma coleção de mostardas especiais, algumas granuladas, outras em pasta como nos pubs ingleses. Tinha catorze sabores de molho para salada sem óleo e sete espécies de alcaparras. Eu sei, eu sei, uma casa repleta de condimentos e nenhuma comida de verdade.

    Pode­-se dizer que é desta relação com as coisas que nos tornamos misantropos e passamos a acreditar que ter é melhor que ser; uma vez que da relação com o objeto também nos sentimos, nos tornamos objeto, pois passamos a viver em função de sua manutenção. Já não nos bastam catorze sabores, é preciso mais. Só tenho sete espécies de alcaparras? Alguém deve ter mais que eu; logo, eu preciso ter mais. E isso se torna um equívoco em relação a nós mesmos, pois, como escreve Schopenhauer (2006, p.12), um equívoco em relação à minha pessoa, visto que me tomei por um outro e não por mim mesmo.

    Por sua vez, a teoria humanista e de autorrealização afirma que as pessoas são motivadas por um desejo de crescer a alcançar a plenitude do seu potencial. Nada mais humano. Contudo, o desejo de crescer pode assumir uma dimensão na qual o outro me serve como base, plataforma para meu crescimento; vejo o outro como uma coisa que deve me servir. Confundimos potencial com poder desmedido, descontrolado, em que o que importa é a competição para determinar quem é o mais poderoso, o mais forte, o que tem maior poder, o que possui mais. A motivação para o desejo de crescer e alcançar a plenitude do seu potencial se concentra em reduzir o outro a um inimigo e aniquilá­-lo. Nunca antes as palavras de Hobbes (2006, p. 23), um estado de guerra e não uma guerra qualquer, mas sim uma guerra de todos contra todos, foram usadas com tanta ênfase. Sim, nos apercebemos da nossa tartufice para com essas palavras.

    As máscaras servem para isto: para assumirmos os papéis de tiranos, competidores desmedidos, gladiadores vorazes, homens impetuosos, mulheres destemidas (ou o contrário), que não se deixam abater, não se deixam abalar por nada, porque o mundo precisa de pessoas que façam a diferença, mas que na verdade, sejam como a maioria que aí está. A máscara serve para isto: para contar o que vivo, mas não sou eu, e sim meu personagem, que assume determinadas situações para que eu sobreviva no unânime, na coesão, em uma realidade inconsútil, de vida a ser vivida. Ou, como diz Bauman (2001a, p.15) as vidas vividas e as vidas contadas são por esta razão, estreitamente interconectadas e interdependentes […] as histórias de vidas contadas interferem nas vidas vividas antes que as vidas tenham sido vividas para serem contadas.

    Em certas dinâmicas familiares, por exemplo, é comum encontrarmos aquele filho (ou filha) problema que nada mais faz do que desempenhar o papel de bode expiatório, para que, naquela dinâmica familiar, haja uma pseudo­-harmonia. Explico: dinâmica familiar se caracteriza como as forças psíquicas que atuam entre os componentes de determinada família; se determinado membro possui uma necessidade de amor não suficientemente satisfeita pela realidade, passará a desempenhar papéis nos quais buscará essa satisfação.

    Nas palavras de Richter (1970, p. 55), uma família pode usar de um de seus membros […] para descarregar a tensão coletiva que, caso contrário, seria insuportável. É nesse sentido que qualquer membro pode assumir um papel, utilizando a máscara de um bode expiatório, cujo objetivo nada mais é do que aliviar os outros membros familiares de possíveis angústias dentro daquela dinâmica familiar – os acusadores de suas responsabilidades –, bem como para lhes fortalecer o sentido de poder e integridade.

    De fato, assumimos qualquer papel para nos sentirmos amados. As máscaras servem, então, para nos esconder das reais necessidades das quais sentimos falta: ao invés de pedir carinho, atenção, dizer que estamos necessitados de ser amado, é preferível assumir a máscara da pessoa desequilibrada, do respondão, da(o) louca(o), que tudo diz sem refletir, que faz as coisas sem pensar. Em outras palavras, a pessoa se anula para salvar a estrutura familiar, que está doente, preferindo ser ela o membro a assumir tal doença a ver a família toda doente. A patologia se instaura a partir do momento em que aquele que usa a máscara passa a acreditar ser esta personagem a única forma de (sobre)viver.

    As máscaras nos protegem dos infortúnios da ansiedade, definida por Rollo May (1953, p. 27s) como a experiência da ameaça iminente de não ser, ou ainda, estado subjetivo do indivíduo que percebe que sua existência pode ser destituída, que ele pode perder a si mesmo e ao seu mundo, podendo passar a ser nada, e ser nada na contemporaneidade é praticamente cometer suicídio.

    Ora, as máscaras são úteis para outro fim: mostrar que sou alguma coisa… e, com isso, caímos em uma armadilha, pois quanto mais nos utilizamos de máscaras mais comprometemos nossa existência, porque a máscara não pode existir, mas a pessoa que a carrega sim. Esta, porém, com o passar do tempo, fica mais e mais sufocada, sem ar, com um peso (da máscara) insuportável para carregar. Ao mesmo tempo, passamos a acreditar que sem a máscara não somos nada nem ninguém.

    Quanto mais nos acostumamos com a máscara, mais nos afastamos dos seis princípios ontológicos propostos por Rollo May (1953, que se baseia na coragem de ser de Tillich, (1952) EM: MONTE; SOLLOD, 2006, p. 271) e, consequentemente, da nossa autoafirmação como a coragem de ser. A saber:

    1. Cada pessoa está centrada em si e vive a vida pelo significado que ela dá a esse centro. 2. Cada pessoa é responsável pela mobilização da coragem para proteger o self, afirmá­-lo e aprimorar a continuação da sua existência. 3. As pessoas precisam de outras com quem possam ter empatia e com quem possam aprender. 4. As pessoas são vigilantes quanto aos perigos potenciais para o seu senso de identidade. 5. As pessoas têm consciência de si; vivenciam a si mesmas como sujeito e como objeto. 6. A ansiedade se origina, em parte, da percepção da pessoa de que a própria existência ou o sentido do ser podem terminar.

    O uso frequente da máscara nos impede de centrar e viver do significado que damos à vida, uma vez que a vida que vivemos com a(s) máscara(s) não é aquela que queríamos viver. Isso porque, ao invés de viver nossas opções/renúncias, o uso da máscara nos impele a viver para sua manutenção. O significado que passamos a dar não é o de valorizar nossas escolhas, nossas renúncias, mas queremos significar a máscara, os comportamentos que manifestamos para que ela signifique alguma coisa, e assim a máscara, pode vir a tornar nosso modo de viver e ser, influenciando o nosso self.

    Utilizo a definição de self como a imagem de si mesmo, ou como é exposto por Taylor (1989, p. 52), "o que sou enquanto self, minha identidade, define­-se essencialmente pela maneira como as coisas têm significação para mim".

    Assim é que, a partir do momento que tomamos as máscaras que utilizamos como nós mesmos, em nada estamos contribuindo para nossa existência, e sim, da máscara e dos papéis que representamos. Fica claro que, com a importância que a máscara toma em nossa existência, tendemos muito mais a valorizar a manutenção da máscara a aprimorar nossas estratégias para protegermos a nós mesmos; aliás, passamos a adotar como padrão a utilização da máscara para nos proteger dos possíveis sofrimentos que o mundo pode nos infligir.

    Uma vez que a máscara passe a se tornar nosso modo de ser, nos tornamos prisioneiros do sentimento de perder o ser – a expressão utilizada por Kierkegaard (EM: MONTE; SOLLOD, 2006, p. 272) em alemão, Angst, traz a conotação de angústia e medo –, e mais uma vez desenvolvemos atitudes para justificar, alimentar e dar sentido à máscara, esquecendo­-nos de nós mesmos, de nossa essência, de nossos desejos. Passamos, então, a ser escravos(as) dos desejos da máscara que carregamos, o que exige que representemos os papéis a ela designados. Medo e angústia nos acompanham, dando uma dimensão tamanha ao medo da solidão, criando em nós a necessidade de sermos estimados, queridos, amados, adorados. Nas palavras de May (1953, p. 29):

    A aceitação social, o ser estimado tem tanta importância porque mantém à distância esta sensação de isolamento. Quando a pessoa está cercada de cordialidade, imersa no grupo, é reabsorvida, como se voltasse ao ventre materno, em simbologia analítica. Temporariamente esquece a solidão, embora ao preço da renúncia à sua existência como personalidade independente. Perde assim a única coisa que a ajudaria positivamente a vencer a solidão a longo prazo, isto é, o desenvolvimento de seus recursos interiores, da força e do senso de direção, para usá­-los como base de um relacionamento significativo com os outros seres humanos. […] pois gente vazia não possui a base necessária para aprender a amar.

    Por certo, aprendemos a amar no convívio com outras pessoas que influenciam nosso modo de ver o mundo, tanto quanto nós influenciamos a maneira de o outro ver o mundo, possibilitando um encontro de selfs. Mobilizar nossa coragem para proteger o self exige que tenhamos clara a diferença entre ansiedade e medo, a qual May (1983 EM: MONTE; SOLLOD, 2006, p. 272) diferencia:

    A diferença é que a ansiedade atinge o ponto central de sua autoestima e seu senso de valor como pessoa, que é o aspecto mais importante da experiência que tem de si mesmo como ser. O medo, pelo contrário, é uma ameaça à periferia da sua existência; ele pode ser objetivado e a pessoa pode ficar de fora e olhar para ele.

    Pelo exposto, a ansiedade é muito mais nociva que o medo – embora Novaes (2007, p. 13) nos diga que o medo é o resultado da sensação permanente da fragilidade do homem diante de um perigo difuso.

    Aquele pressuposto de que aprendo com o outro através da empatia, e pela empatia ensino ao outro, é ameaçado pela sensação de que o outro pode nos fazer sofrer, e nós a ele, afinal, como disse Sartre (1944), o outro é meu inferno, pois é o outro quem diz que somos falhos e diferentes, e aponta nossas imperfeições. O outro é capaz de nos expor a um mundo que não tolera o mínimo de diferenciação ou falha, e a empatia, o estar dentro do sofrimento do outro, parece cada vez mais um artigo de luxo que arduamente buscamos encontrar nas relações que estabelecemos sem que percebamos que o que oferecemos para o outro é a máscara, e não nosso self, e que julgamos estar protegido por ela.

    Creio ser importante nos determos neste antagonismo: ao mesmo tempo que temos medo do sofrimento que o outro possa nos causar, também temos receio de proporcionar tal sofrimento ao outro, o que poderá impeli­-lo para longe de nós, ocasionando a sensação de abandono, de solidão. Diante da possibilidade de que o outro possa me fazer sofrer (e eu ao outro), constantemente desistimos das relações significativas, oferecendo ao outro os papéis por nós desempenhados para serem aceitos, bem como nos relacionamos com os papéis, máscaras, que o outro nos oferece. Não há relação significativa, não há encontro, apenas dependências devoradoras.

    Ao nos relacionarmos com as máscaras a nós oferecidas (e às que oferecemos), podemos estar incorrendo em um grave erro: superproteger nosso senso de identidade; identidade esta que julgamos certa, intocável e inabalável, adquirida através do nosso relacionamento com a sociedade que aí está. O fato que se faz presente é: que valores a sociedade atual nos apresenta para que formemos nossa identidade? Não estamos perpetuando a frase estou tão cansado de mim mesmo, a ponto de estarmos cansados também dos outros?

    Bauman (2001a, p. 13), em A sociedade individualizada, aponta quatro fenômenos que norteiam a vida do homem contemporâneo, os quais influenciam a constituição de sua personalidade, de seu self, à maneira como constitui sua identidade:

    1) a busca desesperada por comunidades; 2) a imortal demanda por regimes punitivos novos e melhorados; 3) o culto ao corpo e, 4) a crescente popularidade de drogas produzidas: química, eletrônica ou socialmente.

    Penso não ser fácil para o homem contemporâneo admitir que, na verdade, ele julga suas necessidades como sendo suas, e que as incorpora ao seu modo de ser, para ser aceito socialmente, afastando de vez o sentimento de solidão. As máscaras têm sua serventia para manifestar que não necessitamos do outro, do convívio em comunidade, pois desenvolvemos ao longo dos anos nossa autossuficiência, lançando mão da tecnologia e das diversas escolhas que estão à nossa volta, vivendo assim no engodo exposto por Schwartz (2004, p. 16s):

    À medida que a quantidade de escolhas cresce, seus aspectos negativos aumentam gradativamente até nos sufocar. Quando isso acontece, a escolha deixa de ser fonte de liberdade e passa a ser fonte de fraqueza. Pode-se dizer, até, que passa a nos oprimir.

    Tal sentimento de se sentir oprimido advém do motivo de não nos sentirmos autônomos, mas abandonados na neurótica necessidade de realizar escolhas sem erro algum.

    Também não é fácil admitir que buscamos relações punitivas nas quais podemos nos tornar bodes expiatórios, como se este papel fosse o único a que podemos nos reportar para alimentar nossa fantasia de salvadores das relações através da imolação do corpo, pois, afinal, no momento em que as relações punitivas se estabelecem, e muitas vezes através de relações sadomasoquistas, é no corpo que queremos ver manifestada a punição. Sim, é no mesmo corpo no qual queremos sentir a infinidade de sensações de prazer e estímulos que nos faça sentir vivos, desejados, cobiçados e, em última instância, amados, nem que para isso tenhamos que lançar mão das diversas drogas contemporâneas: a tecnologia que nos oprime, as diversas drogas psicotrópicas que prometem até o rejuvenescimento; até os pensamentos sociais de segregação e políticas antissemitas. Ocorre o que afirma Foessel (2008, p. 108): o excesso de possibilidades e nenhuma vocação particular impedem que o herói liberal encontre a si mesmo.

    Todo o exposto anteriormente pode impedir que as pessoas tomem consciência de si como sujeito, tendendo a se tornarem muito mais objeto nas relações que estabelecem, passando a ser esta, então, a principal função da máscara: transformar os sujeitos em objeto, através da perpetuação do paradigma individualista, que não quer nem mudança social nem mudança individual profunda, impedindo a transformação do indivíduo em sujeito. Como diz Enriquez (2001, p.49) o indivíduo para se tornar um sujeito falante e atuante, deve poder se interrogar sobre si mesmo, e as máscaras impedem esse questionamento, uma vez que sua principal função é a de nos fazer amados, queridos, nem que seja através do desempenho de papéis.

    O que queremos é protelar ao máximo a ansiedade de que nossa existência possa acabar de uma hora para outra, sem que nos sintamos significativos ou que tenhamos sido importantes para o outro. O fato é que não nos apercebemos que oferecemos ao outro não nossa existência, nossa maneira de ser e encarar o mundo, mas uma máscara com a qual o outro tem que se relacionar, o que com o tempo vai perdendo o significado, pois o outro – tanto quanto nós – também está em busca de relacionamentos afetivos significativos. É um conluio que se estabelece sem percebermos o que estamos fazendo para sobreviver nas estruturas sociais que aí se encontram.

    Questionar as estruturas sociais é praticamente uma loucura, pois significa colocar em risco o equilibrium que aí está. A referência que faço ao filme Equilíbrium (2002) – num mundo futuro em que a liberdade é proibida, os rebeldes são os verdadeiros heróis – é pertinente, pois nos leva a pensar se estamos preparados para não tomarmos a droga que impede de sentirmos o que verdadeiramente queremos e temos que sentir.

    É certo, contudo, que constantemente temos optado por ingerir a pílula azul à vermelha (refiro­-me ao filme Matrix (2002), e às opções oferecidas a Neo…), e por permanecer com a máscara para olharmos à nossa volta e ver o reflexo de nós mesmos, com máscara, nos outros. É também com (e através) das máscaras que olhamos e aceitamos a realidade que se nos apresenta. Contudo, intimamente queremos acordar, quebrar as máscaras que utilizamos, e desejamos controlar nossa vida. No entanto, nada disso acontece sem luta.

    A luta à qual me refiro é aquela na qual temos que rever nossas crenças, valores e virtudes, quebra de paradigmas para nosso autoconhecimento, o que, nas palavras de Palahniuk (1996, p. 56), significa nos perguntar: quanto você pode saber sobre si próprio se nunca entrou numa luta?. Essa luta nada mais é do que o resgate do sujeito proposto por Touraine (1998, p. 73): o sujeito é o desejo do indivíduo de ser um ator. A subjetivação é o desejo de individuação. Ser um ator é diferente de ser uma personagem, pois o ator é quem dá vida à personagem, e não como ocorre constantemente, em que acreditamos ser a máscara/personagem quem nos dá

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