Linguagem e letramento na educação dos surdos: Ideologias e práticas pedagógicas
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Linguagem e letramento na educação dos surdos - Paula Botelho
Paula Botelho
LINGUAGEM E LETRAMENTO
NA EDUCAÇÃO DOS SURDOS
Ideologias e práticas pedagógicas
4ª edição
Dedico este livro a todos aqueles às voltas com a aquisição e o uso de uma língua estrangeira, seja ela escrita, oral ou de sinais: que o temor do erro, da vergonha e do ridículo não constituam impedimentos ao aprendizado.
A Patrícia Luiza, sensível crítica dos discursos sobre os surdos e a surdez.
A Robert E. Johnson, generoso e precioso
interlocutor no debate sobre os fundamentais problemas da educação dos surdos.
INTRODUÇÃO
Fundamentalmente, minhas questões vêm de meu trabalho com educação de surdos e educação especial por quase duas décadas no Brasil.
Como terapeuta ocupacional, trabalhei em programas de transição de jovens e adultos da escola para o trabalho, aconselhamento profissional, desenvolvimento de competências sociais e em programas clínicos. Essas experiências possibilitaram análises críticas de processos de aprendizagem e de construção da autonomia. O trabalho com crianças seriamente incapacitadas muito me ajudou a pensar nas sérias implicações da utilização de modelos clínicos na Educação.
Como professora, trabalhei com crianças, adultos e adolescentes surdos em escola pública de ensino básico, em um contexto onde muitos possuíam a crença de que não eram capazes ou inteligentes o suficiente para aprender. Isto confirmou meu interesse em entender sobre as condições que envolvem a construção do conhecimento, o aprender e o ensinar.
Também os alarmantes resultados escolares dos surdos me instigaram, bem como a recusa do fracasso escolar, por grande parte de seus educadores. Testemunhando a mesma atitude ao longo dos anos, como um genérico e quase universal padrão no campo da educação dos surdos, venho perguntando-me através de quais mecanismos a contradição é recusada e como sistemas de crença trabalham para manter a percepção de que a realidade não mudou, quando há evidência contrária.
Outras experiências fomentaram o desejo de entender outros temas, que também trato neste segundo livro. Entre eles, como uma nova proposição política opera fazendo crer que há um novo paradigma, quando não há. De que modo o preconceito, o estigma e o poder constituem marcas na interação de pessoas estigmatizadas. A estas somam-se minhas perguntas sobre como é mantida a ideia da supremacia de uns sobre outros. Como, por exemplo, se sustenta a ideia de que ser ouvinte e usar uma língua falada é ser um tipo especial de pessoa? De que modo a necessidade de acesso à língua falada se converte em argumento para advogar a oralização dos surdos como condição de letramento, ou para tentar transformá-los em ouvintes?
Abordo o caso dos surdos por ser fruto de grande parte de minha experiência de trabalho e pesquisa¹, porque traz consigo muitas contradições e porque é marcante no campo a ideia de normalizá-los. Seja através da inclusão escolar, seja através de outras formas, muitos surdos constituem identidades que se miram na opressão e que passam a considerá-la necessária ao crescimento pessoal.
Perguntar é se pôr a pensar sobre a realidade. Sobre o que vemos e o que ouvimos os outros dizerem. Ou calarem. Uma primeira abertura face à realidade, quando ficamos inesperadamente afetados, ao percebermos algo inédito, diferente ou absurdo, até então não notado, e que nos coloca em pasmo (ROCHA DE PAULA, 1994, p. 66-7).
Esse movimento de notar a realidade, perceber suas ambiguidades, transcender o óbvio, captar os sentidos dos gestos, das palavras e dos silêncios é dependente de uma descrição densa da realidade, em oposição à uma descrição superficial: implica em aprender a distinguir quando um movimento de contração de pálpebras para piscar representa um sinal conspiratório, um tique nervoso, ou alguém que imita uma das duas piscadelas (RYLE, apud GEERTZ, 1978, p. 15-7). Em outros termos, fazer pesquisa é saber reconhecer as diferentes piscadelas.
De novo há que salientar que o caso dos surdos constitui o caso por circunstância profissional. Nada tem em si de exótico ou inédito. Por ser uma ilustração, pode vir a iluminar práticas profissionais em outros campos.
¹ BOTELHO, P. A leitura, a escrita e a situação discursiva de sujeitos surdos: estigma, preconceito e formações imaginárias. Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, 1998. (Dissertação de Mestrado)
BOTELHO, P. Segredos e silêncios na educação dos surdos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1998.
VARIÁVEIS INTERVENIENTES
E NÃO INTERVENIENTES
NA CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM,
DO LETRAMENTO E DA INTERAÇÃO
Grau de perda auditiva:
a quantidade de decibéis faz diferença?
A perda auditiva tem sido considerada, por alguns, variável interveniente nas possibilidades de sucesso escolar dos surdos. Acreditam alguns que um surdo profundo tem maiores dificuldades pedagógicas em comparação àquele cuja perda auditiva tem grau menos acentuado e que, teoricamente, tem resultado escolar e pedagógico mais satisfatório.
Todavia, quando se concebe a surdez como uma experiência visual, a classificação das perdas auditivas segundo o grau não é fator determinante dos resultados. Discordam desta afirmação aqueles profissionais que advogam modelos clínicos para os surdos, para quem ignorar a classificação dos graus de perda auditiva é, no mínimo, falta de embasamento científico. Obviamente, a contestação faz parte da situação argumentativa, em busca de adesão à ideia. Também tem como propósito salvaguardar espaços no mercado de trabalho, pois, se a impropriedade do modelo clínico é notada, terão de ser fechados consultórios, em escolas e em outras instituições². Os adeptos da ideia da relevância das perdas auditivas para a proposição de modelos educacionais ou para a diferenciação dos resultados pedagógicos desconhecem completamente o fato de que os surdos se orientam a partir da visão, ainda que com seus restos auditivos, maiores ou menores, façam algum uso das pistas acústicas. Em minha experiência de quase duas décadas trabalhando com surdos, também acompanhei, no âmbito pedagógico, adolescentes com perdas auditivas leves e concomitantes dificuldades cognitivas. Como declara com propriedade Sanchez (1996, p. 19), os hipoacústicos frequentemente não compreendem o que dizem seus professores ouvintes nas escolas regulares onde são alunos e, por isso, fracassam. Também não têm uma identidade definida – não sabem se são surdos ou ouvintes – e estão comprometidos certos níveis de abstração, pois não desenvolvem linguagem completamente. Embora consigam sobreviver nas escolas para ouvintes, o fazem graças a enormes esforços e à indulgência de seus professores. Estes acobertam suas dificuldades e os promovem a níveis escolares mais avançados, independente de obterem o resultado previsto para a promoção, mantendo a ilusão de ausência de problema.
Insistir em uma classificação por graus de perda é uma forma de desvio de questões que são de fato importantes. Quando decidi escolher sujeitos surdos profundos em minha investigação³ tive como objetivo não afastar-me do que é relevante, caso não me ativesse à variável do grau de perda auditiva, e tivesse de ser gentilmente convidada
a lembrar-me disto e ter de discutir a respeito.
Tomar um detalhe não essencial como essencial é um erro de consequências sérias, entre elas, permanecer alheio às contradições. Um surdo que tem uma perda auditiva leve pode ter as mesmas ou mais intensas dificuldades que um surdo profundo. E, enquanto se argumenta exaustivamente se falta um ou vinte decibéis, a maioria dos surdos continua iletrada, e essa discussão irá perdurar tanto tempo quanto se mantiverem as mentalidades daqueles educadores que aspiram transformar os surdos em ouvintes.
Estudantes surdos em escolas
para ouvintes
Estudar em escolas para ouvintes faz parte das expectativas de muitos surdos e de seus pais. O ensino regular constitui, em algum momento, uma espécie de oásis num deserto árido de chances para os surdos. Ou, então, a resposta mais integradora que um estudante surdo pode ter (VIADER, 1997). Muitas vezes é constatada a precariedade do resultado, por não serem os surdos falantes da língua que circula na sala de aula. Alguns insistem na permanência na escola, que se mantém às custas de proteção, acobertamento das dificuldades e outras astúcias.
Um argumento comum a favor do ingresso do surdo em escolas comuns é que as escolas para surdos são onerosas. Assim também supunha Graham Bell e outros educadores oralistas, no século XVIII, especialmente na Alemanha e na França. Por volta de 1828, o Ministério da Educação da Alemanha determinou que, no curso dos dez anos seguintes, disporia de todas as facilidades para educar os surdos no sistema de ensino regular em todas as províncias. Ocorreu, porém, o contrário do que se esperava; trinta anos depois, Hill, um dos maiores defensores do Oralismo naquele país, era obrigado a admitir o fracasso da proposta, embora explicasse o fenômeno como decorrente da má aceitação dos surdos pelos professores das escolas regulares. O fracasso não foi atribuído à comprovação do escasso aproveitamento escolar, e as contradições foram ignoradas (SANCHEZ, 1990, p. 66). Não é o que ocorre na atualidade? Toma-se como necessária e suficiente a formação do professor e a adequação do sistema educacional, estimulando o ingresso dos surdos em classes com alunos ouvintes, com o oferecimento de garantias constitucionais e toda a sorte de seduções, em contrapartida. Todavia, mesmo que os professores sejam bem preparados, mesmo que conheçam a cultura surda e a língua de sinais, ainda assim não é suficiente, pois não existe uma mesma língua, compartilhada, circulando na sala de aula e na escola, condição indispensável para que os surdos tornem-se letrados.
A história de Frederico, filho surdo de pais surdos, retrata como determinadas experiências escolares reforçam estigmas e outras mentalidades em relação à surdez e aos surdos.
Tendo feito o pré-escolar em uma escola regular, não se esquecera como era ser aluno ali. Não gostava da escola, onde quarenta outros alunos eram ouvintes e apenas ele era surdo. Verificando sua intensa dificuldade de acompanhar as aulas, a escola recomendou ensino especial. O pai recusou a ideia, por temer que a escola especial proporcionasse contato mais frequente do filho surdo com a língua de sinais e negligenciasse o aprendizado da fala. Embora o pai e toda a sua família fossem surdos e a língua compartilhada fosse a língua de sinais, ela era estigmatizada. Adquirira a mesma concepção do opressor que lhe educara, e insistia, assim, que Frederico estudasse em escola regular – Não aceito. Escola normal. Precisa desenvolvimento
. É verdade que em sua história pessoal conhecera as baixas expectativas das escolas especiais. Por isso preferia o massacre à baixa oferta.
A saída de Frederico da escola regular foi vivenciada como expulsão, por recusa à surdez. Logo depois, Frederico ingressou em outra escola regular. Por ser pública e, portanto, gratuita, a família entendia que a escola não poderia expulsá-lo, mesmo sendo surdo.
Para o pai, o fundamental era lutar pela aceitação da surdez, porque considerava ausentes os problemas de natureza pedagógica. Demorou muito a notar que Frederico não aprendia, e que havia sofrimento, como também ocorre em tantas outras histórias de surdos. De fato, a escola manteve Frederico até que ele próprio pedisse para sair, porque sentia falta de colegas surdos com os quais pudesse compartilhar o que se passava no universo escolar.
Enfim, o pai de Frederico conhecera as escolas especiais e, portanto, as temia. Mas porque Frederico sentia falta de colegas surdos o pai rendeu-se ao pedido. Também por constatar que os resultados de Frederico no campo da linguagem oral eram insatisfatórios: falava igual papagaio
, suas respostas eram muito controladas e não tinha fala espontânea fora das sessões de fonoaudiologia.
Uma das razões que explicam porque muitos pais procuram as escolas regulares para seus filhos surdos é que a opção da educação especial oferece um modelo não pedagógico, que subestima os surdos e suas capacidades cognitivas: Não adianta ela ficar aqui. Ela tem que ir para uma escola que... ela já deixou todo mundo pra trás. Ela não tem nem condição de ficar numa escola onde estuda só surdo. Porque a gente dá uma coisa e ela já sabe no outro dia. Então ela tá sempre na frente.
(Mãe de Eliana, relatando explicações da escola especial). Este e outros fragmentos de discurso refletem o desejo dos pais de verem a escola investir em seus filhos surdos. As escolas especiais, baseadas no modelo clínico, que entende a surdez como déficit e doença, reduzem as expectativas de aprendizado dos estudantes surdos. Somam-se a este contexto outros equívocos – como o de achar que ter colegas surdos compromete o aprendizado, ou que ouvintes aprendem mais rápido do que surdos e por