Eu não sei lidar
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Sobre este e-book
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A incapacidade de lidar. Eis aqui, explícito logo no título do livro, um dos combustíveis mais poderosos para transformar a própria experiência em algo bem maior e mais universal que dramas pessoais ou segredos guardados dentro de um caderno esquecido em uma gaveta qualquer. Não saber lidar. Eis uma característica marcante de Lucas Silveira. Que talvez só não seja maior do que o seu desejo de compartilhar.
Em seu conjunto, este livro é uma espécie de farol, só que ao invés de marcar o ponto de chegada, é um farol concebido para iluminar o que ficou para trás. É por isso que ele revela não apenas "a história" escondida nos versos de cada canção, mas também o que liga cada uma delas e o que faz deste conjunto uma obra inteira, uma narrativa musicada de memórias fragmentadas.
Aqui, cada canção funciona como um pequeno ponto luminoso. A cada página, essa luz vai desvelando algo inesperado. Relatos do universo da música e sua trajetória profissional de repente se misturam com lembranças da vida pessoal, da infância, e desembocam em dilemas que geraram grandes histórias. E aos poucos é possível ver formar-se um caminho.
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Eu não sei lidar - Lucas Silveira
APARENTE.
O RESTO É NADA MAIS (O SONHO DO VISCONDE)
O RESTO É NADA MAIS
(O SONHO DO VISCONDE)
Eu sonhei que o mar me engolia, me tirava o ar
Experimentei uma paz
De ver que eu não iria mais voltar…
Eu vi que o céu
É só mais uma ilusão
E escrevi num papel
Pra me lembrar, ao fim do furacão
Precisei voar para bem longe, só pra ver
Serei sempre eu, as palavras
E o resto, é nada mais
Serei sempre eu, as memórias
E o resto, é nada mais…
Eu tentei pintar, na minha cara, um sorriso igual
Àquele que, eu sei, está lá:
Num grão de areia entre as Mostardas e o Pinhal
Eu vi que o céu me atrai bem mais que o chão
Mas é tão cruel, contemplar sozinho a imensidão…
Queria alguém, pra o Universo observar
Seríamos eu, você
E o resto, é nada mais
Queria, por um dia, conseguir mudar
Deixar de ser errante… por um dia não andar
Eu tenho uma ferida de cada lugar
Em que deixei guardada a solidão
E é por isso que eu digo que eu não sei lidar…
É muito mais do que meu peito pode suportar!
Não quero sonhos com hora marcada pra acabar
Prefiro essas histórias, imperfeitas, para contar
Será que há alguém, para me ouvir
e me fazer mudar?
Será que há alguém por aí?
Eu sofro com um mesmo sonho recorrente. Hoje acho graça, mas, na minha infância, isso era desesperador. Já o havia sonhado tantas vezes que o tinha decupado na minha cabeça, em todos os seus takes e enquadramentos. Trata de uma cena simples, quase estática:
ME VEJO SENDO ENGOLIDO POR UM MAR RAIVOSO NUM DIA NUBLADO. A turbulenta superfície, de ondas enormes e inquietas, rapidamente dá lugar ao silêncio verde-escuro do fundo do mar. A imagem do meu próprio corpo imóvel afundando lentamente na água enquanto tenho os olhos fixos num céu que parece despedir-se de mim está impressa nas minhas memórias em todos os seus mínimos detalhes, bem como a súbita tranquilidade que toma conta do meu espírito quando eu percebo que de nada adianta resistir ao inevitável.
Após devorar inúmeros dicionários de sonhos na busca de significados ocultos para esse filme que é tão recorrente na minha videoteca noturna, decidi escrever sobre ele, na tentativa de descobrir sozinho a real razão de sua existência.
Eu começo a música descrevendo o sonho em detalhes e o que eu sentia no peito ao sonhá-lo. Descrever uma situação que eu jamais experimentei — morrer — acaba transformando-se numa busca pela comparação perfeita, daquela coisa que sentimos e não conseguimos descrever com algo que soe mais mundano e costumeiro. A poesia, para mim, é justamente isso: descrever o indescritível, de maneira que mesmo a mais iletrada das pessoas possa entender e abstrair-se do mundo real por alguns minutos. Foi nessa busca que eu encontrei o termo paz, em experimentei uma paz, de ver que eu não iria mais voltar. No entanto, é algo um pouco diferente de paz o que eu sentia. Era uma espécie de senso de completude, de se ver pleno e sentir um feliz contentamento com o fim. Na hora, me pareceu tranquilizadora a ideia de que eu não precisaria mais viver, de seguir numa última viagem, saindo da Terra rumo a algum lugar desconhecido, um outro plano físico, uma nova direção.
Essa visão da Terra se distanciando do meu olhar, se reconfigurando em uma escala totalmente diferente, me fascina desde que me entendo por gente.
Esse colosso em que habita toda a história que conhecemos e criamos, que abriga toda a humanidade, aos poucos distanciando-se da minha nave, até se apresentar perante meus olhos como um grão de areia na vastidão do Infinito… Esse conceito ao mesmo tempo me apavora e me tranquiliza.
Essa música permaneceu inacabada por alguns meses (tinha parado no precisei voar pra bem longe só pra ver...). Foi quando eu fiz uma viagem até a distante cidade de Mostardas.
Existe uma faixa de terra que se estende por uns cem quilômetros, separando o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos. E é no meio dessa frágil risca de areia que fica Mostardas, um povoado de pouco mais de dez mil habitantes entre o mar e a lagoa. A Praia do Farol reúne cerca de mil pessoas, entre pescadores de camarão, comerciantes e veranistas. A Praia Nova, ou Balneário Mostardense, fica mais próxima do centro da cidade e é onde muitos dos habitantes construíram suas casas de veraneio. Meu pai tem uma casa e um bar na Praia Nova, e meu tio, um humilde chalé literalmente encravado em meio às dunas da Praia do Farol.
A Praia Nova e a Do Farol são vizinhas, mas algo em torno de quinze quilômetros separam uma praia da outra. Foi quando, numa tarde ensolarada de março, eu decidi fazer o percurso a pé, como faziam meu avô e minha avó em distantes finais de semana dos anos trinta e quarenta. A caminhada solitária é interrompida por meia dúzia de almas perdidas que naquela orla procuram tirar do mar seu alimento e uma ou outra relíquia trazida pelas ondas. Foram três ou quatro horas de uma solidão que não cabia em mim. Era muito intenso e cheio de significados, um momento de quase meditação à