Corpos no Limite: Suplementos Alimentares e Anabolizantes em Academias de Ginástica
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Corpos no Limite - Alan Camargo Silva
Etnografias sobre corpo e saúde são sempre bem-vindas. A diversidade das publicações nessa temática nos revela a pluralidade dos corpos e significados de saúde que podem ser apreendidos nos diferentes campos de estudo. Isso nos proporciona inúmeras compreensões intelectuais contribuindo para a formação de futuros etnógrafos, como também para a reflexão das práticas pelos interventores através do retorno dessas análises para a sociedade. Logo, é particularmente válido quando uma etnografia sobre um espaço normalmente pensado para o culto ao corpo e para treinar
ou malhar
, como é o caso das academias de ginástica, também pode pensá-las como serviços de saúde
. Assim, as academias de ginástica se revelam como tais, porém, serviços de saúde além dos formais e institucionalizados
(Ferreira; Fleischer, 2014). Essa noção de academias de ginástica como serviço de saúde se dá através da interlocução com saberes biomédicos tais como dor, sofrimento, risco, fármacos e nutrientes.
A etnografia empreendida por Alan Silva aborda questões importantes nas áreas de Antropologia, Saúde Coletiva e Educação Física. Ao percorrer essas disciplinas, o autor revela a capacidade da transdisciplinaridade discutida por Naomar Almeida Filho (1997), de como o conhecimento científico através de uma participação interessada
, construída na prática e com grande capacidade de adaptação, é capaz de nos aportar totalizações provisórias
como respostas às nossas perguntas.
Este livro, além de examinar um tema recorrente, como os usos de suplementos alimentares e anabolizantes, porém ainda não suficientemente explorados do ponto de vista acadêmico, contribui para o debate atualíssimo em relação aos consumos dessas substâncias no que diz respeito às questões sanitárias sobre risco/benefício, eficácia/segurança, bem como políticas de regulação para a utilização dos anabolizantes e de sua legitimidade ou não como medicamentos
. A complexidade dessas substâncias mostra também a sua ambiguidade entre símbolo e mercadoria. Mercadoria, pois sujeitas às leis de mercado farmacêutico e, símbolo, pelo desejo de modificar e potencializar o corpo (Ferreira; Fleischer, 2014).
Alan Silva, ao fazer das academias de ginástica seu espaço de pesquisa, nos desvela interpretações de corpo, performances, uso de substâncias para a potencialização do mesmo, noções de risco, como também o funcionamento dessas academias, as interações entre alunos e professores evidenciando fatos sociais totais. Nesta obra, veremos lógicas diversas, articulação de pontos de vista e negociação de sentidos para além da racionalidade biomédica.
O autor, Alan Silva, prova um vasto conhecimento da literatura em ciências sociais colocando os dados etnográficos a serviço de uma discussão teórica riquíssima. Ele resgata a força teórica do Interacionismo Simbólico, importante escola nascida nos EUA nos anos 50. As interações observadas pelo autor disponibilizam interpretações múltiplas sobre o corpo e seus limites, saúde/risco e estética corporal. Dessa forma, ele nos mostra com a sua observação refinada, embasada na teoria interacionista, que empiria/teoria na pesquisa etnográfica estão integradas em uma constante bricolagem. A necessidade dessa constante articulação na pesquisa etnográfica foi bem ressaltada por Marisa Peirano (2014).
A observação de interações não reduz a pesquisa às relações microscópicas. Uma etnografia analítica que decompõe os problemas sociais em unidades empíricas permite uma vasta observação de processos que se inscrevem em fenômenos mais amplos da sociedade. De acordo com Anselm Strauss e Juliet Corbin (1990): As condições globais e gerais influenciam a ação e as estratégias de interação, tais como tempo, espaço, cultura e status econômico e tecnológico
. No presente caso, o autor é conduzido constantemente a se interrogar sobre realidades sociais específicas atreladas a outras dimensões da vida de acordo com a inserção social dos alunos e professores de Educação Física em academias de ginástica.
A etnografia ou etnografias
aqui apresentadas diz(em) respeito a duas academias de ginástica escolhidas, propositalmente, uma em bairro popular da cidade do Rio de Janeiro, academia P e outra em bairro nobre, academia G. Essa delimitação por bairro e, consequentemente, por renda e camada social dos seus frequentadores, poderia nos levar a pensar em uma naturalização e redução ao utilitarismo econômico do corpo pelo autor. No entanto, esta obra vai além, propondo sobretudo como as condições diferenciais de inserção no mundo se dão conforme a clivagem social. Assim, ela nos permite acessar dados mais amplos da vida desses indivíduos tais como trabalho, poder de consumo, lazer e relações afetivas, dados esses que são acionados nas interações dando significados às concepções e às práticas de corpo, saúde e risco nesses locais, estabelecendo, assim, os limites
possíveis desses corpos. O corpo, mais do que mero objeto, é agente de novas experiências e significados da vida coletiva.
Este livro, de inestimável sensibilidade etnográfica, é de uma qualidade incontestável. Através da utilização da metodologia clássica em antropologia, a observação participante, ele desenvolve uma etnografia rigorosa, colocando em relevo a singularidade dos indivíduos e destacando, ao mesmo tempo, os aspectos estruturais específicos.
Alan Silva, apesar de sua formação básica e atividade profissional em Educação Física, soube estabelecer o exercício intelectual de distanciamento do seu campo de trabalho e adotar o ponto de vista êmico e reflexivo para estudar os professores de Educação Física e seus alunos nas suas interações nas academias de ginástica. Tal exercício mostrou a sua extrema sensibilidade e competência mobilizada por suas experiências anteriores, bem como pelo seu conhecimento teórico. A proximidade que ele tem com a área de Educação Física é compensada pela distância de trabalho e de aluno em academias de ginástica. Isso lhe permite estranhar algumas práticas, recomendações e atenção dos professores em relação aos seus alunos, bem como os significados atribuídos aos usos de suplementos alimentares e anabolizantes nas academias de ginástica investigadas. Estranhamento esse compreensível para um profissional de saúde, tendo em vista a divulgação por artigos científicos e pela mídia sobre os riscos à saúde e morte pelos usos de tais substâncias. No entanto, como bom etnógrafo, Alan Silva nos mostra todos os aspectos envolvidos nesse tomar
e os significados a ele atribuídos, despidos de qualquer julgamento de valor. Na totalidade, há um equilíbrio na etnografia de dentro e de fora: nem de tão perto que se confunda com a experiência particularista e nem de tão longe a ponto de distinguir um recorte abrangente e sem sentido
(Magnani, 2002).
Esperamos que a publicação desta obra, sobre esse tema tão atual e de questões importantes de Saúde Pública, aporte boas reflexões e discussões nos espaços acadêmicos, serviços de saúde e na formulação de políticas públicas.
Profa. Dra. Jaqueline Ferreira (UFRJ)
Referências
ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1-2, p. 5-20, 1997.
FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. Apresentação. In: FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. (org.). Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond, 2014, p. 11-30.
MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002.
PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20, n. 42, p. 377-391, jul./dez. 2014.
STRAUSS, A.; CORBIN, J. Basics of qualitative research: grounded theory procedures and techniques. Newbury Park: Sage, 1990.
Corpos no limite: suplementos alimentares e anabolizantes em academias de ginástica faz parte de um empreendimento etnográfico de uma tese defendida no curso de Doutorado em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC-UFRJ) no ano de 2014, de minha autoria, sob a orientação da Profa. Dra. Jaqueline Ferreira. O objetivo desse estudo foi investigar como profissionais de Educação Física e alunos construíam e concebiam as noções de corpo no limite
e suas possíveis relações com os riscos à saúde enquanto se engajavam nas práticas corporais na musculação em academias inseridas em distintas condições socioeconômicas e culturais da cidade do Rio de Janeiro.
Naquela ocasião, foi possível apreender algumas estratégias cotidianas utilizadas por estes atores sociais com o intuito de superar ou potencializar o corpo. Os usos de suplementos alimentares e de anabolizantes compuseram uma das principais estratégias utilizadas por profissionais de Educação Física e alunos para fortalecer ou aprimorar o corpo. Durante o processo de doutoramento e nas minhas apresentações em grupos de trabalho temáticos em eventos científicos da Educação Física, Saúde Coletiva e Antropologia, eu percebia uma boa receptividade do tema por estudantes, especialistas e pelo público em geral dos três campos de saber supracitados.
Assim, a divulgação e a circulação desse material são inéditas e foram pensadas cuidadosamente no formato de livro, tentando reunir elementos teórico-empíricos importantes na articulação do tripé de saberes entre Educação Física, Saúde Coletiva e Antropologia. Também é objetivo dessa obra delinear de modo mais aprofundado como esses usos
podem e devem ser descritos. Igualmente é analisado como o botar pra dentro
do corpo e a multiplicidade de noções de risco à saúde subsidiam um panorama acerca da utilização dessas substâncias em contextos e em grupos sociais específicos.
Justifica-se, portanto, a importância de compreender os usos de suplementos alimentares e de anabolizantes na seara do campo da Educação Física e da Saúde Coletiva para se pensar a intervenção de sanitaristas e profissionais de saúde em geral no/com outro. Embora a presente obra relativize como os sujeitos usam tais produtos, argumenta-se que os exacerbados ou indiscriminados usos de dadas substâncias tornam-se cada vez mais uma realidade nos hospitais e na própria mídia. Efeitos colaterais e adversos ao corpo, lesões renais, hepáticas e/ou cardiológicas, as mortes recentes em virtude do uso desses produtos fazem parte do cotidiano laboral dos profissionais de saúde e amplamente divulgados pela mídia e redes sociais. Questiona-se, portanto, como a diversidade de cultos ao corpo à luz de ideais estéticos ou até mesmo de saúde é um fenômeno ainda pouco explorado, obscuro ou deixado em segundo plano no que diz respeito ao consumo de suplementos alimentares e anabolizantes por frequentadores de academias. Já no contexto da Antropologia, considera-se a relevância de compreender os sentidos e os significados atribuídos ao corpo que toma algo
com o intuito de desvelar as representações simbólicas de determinados grupos sociais em dado tempo histórico.
Corpos no limite: suplementos alimentares e anabolizantes em academias de ginástica foi organizado da seguinte forma: o primeiro capítulo oferece um panorama do referencial teórico que fundamentou este trabalho: a Escola de Chicago e o interacionismo simbólico. O intuito é refletir acerca das suas contribuições para o empreendimento etnográfico em academias de ginástica. O segundo capítulo trata sobre o corpo em exercício como uma construção sociocultural no sentido de compreender especialmente os binômios saúde-doença e beleza-feiura para além do referencial biomédico. O terceiro capítulo descreve o processo de construção da etnografia sobre tomar
suplementos alimentares e anabolizantes. No quarto capítulo são apresentados os cenários e os atores que constituíram a empiria. No quinto e sexto capítulos é delineada a pluralidade dos usos de suplementos alimentares e de anabolizantes. Por fim, são apresentadas algumas conclusões a respeito desses corpos buscando melhorar a sua performance no limite
das práticas corporais e dos usos de suplementos alimentares e anabolizantes.
Sendo assim, desejo uma ótima leitura a todos e que esta obra instigue reflexões para além do universo aqui apresentado!
CONTRIBUIÇÕES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS PARA O ESTUDO DAS ACADEMIAS DE GINÁSTICA
Por volta do ano de 1900, a Escola de Chicago, precursora do interacionismo simbólico, foi fundada em uma época de pragmatismo do contexto norte-americano preocupado com os problemas sociais como, por exemplo, as:
relações raciais, ecologia urbana, carreiras e profissões, grupos desviantes, arte, minorias étnicas, processos de socialização, instituições totais, imprensa, comunicação de massas, bairros, educação, etc. (Velho, 2009, p. 12)
Na Escola de Chicago não havia homogeneidade nos interesses de determinados objetos de estudos e de focos teóricos e metodológicos, por isso, por vezes, critica-se tal corrente teórica no sentido de ser tratada como uma escola de pensamento, pois pode ser vista como uma escola de atividade (Becker, 1996; Velho, 2008). Acredita-se que tal instituição foi constituída e inspirada em grande parte pelas ideias do sociólogo alemão Georg Simmel que analisava as relações indivíduo e sociedade principalmente em meios citadinos.
O perfil urbano-industrial junto à expansão demográfica e a diversidade socioeconômica, cultural, étnica e religiosa da cidade de Chicago na época propiciaram um olhar sociológico
plural sobre diferentes relações sociais. Assim, os primeiros departamentos de sociologia, uma das grandes editoras institucionais (University of Chicago Press) e uma das principais revistas da área (American Journal of Sociology) foram criados nessa instituição, impactando sobremaneira no pensamento antropológico a partir de uma ampla gama de estudos empíricos. No início, pelo fato da Escola de Chicago ter privilegiado eminentemente o trabalho de campo pelas suas ideias relativas à ação social, a instituição sofreu críticas severas por uma suposta falta de produção teórica.
Assim, a relevância, a representatividade e o impacto da formação e do desenvolvimento de gerações de professores e de pesquisadores especificamente da Escola de Chicago foram e ainda são fundamentais para abordagem antropológica de forma em geral. No entanto, a noção de interação simbólica tão propalada historicamente deve ser detalhada na medida em que pode assumir diversas conotações, tornando-a polissêmica.
Embora em meados do século XX, a Escola de Chicago tenha assumido uma perspectiva menos antropológica no sentido de se voltar às pesquisas quantitativas, por meio do instrumento metodológico das estatísticas, foi apenas na década de setenta, aproximadamente, que alguns autores retomaram a relevância do simbólico e do relacional. Nesse contexto, além dos estudiosos pioneiros no campo do interacionismo simbólico, Erving Goffman, Howard Becker, Olivier Schwartz e William Foote Whyte foram os principais autores que inspiraram este texto; cada um dos supramencionados com a sua contribuição teórico-empírica. Embora não estejam ligados diretamente ao interacionismo simbólico, os estudiosos Pierre Bourdieu, Luc Boltanski e Loïc Wacquant foram articulados aqui pelo fato de também trabalharem com temática que se aproxima com o objeto de estudo em questão por pensarem a relação indivíduo e sociedade, sobretudo a partir do corpo.
O interacionismo simbólico equilibra as tensões ou as dicotomias entre as análises em torno do indivíduo e sociedade. O legado teórico-metodológico da Escola de Chicago consegue reduzir as ênfases das ações atreladas eminentemente ao indivíduo em si e também relativizar o que pode ser denominado de imposição ou de coerção social. Embora as correntes acionalistas teçam críticas ao interacionismo simbólico por, aparentemente, preferir observar pequenos grupos sociais em situações específicas, a prerrogativa de tal escola de pensamento é relacionar as mediações entre os sujeitos à luz do contexto que as enredam.
Nesse sentido, a noção de um cenário social encenado, marcado pelo tempo e pelo espaço, no qual os atores estabelecem relações intersubjetivas dramatizando atos possíveis de serem interpretáveis durante o cotidiano se coaduna com a perspectiva do interacionismo simbólico (Goffman, 2002). A sociedade é composta de múltiplas interações dinâmicas e plurais entre os indivíduos que são ativos em seus comportamentos ligados aos seus mundos sociais, isto é, são os aspectos situacionais e estruturais que complexificam as relações