Cordel, fantasia e poesia: Uma viagem mestiço-midiática no desfile do Salgueiro
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Cordel, fantasia e poesia - Anderson Fávero Rodrigues
Semiótica
Introdução: (abre-alas)
Couro, gibão e muita empolgação. Foi com esses três elementos que, em 2012, a Acadêmicos do Salgueiro adentrou a Marquês de Sapucaí, nosso principal estádio do samba, e cantou e homenageou, com o enredo Cordel branco e encarnado
, um dos mais típicos elementos da cultura sertaneja: a literatura de cordel.
Ainda que os registros não tragam consistência confiável e que sejam vagas ou divergentes as concepções acerca de sua origem, não nos faltam teorias de que essa literatura tenha chegado às nossas terras nos baús dos descobridores
que por aqui desembarcaram. E foi justamente por aqui que o cordel ou o folheto – uma espécie de galho preso à árvore da arte da literatura oral – ganhou uma identidade própria, consolidando-se como um gênero literário, para muitos, genuinamente brasileiro.
Conta-nos Haurélio (2007, p. 4-5), escritor e folclorista, que
A Literatura de Cordel no Brasil, a partir dos poetas pioneiros Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá de Lima, sempre teve no conto popular um motivo essencial. As histórias que sobreviveram à peneira do tempo e chegaram até nós, refundidas em versos de sete sílabas, são o que há de mais característico no Cordel. Embora determinados pesquisadores reduzam o Cordel no Brasil à sua (importante) função de ‘jornal do povo’, é no manejo do material tradicional, oriundo ninguém sabe d’onde, trazido ninguém sabe por quem, que o poeta popular sempre estará mais à vontade. São dos contos populares, em suas múltiplas classificações, que nos chegaram os grandes clássicos da Literatura de Cordel.
Depois de um engatinhar
em seus primeiros vates da literatura oral, sem nome, foi relativamente longo o período até que a literatura de cordel recebesse o batismo de poesia popular, bem como o reconhecimento artístico e acadêmico que detém. O recitar melodioso e cadenciado de versos, às vezes acompanhado de viola, assim como as leituras e declamações cheias de animação e arrebatamento (para conquistar os possíveis compradores) passaram, então, a ser o mote de uma série de outras manifestações culturais (como a telenovela e o Carnaval, foco desta pesquisa) e já transcendem regiões, tempos e espaços, tornando-se, incontestavelmente, um gênero da nossa literatura; gênero esse (cordel), aliás, que para nós dialoga com os dizeres acerca da ideia do compromisso da literatura com um mundo possível, de Lajolo (2001, p. 48), para quem
Os mitos e espaços poéticos nascem não só da realidade circundante, compartilhada por autor e leitores, mas também do diálogo com tudo o que, vindo de tempos anteriores, constitui a chamada tradição literária. É como se a literatura fosse um constante passar a limpo de textos anteriores, constituindo o conjunto de tudo – passado e presente – um único e grande texto (...).
Permeados de histórias vividas ou não por nós e que se encontram na tessitura de textos, em seu direito e seu avesso ou em suas urdiduras, os livretos, como era chamada a produção impressa dos poetas de gabinete
ou de bancada
, cruzaram a região Nordeste brasileira no lombo de animais, no curso de alguns rios e, vigorosamente, na memória do povo. Sua expansão permitiu ainda não só a transposição de temáticas medievais, do velho continente, para o contexto sertanejo, mas também a criação de novas modalidades poéticas atreladas ao cordel, que desde então bem retratam a realidade nordestina.
E como sabemos, nem o cordel nem seus temas ficaram só no Nordeste. Eles, isto sim, peregrinaram longamente, em romaria, por lugares vários e distantes, ou mesmo viajaram, em precárias carrocerias de caminhões, para o Sul do país e de lá para tantas outras regiões que oferecessem, aos retirantes, um leve aceno de melhores condições de vida. Depois de migrar pelas feiras e festas do Nordeste, a literatura de cordel caminha célere do Oiapoque ao Chuí
, de leste a oeste do país, e finalmente chegou a outras grandes feiras
: a televisiva e a cibernética (do cordel ou cordão eletrônico), aproximando, dessa forma, a cultura e a literatura popular à cultura e à comunicação de massa.
Porém, como nem tudo são flores (principalmente açucenas do sertão), o avanço e a vanguardização
do cordel e sua relação com outros meios, ao que Ferreira (1993, p. 2) chama de retenção complexa
, também tem os seus reveses, tais quais os apontados por ela já há vinte anos:
Apesar de compreender a importância destes estudos, que proporcionam uma ampliação ao entendimento da cultura brasileira, espanta e aturde, no entanto, a cordelmania, a espécie de consumo deliberado e superficial em seu alcance (como aliás vem ocorrendo em outras faixas) de um dos mais ricos veios da cultura popular. Seria até preciso dizer que, como sertaneja, é com ressentimento que vejo o poeta popular entrar na máquina de consumo, servindo ora de espetáculo e de exótico ou de pretexto para a aplicação de teorias prontas.
Assim, esta publicação tratará de uma literatura considerada um dos principais documentos da cultura brasileira – que, segundo Curran (2011), expressa a cosmovisão do homem comum
– e de um espetáculo carnavalesco que, em 2012, mostrou-se uma verdadeira epopeia folclórico-popular do Brasil (e de sua poesia) ao fazer alusão a diversos lugares, costumes e personalidades importantes do sertão nordestino.
Centrando-se em uma análise não linear (tal qual o objeto a merece: caleidoscópica ou em forma de mosaico) de como se deu a transposição
da poética e da estética dos folhetos de literatura de cordel para o samba e para o sambódromo, no desfile do Salgueiro, o livro pretende investigar a relação entre comunicação, cultura e literatura de cordel e seus códigos, além da articulação entre eles enquanto produtos culturais que, às vezes, se apoiam uns nos outros, garantido-lhes sentidos complexos e moventes.
Esta pesquisa é, portanto, um modo de se olhar a evolução artístico-literária do cordel, bem como a interferência sofrida da e exercida na comunicação de massa e em novos produtos e tecnologias midiáticas, sob a base teórica, para esses estudos, de autores/críticos como Amálio Pinheiro, Oswald de Andrade, Ciro Marcondes Filho, Jerusa Pires Ferreira, além de Zumthor, Bakhtin, Benjamin, Morin, Flusser, Baitello Jr. e Lotman.
O encaminhamento da pesquisa, em seu capítulo próximo (1), contemplará, a partir da abordagem de algumas imbricações culturais e de linguagem – híbridas e/ou miscigenadas –, os caminhos e descaminhos da poesia cordelina enquanto arte versificada de se contar histórias. Além disso, será abordado o potencial sinestésico dessas narrativas que, através da oralidade e do corpo e sua performance, não só foram compostas com intenções de entretenimento e formação, mas também como crônicas jornalísticas de um tempo e de uma realidade que circundaram poetas e leitores de cordel.
No Capítulo 2, além dos conceitos de comunicação, cultura e arte, serão vistas suas relações com a técnica e com a tecnologia em nossos processos comunicativos. A polifonia e o rearranjo de manifestações artísticas/poéticas de linguagem, neste cenário hipermidiatizado, bem como os bônus e os ônus do intercâmbio mestiço entre cultura popular, comunicação de massa e literatura, serão também alvo de reflexões que visam à superação de um diálogo simplista entre tradição e inovação.
Já o Capítulo 3 tratará fundamentalmente da análise de como se deu a passagem
artística da literatura de cordel para a Marquês de Sapucaí e das associações verbivocovisuais
entre os temas, trovas e versos da poesia do sertão e as inovações, com toda a grandeza da cultura brasileira, seu colorido e sua musicalidade, levadas à avenida do Carnaval carioca no desfile; de como a narratividade da gênese de uma linguagem (outra) – como nos diz Barthes (2004, p. 15) acerca de um estado do discurso – é desconstruída e a história permanece no entanto legível
, afinal, nunca o prazer foi melhor oferecido ao leitor
(Idem), ao público.
E, por fim, o Capítulo final apresentará alguns dos ganhos tanto do cordel quanto da escola de samba enquanto produtos e manifestações da cultura – na migração artística de um suporte a outro, que se vê/torna mestiço e se traduz em uma nova linguagem – para o Brasil e para o mundo, em um contexto ligado a um espaço (transgressor na maioria das vezes) múltiplo, permeado pela possibilidade de conexões variadas, e principalmente à questão das artes e culturas populares, com um olhar orientado às altas tecnologias.
Capítulo 1: Por mares nunca dantes ou já outrora navegados? Caminhos da poética popular cordelina
Coexistência. Talvez seja essa uma das palavras que melhor representem a incessante combinação de processos socioculturais da contemporaneidade e que intensifiquem os questionamentos acerca das (in)determinações do termo cultura, o qual passara por tantas transformações e assumira tantos papéis, ora abrangentes, ora delimitativos. Aliás, é plausível ainda pensarmos em cultura, singularmente? Não.